Migalhas de Peso

Por que o 785 do CPC?

Dispositivo do novo Código vai na contramão da normalidade do que se espera de um processo judicial.

21/5/2015

O artigo 785 do CPC tem a seguinte redação “A existência de título executivo extrajudicial não impede a parte de optar pelo processo de conhecimento, a fim de obter título executivo judicial”. Tal dispositivo não encontra correspondente no direito processual anterior nem em diploma alienígena.

A proposição do artigo 785 é daquelas que, num primeiro momento ao analisar um Código novo, nos provoca um ar de desimportância, por vê-lo como uma falha – normal dentro de textos legislativos tão grandes – que não merecesse qualquer reflexão crítica, senão uma ácida crítica, quase em tom de galhofa sobre o seu texto. Mas, num segundo momento, quando se ouve, aqui e alhures, comentários que enxergam no dispositivo uma novidade atraente, aí o desprezo para a dar lugar à preocupação, não tanto pelo dispositivo em si, mas no sentido que nele se pode emprestar.

É regra comezinha de direito processual, fruto de um princípio informativo lógico, de que ninguém vai em juízo buscar a tutela de seu direito se este tal direito não tiver sido nem lesado ou ameaçado. Socorre-se ao Poder Judiciário e ao processo porque, pelo menos em tese, alguém pretende tutelar uma pretensão resistida ou insatisfeita. Não por acaso o artigo 17 diz que “para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade”, bem como o artigo 786 determina que “a execução pode ser instaurada caso o devedor não satisfaça a obrigação certa, líquida e exigível consubstanciada em título executivo”.

Assim, aquele que se aventura a buscar uma tutela jurisdicional sem ter interesse, ou seja, sem que exista a necessidade dessa intervenção do poder judiciário ou que use a via processual absolutamente inadequada terá como resultado uma manifestação do Poder Judiciário dizendo exatamente que será extinto o processo pela falta do referido interesse (art.485, VI).

O que se vê no artigo 785 do CPC é um tiro desferido contra a lógica, a não ser que, escondido sob essa simplória obviedade, exista um “oculto interesse” que no dispositivo nem sequer foi sugerido pelo legislador.

Qual a razão lógica para alguém, que é portador de um título executivo extrajudicial, optar pelo processo de conhecimento, a fim de obter título executivo judicial?

O questionamento acima decorre do fato de que existem premissas que tornam absolutamente incompreensível a opção ventilada no referido dispositivo, a saber:

Pelo fato de ser portador de um título executivo extrajudicial, permite que seja dado início a um processo de execução contra o devedor tendo mais rapidamente acesso aos atos de execução forçada, bem como ao exercício de atos que permitem evitar o desfalque patrimonial do responsável.

Se optar por um processo cognitivo, terá, primeiro que obter, depois de longos anos de procedimento ordinário, um título judicial que lhe permita um cumprimento provisório ou definitivo de sentença.

Enquanto o contraditório do devedor no processo de execução é eventual e posterior ao início dos atos executivos, no cumprimento de sentença ele (o contraditório) é necessário e anterior aos atos de execução. Lá vale-se dos embargos do executado que não tem ex legge o efeito suspensivo, e aqui, só se inicia o cumprimento de sentença com depois de revelado o direito exequendo, e normalmente, após o julgamento em dois graus de jurisdição pois, via de regra a apelação é dotada de efeito suspensivo.

O título executivo extrajudicial surgiu como uma técnica processual alternativa que valorizaria a economia processual, a duração razoável do processo e o respeito à vontade das partes na celebração de seus negócios jurídicos atribuindo-lhes uma eficácia executiva que só era conferida pela sentença judicial.

Entretanto, mesmo diante dessas premissas lógicas, pode-se, num exercício mental, imaginar uma série de situações que em tese poderiam justificar um devaneio do devedor em seguir a orientação do art. 785 do CPC.

A primeira situação que poderia o credor valer-se da regra do artigo 785 do CPC, seria para obter uma tutela provisória antecipada, sempre que tivesse diante de uma situação de urgência, servindo o título executivo extrajudicial como prova inequívoca do direito pleiteado.

Contudo, a premissa é errada porque, sendo portador de um título extrajudicial, se o credor estiver diante de uma situação de urgência poderá no curso ou antecipadamente ao próprio ajuizamento do processo de execução requerer a providencia antecipatória, sem que para isso precise estar diante de um processo cognitivo.

Registre-se que o artigo 799, VI do CPC, ao tratar da petição inicial do processo de execução, prescreve que "incumbe ao exequente pleitear, se for o caso, medidas urgentes". E, bem se sabe, pelo artigo 294, parágrafo único que a “tutela provisória de urgência, cautelar ou antecipada, pode ser concedida em caráter antecedente ou incidental”. Portanto, a primeira situação de utilização do artigo 785 é injustificável.

