O Direito Administrativo é uma instância jurídica complexa, com a função de regular todo o funcionamento da máquina administrativa que comanda o Estado, seja a atuação da própria Administração Pública, seja de seus funcionários. Sendo assim, pela grande extensão de seu alcance, inevitavelmente irá se aproximar de outras disciplinas jurídicas, dentre elas, o Direito Penal, interesse deste breve estudo.
Verifica-se, reiteradamente, um aumento significativo na prática dos chamados crimes contra a Administração Pública, tipificados no título XI do CP, em seus artigos 312 e seguintes. Nesta linha, indaga-se: um funcionário público que furta um bem pertencente à Administração Pública, praticando o crime de peculato, também tem sua conduta perfeitamente amoldada à lei de improbidade administrativa? Ou seria razoável o entendimento de que se trata de configuração de uma dupla punição pelo mesmo fato, o tão repudiado bis in idem?
A origem latina do termo peculato dá a entender que se trata de desvio de dinheiro ou de propriedade pública, apesar de pecus significar gado, cabeça de gado. Por se tratar de um crime contra a Administração (jamais será crime patrimonial), tipificado no artigo 312, do CP, apresenta-se como uma especialidade em relação aos crimes de furto e de apropriação indébita, sobretudo em relação ao sujeito ativo do crime.
Justamente por tal razão, conceitua-se o peculato como crime próprio, ou seja, o tipo penal exige uma especial característica do sujeito ativo do delito: ser funcionário público e, para tanto, basta consultar o artigo 327, do CP, que traz um sentido bastante elástico para a definição de funcionário público para fins penais.
Sendo assim, tem-se que, em regra, somente um funcionário público pode cometer peculato. Logo, um particular que subtrair um bem alheio, pertencente a qualquer pessoa física ou jurídica, pratica o delito de furto. Já o funcionário que subtrair um bem da Administração, incide no peculato.
Não se pode, no entanto, olvidar a regra prevista no artigo 30, CP, in fine: Não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime. Isto é, ser funcionário público é elementar, característica inerente, básica, fundamental para a existência do tipo penal, sem a qual a conduta é atípica.
Logo, conclui-se que o particular poderá responder pelo crime de peculato, quando atuar em conluio com um funcionário público. Porém, precisa participar em coautoria, contribuindo com a execução do crime, ou em participação, ajudando em etapas acessórias da empreitada criminosa e saber da condição de funcionário público de seu comparsa.
Superada a configuração criminal da conduta, depara-se com a dúvida crucial para o seguimento do presente estudo: há justa causa para, uma vez condenado o agente por crime de peculato, ser ajuizada ação civil de improbidade administrativa?
Primordialmente, há que se destacar que a lei 8.429/92 (lei de improbidade administrativa – LIA) prevê sanções aos agentes públicos em casos de enriquecimento ilícito no exercício de qualquer cargo, função, emprego ou mandato, seja na Administração direta ou indireta.
Por este caminho, um funcionário público que subtrai bens (seja moeda em espécie, sejam bens da Administração) certamente estará incidindo nas disposições da LIA, vez que evidenciado restou seu enriquecimento ilícito em razão da sua função pública.
No mais, sua conduta atinge de forma clara os artigos 9º, 10 ou 11 da LIA, a depender do caso concreto. Ato contínuo, caracterizada a improbidade, tem-se a incidência de suas sanções, previstas do artigo 12, da lei respectiva.
Neste ponto, não há que se falar em bis in idem, havendo já a condenação penal. A própria LIA é clara, em seu artigo 12, que as cominações ali previstas incidirão ao agente, independentemente das sanções penais, civis e administrativas.
Essa referida incidência vem de acordo com posição sedimentada em nossa doutrina e jurisprudência, no sentido de que as instâncias jurídicas são independentes, por sorte que a análise de um mesmo fato pode ocorrer por duas áreas diversas do Direito.
Ou seja, caso alguém, por imprudência no trânsito, venha a colidir seu veículo com outro, provocando a morte de motorista, responderá criminal e civilmente por sua conduta. O contribuinte que sonegar impostos será responsabilizado administrativa e penalmente. E assim muitas outras situações.
Deste modo, não há nada que impeça que um funcionário público se veja processado criminalmente e responda a uma ação civil pública por improbidade administrativa, sujeitando-se assim às sanções dos dois diplomas.
Nesse exato sentido, nossa jurisprudência se manifesta:
PENAL E PROCESSO DISCIPLINAR. INDEPENDÊNCIA DAS INSTÂNCIAS DEMISSÃO. MANDADO DE SEGURANÇA. 1. Doutrina e jurisprudência são unânimes quanto à independência das esferas penal e administrativa; a punição disciplinar não depende de processo civil ou criminal a que se sujeite o servidor pela mesma falta, nem obriga a Administração Pública a aguardar o desfecho dos mesmos. 2. Segurança denegada1.
DIREITO ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADEADMINISTRATIVA. POLICIAL CIVIL. PECULATO. CONDUTA REITERADA. ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. DOLO. COMPROVAÇÃO. SANÇÕES. APLICAÇÃO. DANO AO PATRIMÔNIO PÚBLICO. DESNECESSIDADE. I. Pratica ato de improbidade administrativa a policial civil que, valendo-se de seu cargo, apropria-se, em proveito próprio, dos valores que tinha posse em razão do recolhimento de fiança prestada quando da lavratura de auto de prisão em flagrante. II. É possível que uma só conduta ofenda simultaneamente mais de um dos artigos9º, 10 e 11 da Lei de Improbidade, hipótese em que prevalecerá a sanção mais grave. Aplica-se nesse caso o princípio da subsunção, segundo o qual a conduta e a sanção mais grave absorvem as de menor gravidade. III. Não constitui bis in idem a imposição das penas de perda do cargo público, de suspensão dos direitos políticos e de proibição de contratar com o Poder Público quando houver condenação por ato de improbidade, mesmo havendo sentença penal condenatória, ante a independência das instâncias. IV. Negou-se provimento ao recurso.
E o particular, isoladamente, poderá responder pela improbidade administrativa? O STJ já se manifestou pela impossibilidade de ajuizamento de ação de improbidade exclusivamente contra o particular: é necessário que ele esteja em concurso com o funcionário público2.
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1 MS 7138/DF - STJ
2 REsp 1171.017-PA
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, com doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.
*Antonelli Antonio Moreira Secanho é advogado, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação "lato sensu" em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.