Nada conheço de legislações alienígenas. Com as poucas informações de que disponho, eu as divido entre conservadoras, que perduram e resistem a mudanças, e receptivas a frequentes inovações. Para muitos lei boa é a lei velha, sedimentada com o passar do tempo e polida e renovada pela jurisprudência; para outros a melhor lei é a nova, aquela que surge repleta de ambições e condena à reciclagem códigos gastos pelo manuseio, para abrir espaço a nova leva de tratados, manuais, congressos, seminários, conferências, encontros.
Diz-se que desenvolvemos o hábito de enfrentar questões sociais, econômicas, políticas, através de alterações legislativas. É a crença na magia das palavras e no poder de solucionar problemas objetivos mediante a alterações legislativas.
Bons exemplos são as oito constituições; a Carta Imperial de 1824; a Constituição Republicana de 1891, a de 1934, aprovada para enterrar a Velha República e, com ela, farta seara de fraudes eleitorais; a Carta ditatorial de 1937, redigida por Francisco Campos para atender determinação de Getúlio Vargas; a Constituição literária de 1946, abatida pelo Ato Institucional de abril de 1964; a Constituição de 1967, redigida a mando do presidente Castelo Branco; a Emenda nº 1, do triunvirato militar, e a Constituição de 1988, retalhada mediante intermináveis mudanças.
De Getúlio Vargas é impossível dizer que não se preocupasse com a modernização do Brasil arcaico. Com tal objetivo decretou o Código de Processo Civil de 1939, o Código Penal de 1940, o Código de Processo Penal de 1941, a magistral Lei de Introdução ao Código Civil de 1942 e a Consolidação das Leis do Trabalho de 1943. Incluo, entre as legislações pioneiras, o Código de Águas de 1934, o Estatuto da Lavoura Canavieira, de 1941, o Decreto-Lei nº 579, de 1938, responsável pela criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), o Decreto-Lei nº 4.791, de 1942, instituindo o cruzeiro como unidade monetária, e o centavo, correspondente à centésima parte do cruzeiro, a Lei nº 48, de 1935, que alterou o Código Eleitoral.
Mais de uma codificação por ano, sempre produzidas por selecionadas equipes de juristas, os melhores da época, sob a batuta de Getúlio Vargas, o genial político cuja sombra permanece sobre o País, já decorridos mais de sessenta anos da trágica morte, em 1954.
No desenvolver da gigantesca empreitada legislativa, Getúlio se deteve diante do direito civil. Respeitou o Código de 1916, realização superior de Clóvis Bevilaqua, cujo texto ofereceu a Ruy Barbosa a oportunidade de produzir “A Réplica”, obra prima da língua portuguesa.
A Consolidação das Leis do Trabalho não se limitou a disciplinar o contrato de trabalho. Foi além; cuidou da organização sindical, imprimindo-lhe a marca do corporativismo-fascista então em voga, e trouxe, no Título VIII, a nova Justiça do Trabalho, dotada de estrutura paritária, com participação ativa de representantes de patrões e trabalhadores, destinada a “dirimir os conflitos oriundos das relações entre empregadores e empregados”. Proibida a greve, considerada recurso anti-social nocivo ao capital e ao trabalho, à nova Justiça – excluída expressamente do conjunto de integrantes do Poder Judiciário – foi conferido poder normativo, para decidir e encerrar conflitos coletivos de natureza econômica (Carta de 37, arts. 90, 138/139).
Código de Processo Civil de 1939
Sobre o CPC de 1939 escreveu o Dr. José Frederico Marques, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e catedrático da cadeira de Direito Judiciário Civil da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo:
“Com o golpe estadonovista de 1937, a Constituição de 1934 foi substituída pela Carta Constitucional outorgada em 10 de novembro daquele ano. A novas modificações foi submetida a ordem judiciária e processual do País, em conseqüência da mudança de Constituição. Dentre elas cumpre ressaltar a unificação da justiça comum, abolida que foi a antiga justiça federal.