A segunda situação que poderia o credor valer-se da regra do artigo 785 do CPC seria, por exemplo, porque há alguns direitos materiais que não encontram procedimento executivo específico, havendo uma verdadeira lacuna processual a respeito dos mesmos. Para driblar este problema, poderia em tese praticar a opção do artigo 785. Assim, por exemplo, se o credor for portador de um título executivo extrajudicial que contenha obrigação de não fazer, diante de uma ameaça ao seu direito, ele certamente não encontrará nos artigos 814-823 a técnica processual executiva adequada para este desiderato. Nada obstante o legislador intitular a seção III “da obrigação de não fazer” e nela inserir o artigo 822 que em tese seria para executar tal modalidade de obrigação revelada num título executivo, não é o que se tem no tal artigo 822 que cuida da tutela do desfazer. Assim, atento a isso é que poderia imaginar a adoção do artigo 785 do CPC.

Contudo, nem aí isso se justifica, pois o CPC foi muito claro ao estabelecer a simbiose entre o Livro I e o Livro II da Parte Especial do Código como se observa nos artigos 513 e 769. Também aqui a atitude do credor seria absolutamente incompreensível.

A terceira situação que poderia o credor valer-se da regra do artigo 785 do CPC seria porque ele se sente inseguro em relação aos requisitos da certeza, exigibilidade e liquidez da obrigação revelada no título, ou seja, tem dúvidas inclusive se o título do qual é portador é realmente executivo. Nem nesta hipótese justifica-se a adoção do artigo 785 que dá a entender que realmente possa optar o credor, o que não parece ser exatamente o exemplo desta terceira situação em que o credor tem dúvida se o documento que possui é realmente um título executivo extrajudicial. Neste caso, então, basta a sentença de improcedência do eventual embargo do executado para que tenha a confirmação de que o título executivo contém todos os elementos da obrigação que o tornam hábil a promover a execução. Ademais, registre-se que a disponibilidade do processo de execução é amplamente mais favorável do que a disponibilidade da ação cognitiva, pois o regime jurídico do artigo 775 é amplamente mais favorável ao exequente do que o artigo 485, VII, §§4º e 5º em relação ao autor da ação. Portanto, nem aqui justificar-se-ia o artigo 785 do CPC. É absolutamente injusta e inadequada qualquer relação de familiaridade de propósitos entre o artigo 20 e o artigo 785, simplesmente porque naquele artigo há, entre a sentença declaratória e a sentença condenatória uma paridade jurídica que é o fato de que ambos os provimentos são obtidos por uma tutela cognitiva, e, após as recentes reformas, tanto uma sentença quanto a outra servem de título executivo judicial (art. 515, I do CPC).

Uma quarta situação que poderia o credor valer-se da regra do artigo 785 do CPC seria, já beirando a aberração comportamental, seria para obter com a ação de conhecimento os 10% da multa do artigo 523 do CPC. Mas nem aqui este comportamento se justifica. Isso porque se é verdade que este percentual não existe na execução de título extrajudicial, por outro lado, é um tremendo risco para o credor, pois a multa de 10% só incide caso, depois de iniciado o cumprimento de sentença, se o devedor não cumprir a sentença. Do contrário, se cumprir no prazo de 15 dias, livra-se da multa e dos honorários advocatícios (art. 523, §1º) ao passo que no processo de execução de título extrajudicial, se pagar o que deve nos 3 dias depois de citado (art. 827), ficará livre apenas de 50% dos honorários. Assim, também sob este prisma surreal não se justifica a escolha do artigo 785 do CPC.

O artigo 785 encerra uma equação incompreensível. É a contramão da normalidade e logicidade do que se espera de um processo judicial, e, em nosso sentir, só se justifica, ou melhor, só pode ser compreendido, se ele fizer parte de uma manobra para extinguir a execução por títulos extrajudiciais, aproximando-se do antigo regime executivo do CPC de 1939 (onde se tinha a ação cognitiva executiva e a ação executória) onde todo processo de execução era lastreado e um título executivo judicial.

Embora este tópico não seja o adequado para este tipo de discussão ou reflexão, a questão importante a ser refletida é que o ordenamento jurídico brasileiro não admite, ou simplesmente não aceita, que um título executivo extrajudicial possa ter mesma eficácia abstrata que um título executivo judicial, ou, em outros termos, que um título executivo provisório (imagine-se um acórdão impugnado por recurso especial ou extraordinário) possa ter um cumprimento de sentença com um itinerário executivo mais restrito (menos efetivo) que um título extrajudicial. A amostra desta irresignação do legislador se manifestou de modo muito claro e inequívoco quando na década passada a lei 11.382/06 alterou a redação do então artigo 587 para dizer que "é definitiva a execução fundada em título extrajudicial; é provisória enquanto pendente apelação da sentença de improcedência dos embargos do executado, quando recebidos com efeito suspensivo (art. 739)". Com isso o legislador derrubou a sumula 317 do STJ (É definitiva a execução fundada em título extrajudicial; é provisória enquanto pendente apelação da sentença de improcedência dos embargos do executado, quando recebidos com efeito suspensivo), pois admitiu que a execução de título executivo extrajudicial inicia como execução definitiva e pode se transformar em provisória sempre que o devedor oferecer apelação à sentença que julgar improcedentes os seus embargos à execução. No CPC/2015 o legislador manteve a mesma regra só que o fez no artigo 1012,§§1º e 2º quando tratou o efeito suspensivo da apelação.

