Migalhas de Peso

Penhora on line: efetividade x certeza

Tema de indubitável atualidade, a penhora on line, iniciada e, conforme se sabe, já bastante difundida no processo que se desenvolve na Justiça do Trabalho, passou a fazer parte, mais recentemente, da realidade do processo civil.

7/3/2006


Penhora on line: efetividade x certeza


Rudolf Hutter*

Tema de indubitável atualidade, a penhora on line, iniciada e, conforme se sabe, já bastante difundida no processo que se desenvolve na Justiça do Trabalho, passou a fazer parte, mais recentemente, da realidade do processo civil. A tendência – podemos afirmar, sem receio de errar – é que a prática da penhora on line seja incorporada, de modo crescente, à rotina do processo civil, exigindo assim, ante a notória especificidade do tema, uma análise acerca da legitimidade de tal medida.1


A abordagem que se inicia, breve – é bom que se diga, diante da importância do tema, não pretende enfrentar aspectos relacionados à operacionalização da penhora on line, tal como as características do suporte informático ali empregado, tampouco a necessidade, ou não, de legislação específica, até porque, quanto a este ponto, entendemos que as regras processuais existentes, diante de uma interpretação dinâmica do Direito2, são suficientes para autorizar a respectiva prática, e isto porque encerram apenas medidas preparatórias para o ato constritivo, legalmente autorizado.


Pois bem, uma característica específica da penhora on line consiste na expropriação antecipada, porque imediata, de parcela (senão a totalidade) do "ativo circulante" do alegado devedor. A diferença substancial, portanto, reside no fato de que o alegado devedor sempre perderá a disponibilidade do numerário constrito, havendo imediata subtração, isto é, inexorável perda da posse direta, pouco importando, pelo que se vê na maioria das (precipitadas) decisões, se o numerário é indispensável à subsistência do alegado devedor, se pessoa natural, ou à normalidade das atividades, se empresária. Em outras palavras, o devedor, no caso da penhora on line, perde, no momento em que esta ocorre, a disponibilidade do numerário objeto da constrição.


Embora o valor efetividade constitua um dos objetivos a serem cumpridos no processo judicial, reforçado pela EC nº. 45, não menos importante se afigura a certeza3, ainda mais em se tratando de atos de invasão ao patrimônio do devedor, consentidos no processo de execução. Encontrar, em cada caso concreto, a equação perfeita envolvendo aqueles dois fatores, sem que haja, todavia, preponderância absoluta de qualquer um deles, representa um dever imposto pela Lei Maior aos entes estatais competentes.4


Luís Roberto Barroso observa que "a dogmática jurídica brasileira sofreu, nos últimos anos, o impacto de um conjunto novo e denso de idéias, identificadas sob o rótulo genérico de pós-positivismo ou principialismo. Trata-se de um esforço de superação do legalismo estrito, característico do positivismo normativista, sem recorrer às categorias metafísicas do jusnaturalismo. Nele se incluem a atribuição de normatividade aos princípios e a definição de suas relações com valores e regras; a reabilitação da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana".5


Tratando-se, os valores acima referidos, de direitos fundamentais, a proporcionalidade surge como parâmetro constitucional para justificar eventual limitação de cada qual, sempre diante de um caso concreto. Na lição de Daniel Sarmento, "o princípio da proporcionalidade estabelece critérios intersubjetivamente controláveis para resolução de colisões envolvendo interesses constitucionais. De acordo com a posição dominante, cujas origens remontam à dogmática germânica, este princípio poderia ser desdobrado em três subprincípios, assim sintetizados por Luís Roberto Barroso: '(a) da adequação, que exige que as medidas adotadas pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos; (b) da necessidade ou exigibilidade, que impõe a verificação da inexistência de meio menos gravoso para atingimento dos fins visados; e da (c) proporcionalidade em sentido estrito, que é a ponderação entre o ônus imposto e o benefício trazido, para constatar se é justificável a interferência na esfera dos direitos do cidadão'".6


No âmbito do processo de execução fundada em título extrajudicial, o confronto entre a efetividade e a certeza não é resolvido a priori7, pela Lei Maior, em favor do sedizente credor, de modo que não seria justificável uma resolução imediatamente favorável à efetividade.8 Em suma, será sempre possível questionar, à luz da normatividade dos princípios constitucionais, a legitimidade de uma decisão judicial, ou a eficácia de uma norma infraconstitucional9, que resolva a priori em benefício da efetividade e, por conseguinte, em detrimento da certeza.


Neste sentido, importa ressaltar, tendo em vista o tratamento dispensado pelo legislador ordinário, que a força executiva atribuída aos títulos extrajudiciais não se justifica em termos constitucionais, resolvendo-se tão somente no campo de política legislativa.10 Com efeito, o ordenamento jurídico infraconstitucional equipara o título executivo extrajudicial aos efeitos da sentença condenatória passada em julgado, resultando daí a definitividade da execução, que se verifica em ambos os casos.11


Chega-se assim à questão crucial: diante dos direitos fundamentais estampados em sede constitucional, seria justificável a penhora on line em execução fundada em título extrajudicial?