Graças ao ministro Francisco Campos, que então ocupava a pasta da Justiça, pudemos ter o atual Cod. de Proc. Civil, que resultou de projeto elaborado pelo Dr. Pedro Batista Martins. O projeto foi publicado no Diário Oficial da União a 4 de fevereiro de 1939, a fim de receber sugestões, durante 60 dias. Aquelas que foram enviadas, examinou-as o ministro, com a ajuda e colaboração do autor do projeto e do juiz Guilherme Estelita, do Distrito Federal. Dessa revisão resultou o Cod. de Proc. Civil hoje em vigor, promulgado a 18 de setembro de 1939, para entrar em vigência a 1º de janeiro de 1940, data essa prorrogada para 1º de março do mesmo ano, pelo Dec.-Lei número 1.965, de 16 de janeiro de 1940.
Saíamos, enfim, embora não totalmente, do sistema processual que havíamos herdado do direito lusitano, libertando-nos das arcaicas formas procedimentais do processo comum ou romano-canônico. Antes, porém, com a promulgação do dec.-lei nº 960, de 17 de dezembro de 1938, já havíamos adotado as formas do procedimento oral, para os executivos fiscais.
Consumara-se e consolidara-se, também, a unificação do Direito Processual Civil. O sistema pluralista ficara para trás. Tínhamos um código único, em todo País, para regular o processo civil.
Com a promulgação da Constituição de 18 de setembro de 1946, mantido foi o unitarismo legislativo”.1
Alfredo de Araújo Lopes da Costa, autorizado processualista, sobre mesmo Código de 39 registrou:
“O texto não raro é obscuro, sem guardar muito rigor na terminologia.
Quinze anos de aplicação pelos tribunais e de exegese pela doutrina já evidenciaram inúmeros e graves senões do texto.
Algumas leis já o modificaram. Umas para melhor. Em outras, a emenda saiu pior que o soneto.
Há longos anos, dorme numa Comissão do Senado Federal o sono do olvido um anteprojeto de reforma, sem grande valia, pois se limita a umas pequeninas correções.
Em muitas de suas partes o Código precisa de remodelação profunda”.2
Já em 1959 o processualista mineiro relacionava 16 decretos-leis e leis, alteradores do Código de Processo Civil de 1939.
Código de Processo Civil de 1973
Em 1961, durante o breve período em que exerceu a Presidência da República, Jânio Quadros ordenou fossem revistos os códigos brasileiros. Segundo Celso Agrícola Barbi, professor catedrático da Universidade Federal de Minas Gerais,
“O Prof. Alfredo Buzaid, um dos mais renomados juristas do País, catedrático de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, foi encarregado dos estudos referentes ao Código de Processo Civil.
Em 8 de janeiro de 1964, apresentou ele ao Ministro da Justiça um anteprojeto de Código, precedido de Exposição de Motivos, na qual justificou sua posição de preferir a elaboração de um novo Código, em vez de apenas propor a revisão do então vigorante, que era o que constava do Decreto-Lei nº 1.608, de 18 de setembro de 1939.”3
Para Celso Agrícola Barbi,
“O trabalho foi feito com bastante rigor técnico, quer na distribuição da matéria quer na formulação dos institutos e no apuro da linguagem, procurando aproveitar a experiência de mais de 20 anos da aplicação do Código de 1939, além de incorporar os ensinamentos hauridos nos melhores Códigos estrangeiros e na doutrina brasileira e alienígena.”4
O anteprojeto foi objeto de exame em congresso nacional levado a efeito, em 1965, no município de Campos de Jordão, na vigência do regime militar. No ano de 1969 o governo nomeou comissão, integrada pelos professores Luiz Machado Guimarães, José Frederico Marques e Luiz Antonio de Andrade, para efetuar a revisão do trabalho do professor Buzaid.
Em 11 de janeiro de 1972 o professor Luiz Antonio de Andrade entregou ao professor Buzaid, a esta altura Ministro da Justiça do presidente Garrastazu Médici, as sugestões aprovadas pela comissão,
Na forma de Projeto de Lei nº 810, de 1972, o texto final foi submetido à Câmara dos Deputados e, finalmente, aprovado como Lei nº 5.689, de 11 de janeiro de 1973, publicada no DOU de 17 do mesmo mês, para entrar em vigor em 1º de janeiro de 1974.
Inconformado com alterações introduzidas no trabalho original, na solenidade de sanção o Ministro da Justiça pediu ao presidente Médici autorização para “elaborar projeto de lei a ser remetido ao Congresso, com o objetivo de restabelecer a harmonia e a unidade de conjunto, que teriam sido quebradas com a aprovação de determinadas emendas pelo Congresso”, como registrou Celso Agrícola Barbi.5
O novo Código de Processo Civil
É prematuro elogiar o Código de Processo Civil. Não me considero, todavia, em condições de criticá-lo. Pelos juristas envolvidos na elaboração do projeto, amplitude e qualidade dos debates que o antecederam, presume-se que está à altura dos anteriores, dos quais foram hauridos subsídios e experiências para confecção do que entrará em vigor.