Sob este raciocínio o legislador confundiu e baralhou o fenômeno da eficácia abstrata do título com a sua vulnerabilidade, ou seja, acabou por “afetar ou restringir a eficácia” a partir do seu grau de vulnerabilidade. Teria sido mais simples se tivesse, simplesmente, atribuído efeito suspensivo ex legge aos embargos à execução (opostos à execução de título extrajudicial).

Ainda, uma quinta situação que em tese poderia ser invocada para justificar a utilização do artigo 785 decorreria de uma interpretação analógica do artigo 515, III onde se lê que é título executivo judicial “a decisão homologatória de autocomposição extrajudicial de qualquer natureza”. Argumentar-se-ia que se é possível transformar um título extrajudicial em judicial, segundo a letra do dispositivo, então poderia ser feito o mesmo caminho sugerido pelo artigo 785. Contudo, não há razão lógica para este raciocínio, porque a situação é qualitativamente diferente. Nem todo título executivo extrajudicial é fruto de autocomposição, antes o contrário. E o benefício do referido dispositivo (art. 515, III) permite que se obtenha título executivo judicial a partir do extrajudicial por simples petição que se obtém uma homologação judicial. Não há processo cognitivo com fase postulatória, saneadora, instrutória, decisória e recursal. Não mesmo. É simplesmente inadequada a analogia ente as situações narradas porque o acordo extrajudicial é uma exceção à regra dentre os diversos títulos executivos extrajudiciais, de forma que os demais títulos extrajudiciais não se submetem a este regime do artigo 515, III, ou seja, não podem ser simplesmente homologados em juízo.

Assim, a letra de câmbio, a nota promissória, a duplicata, a debênture e o cheque, a escritura pública ou outro documento público assinado pelo devedor; o documento particular assinado pelo devedor e por 2 (duas) testemunhas; o contrato garantido por hipoteca, penhor, anticrese ou outro direito real de garantia e aquele garantido por caução; o contrato de seguro de vida em caso de morte; o crédito decorrente de foro e laudêmio; o crédito, documentalmente comprovado, decorrente de aluguel de imóvel, bem como de encargos acessórios, tais como taxas e despesas de condomínio; a certidão de dívida ativa da Fazenda Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, correspondente aos créditos inscritos na forma da lei; o crédito referente às contribuições ordinárias ou extraordinárias de condomínio edilício, previstas na respectiva convenção ou aprovadas em assembleia geral, desde que documentalmente comprovadas; a certidão expedida por serventia notarial ou de registro relativa a valores de emolumentos e demais despesas devidas pelos atos por ela praticados, fixados nas tabelas estabelecidas em lei não podem ser homologados em juízo para transformarem-se, numa simples canetada judicial em título executivo judicial. Pelo que dispõe o artigo 785 o que pode fazer o credor é simplesmente abrir mão do título executivo extrajudicial e dar início a um processo cognitivo com todas as fases e dialeticidade normal deste tipo de processo, para no final obter, se sair vencedor, um título judicial e aí iniciar uma execução que já poderia ter sido iniciada anos antes.

Por fim, numa sexta situação, poder-se-ia, inadvertidamente sustentar que o artigo 785 estaria de acordo com as súmulas 503 e 504 do Superior Tribunal de Justiça, que têm, respectivamente, a seguinte redação: “o prazo para ajuizamento de ação monitória em face do emitente de cheque sem força executiva é quinquenal, a contar do dia seguinte à data de emissão estampada na cártula” e “o prazo para ajuizamento de ação monitória em face do emitente de nota promissória sem força executiva é quinquenal, a contar do dia seguinte ao vencimento do título”. Nem aqui poderia fazer esta relação, pois o autor da ação monitória nestes casos não são portadores, no momento da propositura da referida demanda, de documento com eficácia de título executivo, seguindo de forma adequada à redação do artigo 700 do CPC.

Deve ser o artigo 785 mais um instrumento na orquestra destinada a tornar inoperante os títulos executivos extrajudiciais? Títulos estes que, nada obstante serem um avanço em relação a efetividade da tutela jurisdicional, acabam por ser uma forma de diminuir a interferência, e, o controle, do poder judiciário na vida das pessoas, e, isso, de certa forma, não deixa de ser uma restrição do seu poder. É incrível que ao invés de imprimir maior efetividade ao cumprimento provisório da sentença, o legislador seguiu caminho inverso, pois optou por retirar a eficácia dos títulos executivos extrajudiciais.

Terminamos como começamos...por que o artigo 785 do CPC?

__________

*Marcelo Abelha Rodrigues é sócio de Cheim Jorge & Abelha Rodrigues – Advogados Associados. Mestre e Doutor em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Coisa julgada, obiter dictum e boa-fé: Um diálogo indispensável

23/12/2024

Macunaíma, ministro do Brasil

23/12/2024

Inteligência artificial e direitos autorais: O que diz o PL 2.338/23 aprovado pelo Senado?

23/12/2024

(Não) incidência de PIS/Cofins sobre reembolso de despesas

23/12/2024

A ameaça da indisponibilidade retroativa

23/12/2024