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Considerações a respeito do acordo de leniência da lei anticorrupção

Pode-se afirmar que a celebração do acordo de leniência implica a assunção de risco considerável pela pessoa jurídica interessada.

23/3/2015

A propósito da recente regulamentação da lei 12.846/13, conhecida como “lei anticorrupção” ou “lei da empresa limpa”, pretende esse breve artigo traçar algumas considerações a respeito do acordo de leniência nela previsto.

Segundo os termos da lei, a pessoa jurídica pode ser objetivamente responsabilizada por atos lesivos à Administração, nacional ou estrangeira, assim definidos pelo art. 5º, caput, e incisos de I a V do referido diploma. Em grosso modo, a lei visa coibir a prática pelas empresas privadas de qualquer espécie de corrupção envolvendo agentes públicos e de ilegalidades em licitações e contratos administrativos.

Como consequência pela prática lesiva, as empresas podem ser condenadas, na esfera administrativa, a pesadíssimas multas, que variam de 0,1% a 20% do faturamento bruto da empresa, além da obrigação de publicação extraordinária da decisão condenatória.

Além das sanções administrativas, há ainda a previsão de um processo judicial em que poderão ser aplicadas as sanções de perdimento de bens, direitos ou valores; suspensão ou interdição parcial de atividades; dissolução compulsória da pessoa jurídica; e proibição de receber incentivos, subsídios subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas.

Prevê a lei, entretanto, a possibilidade de celebração de acordo de leniência com a Administração, hipótese em que prevê que a empresa venha a se beneficiar com a redução em dois terços da multa aplicável, e isenção das penas de publicação da decisão condenatória e de proibição de receber incentivos, subsídios, subvenções, doações ou empréstimos de órgãos ou entidades públicas e de instituições financeiras públicas ou controladas pelo poder público (art. 16, § 2º). A lei também prevê a isenção ou atenuação das sanções administrativas eventualmente incidentes dos arts. 86 a 88, da lei de licitações (lei 8.666/93).

Para a celebração do referido acordo, prevê a lei, em seu artigo 16, §1º, três requisitos cumulativos, quais sejam: I - a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito; II - a pessoa jurídica cesse completamente seu envolvimento na infração investigada a partir da data de propositura do acordo; III - a pessoa jurídica admita sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento.

E o decreto federal 8.420, de 18 de março de 2015, deu importante interpretação ao primeiro dos requisitos, estipulando, em seu art. 30, I, que a necessidade de a empresa ser a primeira a manifestar interesse em cooperar para a apuração de ato lesivo específico se dá apenas “quando tal circunstância for relevante”.

A interpretação feita pelo decreto é plenamente coerente com o texto da lei, especialmente o artigo 16, I que exige que da colaboração resulte “a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber”, de forma a evidenciar que a identificação dos demais responsáveis não é finalidade única, nem requisito indispensável à celebração do acordo.

Da análise da lei e também do decreto, fica evidente o interesse da Administração em celebrar acordos de leniência não apenas para obtenção de informações a respeito de eventuais ilícitos praticados por outras empresas envolvidas, mas também como forma de assegurar a obtenção célere de informações e documentos (art. 30, V, do dec. 8.420/15) e o reconhecimento da prática do ilícito pela pessoa jurídica (art. 16, §1º, III, da lei), com o pronto ressarcimento dos prejuízos aos cofres públicos.

A dificuldade está no fato de que os atos tipificados como infração à lei 12.846 podem também configurar hipótese de improbidade administrativa ou infrações à lei de licitações e contratos, além de outros ilícitos.

Nesse sentido, andou bem a lei ao prever a possibilidade de acordo também com relação às sanções administrativas previstas na lei de licitações, de forma a garantir um mínimo de previsibilidade e segurança jurídica com relação aos efeitos do acordo firmado.

Elogiável, também, a determinação constante no artigo 12 do decreto 8.420/15, ao estipular que “os atos previstos como infrações administrativas à Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, ou a outras normas de licitações e contratos da administração pública que também sejam tipificados como atos lesivos na Lei nº 12.846, de 2013, serão apurados e julgados conjuntamente”.

Há, no referido dispositivo, uma clara preocupação com a harmonização do sistema, de modo a evitar julgamentos conflitantes na esfera administrativa e favorecer um efetivo juízo de razoabilidade e proporcionalidade das sanções aplicadas.

A despeito dos cuidados tomados, entretanto, fato é que praticamente todas as infrações previstas na lei 12.846/13 são também tipificadas pela lei 8.429/92, a chamada lei de improbidade administrativa.

Para ressaltar a proximidade entre os tipos previstos como infração à lei anticorrupção e à lei de improbidade, anote-se, por exemplo, que o ato de “frustrar a licitude de processo licitatório” (art. 10, VIII, da lei de improbidade) se enquadra facilmente nos tipos previstos pelo art. 5º, IV, “a” e “d”, da Lei da “empresa limpa”, que também tratam dos atos de “frustrar ou fraudar licitação pública”.

Fato é que na quase totalidade dos casos, admitida a prática do ilícito para a celebração do acordo de leniência a empresa estaria admitindo sua participação em ato de improbidade administrativa sujeito às gravíssimas sanções previstas no artigo 12 da lei 8.429/92.

Uma vez admitida a participação no ilícito, restaria ao autor da ação de responsabilização por ato de improbidade apenas a comprovação do elemento subjetivo da conduta (dolo ou, no caso dos atos tipificados pelo art. 10 da lei 8.429/92, culpa grave), requisito dispensado pela lei 12.846 ao prever uma discutível responsabilidade objetiva.

A solução evidente para garantir um mínimo de segurança e previsibilidade nesses casos seria, então, chamar o Ministério Público para a mesa de negociações, incluindo no acordo também eventuais sanções por ato de improbidade administrativa.

Nesse caso, no entanto, são inúmeras as dificuldades, a começar pelo disposto no artigo 17, §1º da lei 8.429/92, que proíbe a transação, acordo ou conciliação nas ações de responsabilização por ato de improbidade.

Proibida a transação, acordo ou conciliação no curso da ação, cabe questionar se o Ministério Público está obrigado a propor a ação ou pode dela abrir mão, antes de sua propositura.

Se não estiver convencido da presença do elemento subjetivo da conduta, é certo que o Ministério Público não estará obrigado a ajuizar a ação. Decidido pelo ajuizamento da ação, também não estará obrigado a requerer a aplicação de todas as penalidades previstas na lei por expressa autorização do artigo 12, caput da lei 8.429/92, podendo ainda reconhecer a falta de interesse no pleito de ressarcimento pelo fato de o dano já ter sido integralmente ressarcido em decorrência do acordo de leniência.

Todas essas análises, entretanto, deverão ser feitas pelo membro do Ministério Público competente para o ajuizamento da ação, que goza de independência funcional e não vincula, necessariamente, o entendimento daqueles que, no mesmo órgão, pensem de forma diferente.

De tudo o que foi exposto, mesmo sem levar em consideração eventuais repercussões previstas na legislação penal ou no âmbito da defesa da concorrência, além das inegáveis consequências que o acordo de leniência trará para as pessoas físicas envolvidas, pode-se afirmar que a celebração do acordo de leniência implica a assunção de risco considerável pela pessoa jurídica interessada.

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*Marcelo Certain Toledo e Francisco Octavio de Almeida Prado Filho são advogados do escritório Malheiros, Penteado, Toledo e Almeida Prado - Advogados.

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