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O servidor público pode exercer o direito de greve, ou sua atividade é essencial à população?

O número exacerbado de movimentos de greve de servidores – federais, estaduais e municipais – nesse momento de crise que o Brasil atravessa, merece reflexão mais atenta à busca pela solução desse tipo de conflito coletivo.

3/9/2015

Parece evidente que qualquer trabalhador deva ter o direito de reivindicação assegurado pela sociedade e que, no impasse da negociação, também deva a ele ser garantido o exercício do direito de greve. No caso do servidor público esse exercício de paralisação, como última forma de pressão, por vezes esbarra no interesse coletivo social, no direito de terceiro, porque não dizer no senso da coletividade que enxerga naquela função uma atividade essencial à sociedade.

O número exacerbado de movimentos de greve de servidores – federais, estaduais e municipais – nesse momento de crise que o Brasil atravessa, merece reflexão mais atenta à busca pela solução desse tipo de conflito coletivo. Sim, porque as escolas, o Judiciário, os hospitais, autarquias federais, o INSS, o serviço de correio e, por vezes, a polícia, “parou” em protesto por melhores salários e condições de trabalho.

Todos nós, estudiosos do direito, bem sabemos que o Poder Constituinte distinguiu o servidor público civil do empregado CLT no que diz respeito ao exercício do direito de greve, e o proibindo ao Militar1 (das Forças Armadas e das Polícias Militares e do Corpo de Bombeiros). Sabemos também que desde 1988 essa categoria, a dos Servidores, espera por uma Lei que regule a matéria, atendendo à determinação Constitucional.

Porém, a greve está a nossa porta como fato social, e a tolerância desses trabalhadores, convenhamos, após 27 anos, acabou. As centrais sindicais tomam a frente desses movimentos de inorganizados sob o ponto de vista sindical, membros do legislativo fazem discursos de apoio à paralização como instrumento de busca por votos. Pasmem, até gestores do executivo atestam que as reivindicações são legítimas. Mas a Lei de responsabilidade fiscal, a baixa receita, o orçamento comprometido e, por último, as contas do Órgão governamental remam em sentido contrário.

Mas quando o movimento de greve se instala, e a população reclama: todo mundo grita sem razão! Os trabalhadores reivindicam melhores salários; o governante melhor orçamento e mais tributos; e a população melhor qualidade dos serviços, atendimento e queda carga tributária. É o Brasil sem lei. Ou melhor, com leis que não conversam...

Como tecnicamente analisar a questão? Qual seria a melhor solução?

Pesquisando descobri que o Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, tem em seu regimento interno norma que admite o julgamento, pela Justiça Comum estadual, de dissídios de interesse coletivo oriundos de greve de servidores estaduais2. Também analisei decisões3 do Supremo Tribunal Federal a respeito do assunto, em especial na greve de 19944 (emblemática) dos Servidores Públicos do Brasil. Mas em nenhum momento encontrei um norte para a solução dessa controvérsia, apenas decisões pontuais reclamando por Lei que venha a regular a matéria, declarando a mora pela omissão do Legislativo ou ainda aplicação da Lei de Greve do setor privado (lei 7.783/89) para o servidor público.

Tais decisões colocam o governante e o judiciário em descrédito perante o eleitor/cidadão. A sensação é de bagunça, se me perdoam a expressão. Por que o legislador não regula a matéria? Por que o executivo não humaniza seus orçamentos, ao invés de exercer o populismo das obras públicas?

Em 19965, o Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, já destacava o atraso de 06 (seis) anos, a partir da CF/88, do Congresso Nacional em adimplir a prestação legislativa que lhe foi exigida pelo Texto Constitucional, deixando graves consequências de ordem jurídica, administrativa e social decorrentes da inércia legislativa para regulamentar o exercício da greve aos servidores públicos.

Agora não mais 06 (seis), mas 27 (vinte e sete) anos e tudo continua igual!!

E ao longo desses anos, o STF adotou o caminho da aplicação subsidiária da Lei de Greve do setor privado para o servidor público, de forma mais severa considerando o serviço e as atividades essenciais.

