É interessante observar como a tecnologia influencia diretamente a vida das pessoas, afetando não só o modo de vida, que experimenta um ajustamento às novas ferramentas disponibilizadas, como também as condutas individuais e coletivas, com reflexo direto no Direito Penal. No caso do crime de furto, que inicialmente se resumia em ação única direcionada pela subtração de coisa alheia móvel, num repente, foram introduzidas várias outras figuras em seu corpo, rasgando todos os véus de condutas até então não pareadas no estatuto penal. A capacidade criadora do ser humano, com a introdução de tecnologias que proporcionam melhores condições de vida, de bem-estar, devidamente agasalhada por um marketing sedutor, provoca o interesse do gatuno em se valer do mesmo benefício, sem, no entanto, ser merecedor pelas regras estabelecidas no mercado.
Tramita na Câmara dos Deputados o PL 188/15, de autoria do deputado Cleber Verde, a fim de inserir, expressamente, a conduta de interceptar sinal de TV por assinatura como uma das modalidades do crime de furto. Em outras palavras, pode-se afirmar que se pretende inserir um novo inciso, aos vários outros já existentes, ao artigo 155, do Código Penal1.
Deste modo, infere-se que o legislador optou por encerrar um árduo embate acerca do tema: há muito se discute se a conduta do agente que intercepta o sinal de TV por assinatura, de forma a conseguir - toda ou parcialmente - a rede de programação sem pagar à empresa fornecedora, amolda-se ao crime de furto; ao de estelionato ou, ainda, em nenhum deles, restando atípica referida empreitada.
Inicialmente, imperioso observar que o crime de furto é tipificado no artigo 155, caput, do CP: Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel. No mais, o verbo subtrair traduz a ideia de que o agente se apodera de coisa que não lhe pertence, isto é, retira da vítima, sem autorização dela, a coisa alheia móvel, que agora ficará à sua disposição.
Sendo assim, o primeiro embate que se destacou na doutrina pátria foi a adequação típica da conduta em estudo. Será que a interceptação de sinal de TV se amolda ao verbo subtrair? Muitos doutrinadores respondem que não. O agente, ao praticar referida conduta, induz em erro a operadora de televisão e, mediante essa fraude, pratica o crime de estelionato.
Para outra parte da doutrina, a conduta em destaque se amolda com perfeição ao parágrafo 3º, do artigo 155, CP: Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico. Grandes doutrinadores defendem, com muita propriedade, que o sinal de TV por assinatura nada mais é do que uma espécie de energia, nos mesmos moldes da energia genética, térmica etc., todas com evidente valor econômico e que, por expressa previsão legal, fazem com que o agente responda pelo crime de furto.
Não fosse suficiente, há ainda respeitável doutrina que entende ser atípica a conduta sub studio, tendo em vista que o sinal de TV por assinatura não se caracteriza como energia e, sendo assim, não autoriza sua equiparação à energia elétrica (analogia in malam partem é vedada no ordenamento jurídico pátrio).
Em apertada síntese, tem-se o debate instaurado em nossa doutrina. Porém, toda essa discussão não se encontra assentada apenas nos livros e discussões acadêmicas pelo Brasil afora. A jurisprudência é também dividida, fazendo com que os Tribunais Superiores entendam a questão de maneira antagônica, senão vejamos.
O STJ é adepto à doutrina que defende o ajustamento da conduta ao crime de furto, por aceitar que o sinal de TV é uma espécie de energia com valor econômico equiparada à energia elétrica:
PENAL. RECURSO ESPECIAL. FURTO DE SINAL DE TV A CABO. TIPICIDADE DA CONDUTA. FORMA DE ENERGIA ENQUADRÁVEL NO TIPO PENAL. RECURSO PROVIDO. I. O sinal de televisão propaga-se através de ondas, o que na definição técnica se enquadra como energia radiante, que é uma forma de energia associada à radiação eletromagnética. II. Ampliação do rol do item 56 da Exposição de Motivos do Código Penal para abranger formas de energia ali não dispostas, considerando a revolução tecnológica a que o mundo vem sendo submetido nas últimas décadas. III. Tipicidade da conduta do furto de sinal de TV a cabo. IV. Recurso provido, nos termos do voto do Relator2.
Já o STF3 entende de forma diametralmente oposta, no sentido de se afigurar como atípica a conduta:
HABEAS CORPUS. DIREITO PENAL. ALEGAÇÃO DE ILEGITIMIDADE RECURSAL DO ASSISTENTE DE ACUSAÇÃO. IMPROCEDÊNCIA. INTERCEPTAÇÃO OU RECEPTAÇÃO NÃO AUTORIZADA DE SINAL DE TV A CABO. FURTO DE ENERGIA (ART. 155, § 3 º , DO CÓDIGO PENAL). ADEQUAÇÃO TÍPICA NÃO EVIDENCIADA. CONDUTA TÍPICA PREVISTA NO ART. 35 DA L EI 8.977/95. INEXISTÊNCIA DE PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. APLICAÇÃO DE ANALOGIA IN MALAM PARTEM PARA COMPLEMENTAR A NORMA. INADMISSIBILIDADE. OBEDIÊNCIA AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ESTRITA LEGALIDADE PENAL. PRECEDENTES. O assistente de acusação tem legitimidade para recorrer de decisão absolutória nos casos em que o Ministério Público não interpõe recurso. Decorrência do enunciado da Súmula 210 do Supremo Tribunal Federal. O sinal de TV a cabo não é energia, e assim, não pode ser objeto material do delito previsto no art. 155, § 3º, do Código Penal. Daí a impossibilidade de se equiparar o desvio de sinal de TV a cabo ao delito descrito no referido dispositivo. Ademais, na esfera penal não se admite a aplicação da analogia para suprir lacunas, de modo a se criar penalidade não mencionada na lei (analogia in malam partem), sob pena de violação ao princípio constitucional da estrita legalidade.
Portanto, verifica-se que a batalha hermenêutica há de estender enquanto não for aprovado o projeto de lei em análise. De todo o modo, a decisão do STJ parece ser mais coerente com a ciência empírica, vez que o sinal de TV a cabo se propagada mediante ondas, o que denota sua evidente característica de espécie de energia.
Verifica-se, desta forma, que o projeto de lei 188/15 pode colocar uma pá de cal em toda essa discussão, fazendo com que o agente se veja processado como incurso no artigo 155, CP, muito se aproximando do entendimento do STJ. Como novatio legis incriminadora, terá efeitos ex nunc, não podendo retroagir a condutas praticadas antes de sua entrada em vigor.
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2REsp 1123747/RS, Rel. ministro Gilson Dipp, quinta Turma, julgado em 16/12/2010, DJe 1/2/2011.
3HC 97261, Relator(a): Min. Joaquim Barbosa, segunda Turma, julgado em 12/4/2011.
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