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O caso U.S. v. Microsoft: bases da relação entre Direito e tecnologia da informação

A aplicação de medidas antitruste, nesses casos, além de dispendiosa, pode criar desincentivos à inovação e a condutas competitivas agressivas.

27/8/2015

O caso U.S. v. Microsoft foi ajuizado em 18 de maio de 1998, na Corte Federal do Distrito de Columbia, pelo Departamento de Justiça norte-americano e por mais 20 estados, além do próprio Distrito de Columbia, contra a gigante do mercado de softwares Microsoft. O caso já é clássico na literatura jurídica dos Estados Unidos, com referência às peculiaridades de se julgar aspectos relacionados à concentração de mercado nas denominadas “new economies”.

Essa expressão foi cunhada para denominar, dentre outros, o mercado de produtos de tecnologia da informação, que experimentou crescimento acelerado a partir da década de 1990. A regulação das “new economies”, no entanto, não foi capaz de acompanhar esse crescimento nos anos iniciais. Isso gerou questões jurídicas que estabeleceram bases para uma reformulação de conceitos, cujo objetivo foi viabilizar a operacionalização de institutos jurídicos tradicionais.

A compreensão do âmbito de reformulação desses conceitos justifica o estudo do caso, que é paradigmático porque simboliza o momento seminal em que o choque entre a velha regulação da concorrência e as “novas economias” provocou as primeiras reflexões acerca da relação entre direito e tecnologia da informação. As peculiaridades do mercado de softwares relevantes para o caso se referem a três aspectos desse mercado, em especial: (i) à caracterização de domínio de mercado; (ii) à prática de integração entre produtos (“tying”); e (iii) ao exercício dos direitos de propriedade intelectual.

A doutrina do direito antitruste tradicional permite aferir apenas uma perspectiva “estática” do mercado de software, que não consideraria o dinamismo característico desse mercado1. Esse dinamismo se relaciona a uma característica mais específica, que consiste na criação “efeitos de rede indiretos”2. Esses efeitos, também denominados “economias de escala no consumo”3, caracterizam-se pela agregação de utilidade a um determinado produto na medida em que esse produto é mais consumido.

Exemplo clássico de efeitos de rede é o que se verificava, no passado, em relação ao mercado de telefonia fixa: quanto mais usuários na rede, maiores as possibilidades de comunicação para cada usuário. No caso da Microsoft, os efeitos de rede indiretos estariam relacionados à ideia de que os usuários do sistema operacional da empresa se beneficiariam indiretamente da expansão da base de consumidores desse sistema, porque essa base expandida seria mais atrativa para produtores de aplicativos4.

A difusão do sistema operacional, portanto, atraiu a oferta de aplicativos, o que atraiu mais consumidores, até o ponto em que se tenha tornado difícil considerar se seria a oferta de aplicativos ou o aumento na quantidade de usuários o que impulsionaria o consumo, numa situação análoga ao problema do ovo e da galinha (“chicken-and-egg problem”)5. Em circunstâncias como essa, o first mover tende a adquirir dominância do mercado, ao mesmo tempo em que os concorrentes têm um claro incentivo a buscar inovação que possa desestruturar a dominância estabelecida e formar outra nas mesmas condições6, em lógica do tipo “winner-takes-all” ou “winner-takes-most”7.

A tendência à formação de monopólios nas “new economies”, portanto, é uma decorrência inevitável da inovação, que desencadeia o processo de difusão do produto inovador e que culmina com a dominância de mercado. Nesse cenário dinâmico, a verificação da existência de monopólio não evidencia, em si, a existência de conduta anticompetitiva, porque a competição pela inovação não é prejudicada, a princípio8. A aplicação de medidas antitruste, nesses casos, além de dispendiosa, pode criar desincentivos à inovação e a condutas competitivas agressivas9.