No Legislativo, desde 1988, foram apresentados no Senado Federal 8 (oito) projetos de Lei e 2 (dois) requerimentos. Alguns, encerrados6; outros, em andamento7, sem promulgação da lei tão necessária para nossa sociedade. Na Câmara dos Deputados foram feitos 3 requerimentos8 para debater a mencionada regulamentação; 01 Projeto de Lei9 e 02 Projetos de Lei Complementar10 – arquivados; e, 12 Projetos de Lei11 cujo andamento em 27/8/15 aguardam parecer da CCJC (Comissão de Constituição Justiça e Cidadania).

E o Executivo?

Ao longo desses 27 anos, ocorreu a promulgação do decreto 591, em 6/7/92, determinando a execução e cumprimento do Pacto Internacional12 sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o qual trata em seu artigo 8º alíneas “c” e “d” do exercício do direito de greve, porém sem afrontar a soberania do Estado democrático de Direito, tendo em vista o interesse da segurança pública nacional ou da ordem pública, bem como proteção aos direitos e liberdades de outrem, respeitada a legislação especial. Portanto, o Poder Executivo também reforçou o comando constitucional, mas limitado na sua atribuição típica de administrar e não legislar.

Portanto, a matéria está à deriva. Três caminhos, ou sugestões, se permitem a ousadia. Nada de concreto. E debate-se a questão de tamanha relevância social, repita-se, há mais de 27 anos.

Pergunta-se: Há atividades desenvolvidas pela Administração Pública que podem sofrer paralisação e/ou interrupção? Em caso positivo, quais? de que forma? como executar o serviço em caráter emergencial para atender a população de forma imediata, sem prejuízos ? E a realização de dissídios de greve a espera de uma decisão judicial? Qual efetividade queremos dar aos nossos serviços públicos? Atividades essenciais? Serviços essenciais?

Tais indagações continuam sem rumo definido pela nossa sociedade, sem cooperação mútua do Legislativo, Executivo e Judiciário e enquanto isso, cada um tenta alcançar uma solução.

Os servidores públicos do Poder Judiciário, por exemplo: na hipótese de greve poderão ter os dias de paralisação descontados, regra essa estabelecida pelo CNJ, por meio do Enunciado Administrativo n.1513 que autoriza o desconto da remuneração, facultado ao Tribunal optar pela compensação dos dias não trabalhados. O consenso que levou a publicação desse Enunciado foi relatado pelo Presidente da OAB Federal, Marcus Vinicius Coelho, ao ver o Poder Judiciário “como função essencial da sociedade que não pode parar, tal como saúde e educação.”14

Portanto, os movimentos indicam restrições ao exercício do direito de greve para alguns serviços públicos, porque fere a soberania estatal e a supremacia do interesse público, tendo em vista o prejuízo a sociedade, considerando que tais servidores representam o Estado, inclusive submetidos ao orçamento da Administração Pública, cujas regras financeiras não podemos propor alterações por meio de negociação coletiva conforme presenciamos na atividade privada, justamente porque a Administração Pública está condicionada a respeitar o orçamento anual e a revisão anual de cargos e salários, com limite teto da remuneração e subsídios. Portanto, temos que examinar a questão de forma conjunta, do que adiantam pleitos reivindicatórios das entidades sindicais se as mesmas vão esbarrar na regra constitucional da revisão anual orçamentária e o teto limite para a Administração Pública Federal, Estadual e Municipal. Ou seja, vão reivindicar aumento de salário, e nada será alterado, porque existe uma outra regra prevista na Constituição Federal, qual seja, a que disciplina que os salários e os subsídios somente podem ser fixados ou alterados por LEI ESPECÍFICA, assegurada a revisão geral anual. Portanto, a regulamentação do direito de greve obrigatoriamente deverá, também, respeitar o comando constitucional orçamentário. Caso contrário, que se proponha uma Emenda Constitucional para gestão do orçamento público. Os servidores públicos ao se submeterem a esse regime jurídico têm ciência do critério diferenciado que o Estado os elevou em relação aos empregados da iniciativa privada. A pouca rotatividade justificaria essa diferença negocial?