Qual o principal obstáculo enfrentado por alguém que recorre à via judicial, em busca de tutela para direito ameaçado ou ofendido?
Certamente não repousa na falta de conhecimento dos magistrados, da primeira à última instância, tampouco em problemas de corrupção, ou na variedade de recursos colocados à disposição dos litigantes, cada qual com destinação específica, na luta para que se alcance justiça.
O problema, como já denunciara o Padre Antonio Vieira, se localiza na morosidade. No Sermão da Terceira Dominga da Quaresma, pregado na Capela Real em 1655, verberou o grande jesuíta: “Antigamente na república hebréia (e em muitas outras) os tribunais e os ministros estavam às portas das cidades; hoje as estão as cidades às portas dos ministros (,,,) dilata o julgador oito meses a demanda que se pudera concluir em oito dias; dilata-se o ministro oito anos o requerimento que se devera acabar em oito horas”.
Trezentos anos passados o problema permaneceu, e ao grande Ruy Barbosa não passou desapercebido. Na Oração aos Moços, dirigida aos acadêmicos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco em 25 de março de 1929, advertiu o sábio jurisconsulto baiano: “não sejais, pois, desses magistrados, nas mãos de quem os autos penam como as almas no purgatório, ou arrastam sonos esquecidos como as preguiças no mato”.
O CPC de 1939 determinava ao juiz, no art. 112, que dirigisse o processo “por forma que assegure às partes andamento rápido, sem prejuízo da defesa dos interessados”. O art. 122, II, por sua vez, responsabilizava civilmente o magistrado que “sem justo motivo recusar, omitir ou retardar providências que deva determinar ex-ofício ou a requerimento da parte”.
O Código Buzaid manifestou idêntica preocupação com a rapidez quando, no art. 125, II, ordenou ao juiz “velar pela rápida solução do litígio” e, no art. 133 reiterou a regra do art. 122 do Código de 1939.
Nos últimos anos o problema assumiu proporções que levaram o Congresso Nacional a introduzir, no art. 5º da Constituição, mediante a Emenda nº 45/2004, o inciso nº LXXVIII, cujo expressivo texto diz: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
A mesma Emenda prescreveu, em nome do combate à morosidade, que “a distribuição dos processos será imediata em todos os graus de jurisdição”, providência adotada de forma pioneira pelo TST, em 1º de agosto de 2000, quando assumi a presidência da Corte.
Dirigindo-me aos Srs. Ministros, disse:
“Cumprirei o biênio democraticamente, de forma participativa, com a ajuda e o aconselhamento de todos. É meta desta presidência passar o bastão ao sucessor, no último dia de julho de 2002, sem processos à espera de julgamento.
Dentro desse desiderato, ordenarei que se proceda à distribuição das revistas, agravos e dissídios coletivos que aguardam esta providência, e recomendo aos Srs. Presidentes dos EE. Regionais que procedam da mesma forma.”
Graças à eficiência dos servidores da Secretaria de Distribuição, foram distribuídos, no decorrer do mês de agosto, cerca de 140 mil processos, conforme noticiou o informativo “TST Atual”, publicado em setembro de 2000.
Estou convencido de que a vagareza processual não está nos códigos, mas entre tribunais e juízes que, salvo exceções, revelam desatenção a prazos, e a normas que lhe determinam agir com presteza.
“As leis só são boas quando as fazemos funcionar”, sentenciou Napoleão Bonaparte. Os códigos de processo anteriores não foram melhores porque se revelaram insuficientes para imprimir aos feitos a necessária celeridade. Por outras palavras, não foi possível fazê-los funcionar.