A doutrina tradicional de direito antitruste também parecia não estar preparada para avaliar os eventuais efeitos anticoncorrenciais da prática de integração entre produtos no mercado de software. Tradicionalmente, o “tying” é estratégia para ganhar dominância no mercado de um produto por vincular a venda desse produto à de outro cujo mercado já é dominado10. No caso, a conduta foi considerada anticompetitiva pelos autores da ação judicial em sentido inverso, em virtude de que o “tying” teria servido para proteger o mercado de sistemas operacionais, já dominado pela Microsoft, mediante associação desse sistema ao aplicativo de navegação na Internet oferecido pela empresa11.

O intuito da Microsoft teria sido, segundo os autores da ação, inviabilizar a difusão de outros aplicativos de navegação, que poderiam servir de plataformas para que aplicativos de terceiros funcionassem de modo independente do sistema operacional, interrompendo, de certa forma, o ciclo de difusão desse sistema entre os consumidores. A tese dos autores da ação judicial não venceu porque se considerou que a prática não é anticompetitiva se a integração implicar novas funcionalidades que não podem ser verificadas quando os produtos estão desassociados12.

Com referência aos direitos de propriedade intelectual, três pontos são relevantes para o caso: (i) caracterizaram-se por custos fixos altos (custos de Pesquisa & Desenvolvimento) e (ii) por custos marginais baixos (custo da produção de uma unidade a mais do produto em que se agrega a propriedade intelectual), (iii) servindo para garantir o retorno do investimento mediante bloqueio aos free riders (concorrentes aptos a produzir o produto sem que tenham incorrido nos custos de P&D)13.

Diferentemente de um monopólio, a exclusividade do exercício do direito de propriedade intelectual tende a aumentar a produção, porque, superada a fase de P&D, a produção de cópias tem custo marginal muito baixo, de modo que, quanto maior a escala de produção, maior tende a ser a receita14. Não obstante essa diferença, os direitos de propriedade intelectual, mesmo no caso das “new economies”, estão sujeitos a medidas antitruste quando seu exercício ameaça a liberdade de concorrência15. Assim, por exemplo, de seu exercício não devem decorrer obstáculos a inovações que tenham potencial de eliminar dominância de mercado e estabelecer nova situação de dominância.

Evidenciada a reformulação desses aspectos do mercado de software, é interessante considerar que o caso U.S. v. Microsoft, embora tenha sido o caso paradigmático, não foi o primeiro a tratar das especificidades das “new economies” e de sua relação com o direito, especialmente com o direito antitruste. Houve antecedentes, valendo citar o caso IBM e o caso Microsoft de 1994.

O caso IBM foi ajuizado em 1969. Na ocasião, a empresa foi acusada de vender seus computadores “mainframe” (cujas dimensões ocupavam salas inteiras) em conjunto com softwares e serviços de manutenção. Além das críticas que o Departamento de Justiça sofreu em vista de que essa venda em conjunto consistia em prática amplamente aceita naquele mercado, também se criticou a definição muito restrita do mercado relevante, que desconsiderou outros eletrônicos que poderiam prover utilidades similares. Isto teve impacto negativo posterior no caso, especialmente porque o desenvolvimento de computadores menores rapidamente diminuiu o mercado de mainframes. O governo terminou por desistir do caso, em relação ao qual a defesa custou cerca de um bilhão de dólares para a IBM16.

O primeiro caso Microsoft foi ajuizado em 15 de julho de 199417. Tratava de diversas e supostas condutas anticompetitivas, mas teve curta duração, porque a empresa assinou um termo de compromisso com o Departamento de Justiça. Nesse documento, dentre outras provisões, se estabeleceu que a Microsoft não poderia condicionar a obtenção de licença para cópia do sistema operacional à obtenção de licença para cópia de qualquer outro software, mas também ficou explicitamente consignado que a empresa poderia continuar a desenvolver produtos “integrados”. A discussão acerca da diferença entre integração entre produtos, pró-competitiva, e a venda casada, anticompetitiva, passou a ser recorrente a partir de então.

A violação desse termo de compromisso foi um dos fundamentos da ação ajuizada contra a Microsoft em 1998. Na época, a Microsoft deteria mais de 95% do mercado de sistemas operacionais de computadores pessoais compatíveis com processadores Intel18. O aplicativo concorrente de navegação na Internet com maior participação no mercado respectivo detinha cerca de 70% desse mercado19.