Nesse momento o País desponta com diversas greves nos setores públicos: professores no Rio Grande do Sul, Policiais Civis no Distrito Federal, INSS. Nesse último caso, há quase 02 meses a população sofre a ausência da prestação da seguridade social. A concessão do benefício da aposentadoria já aumentou para 01 (um) ano, tendo em vista a paralisação dos serviços e dos sistemas operacionais. Onde estão as entidades para discutir tal prejuízo social. Será que poderíamos falar em “dumping social”? Haveria quantificação pelo dano causado à sociedade? Por que, tão somente, as organizações privadas são penalizadas em milhões ou bilhões?

Portanto, tecnicamente estamos órfãos. O Judiciário (Supremo Tribunal Federal ou Tribunal de Justiça de São Paulo) atende as demandas judiciais somente quando as partes que lhe provocam, porém não possui a atribuição de legislar e promulgar a lei para regulamentar tal questão a toda sociedade. O Legislativo e Executivos, silentes!! O Legislador está em mora há 27 anos, e de tempos em tempos, conforme a crise econômica pendular, há maior número de greves no país. Instalado o CAOS SOCIAL, só nos resta esperar a Casa Legislativa. Enquanto isso, cada categoria de serviço público apresenta sua pauta de reivindicações, e não atendidas, temos a greve.

Enfim, deixo aqui a reflexão e Oxalá tenhamos a promulgação da lei para regulamentar o exercício de greve no serviço público, esperado nesse país há mais de 27 anos. O Estado Brasileiro não pode mais ser omisso!!

______________

1 Artigo 42, parágrafo 5º, Constituição Federal.

2 Regimento Interno do Tribunal de Justiça de São Paulo vigente (aprovado em 25/09/2013). Artigo 13 (compete ao órgão especial processar e julgar os dissídios coletivos por greve que abrangem servidores de vínculos não regidos pela CLT). Artigos 239 a 246 (Do Procedimento do Dissídio Coletivo por Greve).

3 Mandados de Injunção: 20/DF – Rel. Min. Celso de Melo;485/MT – Rel. Min. Mauricio Correa; 585/TO - Rel. Min. Ilmar Galvão; 342/SP – Rel. Ministro Moreira Alves; 689/PB – Rel. Min. Eros Grau; 670/SP – Rel. Min. Gilmar Mendes (relator originário Min. Mauricio Correa);708/DF – Rel. Min. Gilmar Mendes;712/PA – Rel. Min. Luiz Fux (Relator originário Min.Eros Grau).

4 MI 20/DF – Rel. Min. Celso de Mello – DJ 22/11/1996.

5 MI 20/DF.

6 PL 96/1998 – Sen. Mauricio Correa; PL 88/1989 – Sen. João Menezes; PL 42/1994 – Sen.Odacir Soares; PL 94/1995 – Sen. Odacir Soares; Requerimento Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa 100/2013 – Sen. Paulo Paim; Requerimento da Comissão de Educação 26/2014.

7 PL 710/2011 – Sen. Aloysio Nunes Ferreira; PL 120/2013 – Sen. Lindbergh Farias; Projeto Decreto Legislativo 497/2012 – Sen. Randolfe Rodrigues; PL 327/2014 – Comissão ATN n.2, de 2013.

8 Requerimentos: 22/2002; 8/2007; 63/2007.

9 PL 1652/1981 – Dep. Amaury Muller (PDT/RS).

10 PLP 30/1995 – Dep.Regis de Oliveira (PSDB/SP); PLP 56/1989 – Dep.Ruy Nedel (PMDB/RS).

11 PL 981/2007 – Dep. Regis de Oliveira (PSC/SP), apensado ao PL 4497/2001 – Dep. Rita Camata (PSDB/ES). Há 10 PL apensados ao PL 4497/2001. São eles: 5662/2001; 6032/2002; 6668/2002; 6775/2002; 1950/2003; 981/2007; 3670/2008; 4276/2012; 4532/2012 e 7205/2014.

12 Pacto Internacional adotado pela XXI Sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 19 de dezembro de 1966.

13 Publicado no Diário Oficial em 26/08/2015.

14 214ª Sessão Ordinária – CNJ.

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*Christiani Marques Cunha é advogada, doutora em Direito das Relações Sociais e professora da PUC/SP.

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