O jornal “O Estado”, na edição de 21.4.2015, dentro do Caderno Notas e Informações (A-3), referiu-se a pedidos de vista no Supremo Tribunal Federal. Ao invés de devolverem o feito “até a segunda
O jornal “O Estado de S. Paulo, na edição de 21.4.2015 traz a matéria “A Justiça e os pedidos de vista” (Caderno A3). Nela se refere, em pesada crítica, a ilustres Ministros do C. Supremo Tribunal Federal que, em meio à votação de determinados feitos, exercem o direito de pedir vista regimental, para melhor análise do tema debatido. Ao invés, todavia, de cumprirem a regra do art. 134 do Regimento Interno, que ordena a devolução dos autos “na segunda sessão ordinária subseqüente”, são retidos em gabinetes durante meses, anos, ou até se aposentarem, quando são repassados ao sucessor. O tradicional periódico, na edição do dia 30 seguinte, estampou, no mesmo local, o editorial “O preço da morosidade”, de leitura obrigatória para quem deseja entender as razões da insegurança jurídica que lavra no Brasil.
O novo Código de Processo Civil é recebido com intensas manifestações de confiança. Espera-se que, ao fazê-lo funcionar, ministros, juízes, procuradores, advogados, confirmem o clima de otimismo.
CONCLUSÃO
Ao tecer os primeiros comentários ao Código de Processo Civil de 1939, escreveu o Professor José Frederico Marques: “Consumara-se e consolidara-se, também, a unificação do Direito Processual Civil. O sistema pluralista ficara para trás. Tínhamos um código único, em todo País, para regular o processo civil”.
A observação ignorou a existência da Justiça do Trabalho, àquela altura integrada ao Judiciário pela Constituição promulgada em 18 de setembro de 1946, integração executada sem se preocupar a Assembléia Nacional Constituinte com as características singulares deste novo ramo do Poder.
Poucas horas antes da data da promulgação, o Presidente Gaspar Dutra baixou o Decreto-Lei nº 9.797, de 9.9.1946, que alterou disposições da CLT relativas à Justiça do Trabalho, com o objetivo de alterar nomes e proceder a adaptações superficiais do Título VIII – Da Justiça do Trabalho – conservando intacto o Título X – Do Processo Judiciário do Trabalho.
Os Conselhos Regionais do Trabalho passaram a se chamar Tribunais Regionais do Trabalho, o Conselho Nacional do Trabalho tomou o nome de Tribunal Superior do Trabalho, as Juntas de Conciliação e Julgamento preservaram a velha denominação.
Foram necessários 56 anos para que o Congresso Nacional se convencesse da inutilidade da representação classista, para determinar-lhe a extinção, o que se fez mediante a Emenda Constitucional nº 24 de 1999.
O Poder Normativo, cujas raízes se achavam na Carta Constitucional de 1937, somente viria a desaparecer com a promulgação da Emenda Constitucional nº 45 de 2004, conforme se extrai do art. 114, § 2º.
O Processo Judiciário do Trabalho guarda semelhança com o processo civil, embora apresenta características especiais, como o jus postulandi. A reclamação trabalhista pode ser formulada por escrito ou verbalmente e é desnecessária, no primeiro grau de jurisdição, a assistência por advogado. Sendo escrita conterá “breve exposição dos fatos de que resulte o dissídio, o pedido, a data e a assinatura do reclamante ou do seu representante”; se verbal será “reduzida a termo, em duas vias datadas e assinadas pelo escrivão ou chefe de secretaria”.
È inegável que se esse processo especial, distinto do civil, se encontra superado e envelhecido, com a permanência de dispositivos sobreviventes do período em que não integrava o Poder Judiciário.
A unidade imaginada por Frederico Marques jamais existiu, desde a promulgação da Constituição de 1946.. Urge construí-la, pois nada mais justifica a existência de dois códigos de processo, semelhantes, tomando-se o CPC como fonte subsidiária do CJT.
Nada justifica que se conserve a necessidade de juízes e advogados manterem constantemente ao alcance das mãos dois códigos. A unificação dos processos civil e trabalhista proporcionará, certamente, considerável avanço de caráter político-científico ao direito brasileiro.
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1 José Frederico Marques, “Instituições de Direito Processual Civil”, Ed. Forense, RJ, 1ª edição, 1958, vol. I, pág. 134.
2 Alfredo de Araújo Lopes da Costa, “Direito Processual Civil Brasileiro”, Ed. Forense, RJ, 2ª edição, 1959, vol. I, pág. 29.
3 Celso Agrícola Barbi, “Comentários ao Código de Processo Civil”, Ed. Forense, RJ-SP, 1ª edição 1975, vol. I, pág. 13.
4 Barbi, ob. cit., página 14.
5 Barbi, ob. cit. página 16.
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