Não foram considerados, como parte do mercado relevante, para fins de avaliação de dominância de mercado, os aplicativos denominados “middleware” e os produtos da concorrente Apple Computing Inc.

“Middlewares”, no caso, foram descritos como programas de computador que permitissem que aplicativos funcionassem apenas com fundamento neles, de maneira independente, portanto, da tecnologia do sistema operacional20.

Na época, considerou-se que os “middlewares” ainda não se encontravam suficientemente bem desenvolvidos para competir com sistemas operacionais complexos. Os produtos da Apple foram desconsiderados porque o preço do hardware dessa empresa seria alto a ponto de descaracterizar seus produtos como substitutos dos produtos da Microsoft. Além disso, a incompatibilidade entre os sistemas operacionais das duas empresas implicaria custos adicionais de conversão de arquivos21.

Um último fato que vale ser ressaltado é que a decisão da Corte Distrital consignou expressamente que o caso não trataria da aquisição de monopólio, mas do uso de práticas anticompetitivas para manter monopólio. Sendo assim, os principais pontos de discussão não se relacionaram à caracterização de domínio de mercado, embora essa questão esteja presente no caso e na literatura relacionada.

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1 CASS, Ronald A. Antitrust and High-tech: Regulatory Risks for Innovation and Competition. In: Engage, vol. 14, issue 1, fev./2013, p. 26.

2 MELAMED, Douglas A.; RUBINFELD, Daniel L. U.S. v. Microsoft: Lessons Learned and Issues Raised. In: FOX, Eleanor M.; CRANE, Daniel A. (org.). Antitrust Stories. Foundation Press, 2007, p. 303.

3 POSNER, Richard. Antitrust in the New Economy. Chicago: John M. Olin working paper no. 106 (2d series), The University of Chicago Law School, p. 3.

4 MELAMED, Douglas A. et al. Op. cit., p. 303.

5 Ibidem, p. 292.

6 CASS, Ronald A. Op. cit., p. 29.

7 Ibid., p. 25.

8 POSNER, Richard. Op. cit., p. 4.

9 CASS, Ronald A. Op. cit., p. 26.

10 POSNER, Richard. Op. cit., pp. 5-6.

11 MELAMED, Douglas A. et al. Op. cit., p. 304.

12 Ibid., pp. 290-291.

13 POSNER, Richard. Op. cit., p. 3.

14 Loc. cit.

15 MELAMED, Douglas A. et al. Op. cit., pp. 305-306.

16 Para mais detalhes do caso, cf.: CASS, Ronald A. Op. cit., pp. 26-27.

17 MELAMED, Douglas A. et al. Op. cit., p. 290.

18 US v. Microsoft Corp., 253 F. 3d 34 - Court of Appeals, Dist. Of Columbia Circuit, 2001, p. 51.

19 MELAMED, Douglas A. et al. Op. cit., p. 290.

20 US v. Microsoft Corp...., pp. 51-55.

21 Loc. cit.

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Bibliografia

CASS, Ronald A. Antitrust and High-tech: Regulatory Risks for Innovation and Competition. In: Engage, vol. 14, issue 1, fev./2013, pp. 25-32.

MELAMED, Douglas A.; RUBINFELD, Daniel L. U.S. v. Microsoft: Lessons Learned and Issues Raised. In: FOX, Eleanor M.; CRANE, Daniel A. (org.). Antitrust Stories. Foundation Press, 2007, pp. 287-310.

POSNER, Richard. Antitrust in the New Economy. Chicago: John M. Olin working paper no. 106 (2d series), The University of Chicago Law School, pp. 2-11.

US v. Microsoft Corp., 253 F. 3d 34 - Court of Appeals, Dist. Of Columbia Circuit, 2001.

U.S. DEPARTMENT OF JUSTICE et al. Horizontal Merger Guidelines. U.S. Department of Justice, 19/8/2010.

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*Gabriel Cozendey Pereira Silva é advogado do escritório Chediak, Lopes da Costa, Cristofaro, Menezes Côrtes, Rennó, Aragão – Advogados.

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