A resposta mais razoável é a negativa. Realmente, tendo em vista as particularidades da penhora on line, especialmente a que consiste na imediata subtração de numerário do alegado devedor – fato que pode dificultar ou até mesmo impedir, o que é mais gravoso, a subsistência da pessoa natural ou a continuidade da pessoa jurídica –, não se afigura proporcional tal medida, ante a inaceitável certeza formalmente atribuída, por lei ordinária, à obrigação consubstanciada no título executivo extrajudicial.12


Conforme ressaltado acima, a questão central, como qualquer outra de natureza jurídica, deve ser resolvida tendo em vista um caso concreto. Neste sentido, é evidente que, mesmo em execução fundada em título extrajudicial, a penhora on line será admissível se (a) o devedor, devidamente citado, não exercer a faculdade prevista no artigo 652, caput, do Código de Processo Civil, bem como, caso verificada a hipótese anterior, se (b) não forem localizados outros bens passíveis de penhora ou, se encontrados, a soma não atinja o valor reclamado pelo credor. Tais hipóteses devem ser verificadas cumulativamente, objetivando legitimar eventual penhora on line em execução fundada em título extrajudicial.


Portanto, de ordinário, a penhora on line seria justificável exclusivamente no âmbito da execução definitiva, entendida esta (a única legítima, a nosso sentir) como aquela fundada em título executivo judicial, privilegiando-se, assim, como deve ser, a dimensão do peso (in casu, a certeza).
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1São as anomalias, espécie de violação das expectativas paradigmáticas, e as crises que provocam no cientista um repensar do paradigma normal, ou para mantê-lo ou para substituí-lo pelo emergente. Trata-se de uma espécie de reconhecimento, ou melhor, de uma consciência de crise (cf. Geovany Cardoso Jeveaux, A simbologia da imparcialidade do juiz, Rio de Janeiro, Forense, 1999, p.70).

2O sentido e o alcance da norma jurídica se alteram à medida que se modificam os ambientes nos quais a norma jurídica opera. O avanço tecnológico, observado pelos pensadores (e não meramente operadores) do Direito, permitiu a substituição de papéis por meios informáticos.
3“A tutela jurisdicional prometida na Constituição é tutela de cognição exauriente, que persegue juízo o mais aproximado possível da certeza jurídica” (Teori Albino Zavascki, Antecipação da tutela, 3. ed. rev. e ampl. São Paulo, Saraiva, 2000, p.24).

4“O direito à defesa, assim como o direito à tempestividade da tutela jurisdicional, são direitos constitucionalmente tutelados. Todos sabem, de fato, que o direito de acesso à justiça, garantido pelo art. 5º, XXXV, da Constituição da República, não quer dizer apenas que todos têm direito de ir a juízo, mas também quer significar que todos têm direito à adequada tutela jurisdicional ou à tutela jurisdicional efetiva, adequada e tempestiva. O legislador infraconstitucional, portanto, está obrigado a construir procedimentos que tutelem de forma efetiva, adequada e tempestiva os direitos” (Luiz Guilherme Marinoni, Tutela antecipatória: julgamento antecipado e execução imediata da sentença, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1999, p.18).

5Prefácio da obra Interesses Públicos vs. Interesses privados: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público, Daniel Sarmento organizador, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2005.
6Daniel Sarmento, “Interesses Públicos vs. Interesses Privados na Perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional”, in Interesses Públicos vs. Interesses privados: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público, Daniel Sarmento organizador, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2005, p.99, grifamos.

7“Uma norma que preconiza a supremacia a priori de um valor, princípio ou direito sobre outros não pode ser qualificado como princípio. Ao contrário, uma princípio, por definição, é norma de textura aberta, cujo fim ou estado de coisas para o qual aponta deve sempre ser contextualizado e ponderado com outros princípios igualmente previstos no ordenamento jurídico. A prevalência apriorística e descontextualizada de um princípio constitui uma contradição em termos” (Gustavo Binenbojm, “Da Supremacia do Interesse Público ao Dever de Proporcionalidade: Um Novo Paradigma para o Direito Admnistrativo”, in Interesses Públicos vs. Interesses privados: Desconstruindo o Princípio de Supremacia do Interesse Público, Daniel Sarmento organizador, Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2005, p.166).

8A referência à vetusta noção de processo civil do autor é inequívoca, impondo-se a “consciência de que a tutela jurisdicional é destinada àquela das partes que tiver razão no processo e na medida em que o tiver, devendo o processo ser suficiente para oferecer proteção ao autor ou ao réu, na medida do direito de cada um ou mesmo da inexistência de qualquer vínculo jurídico-material envolvendo os litigantes” (Cândido Rangel Dinamarco, Intervenção de terceiros, São Paulo, Malheiros Editores, 2002, p.189).
9“Leis, atos administrativos, sentenças etc, são legítimos como decisões quando e enquanto se reconhecer que são obrigatoriamente válidos e devem fundamentar o próprio comportamento (...) Para a absorção da incerteza e a contração gradual desse compromisso o processo judiciário, enquanto sistema social, tem de se diferenciar e ser autônomo, sem o que a legitimação é impossível. Significa que tem de criar um ambiente propício, próprio, adequado, seu (este da adoção de papéis, do resguardo das expectativas e, principalmente, da redução das frustrações), para garantir a obediência da decisão como premissa de comportamento, legitimando-a” (Geovany Cardoso Jeveaux, ob. cit., pp.35/36).

10Os títulos executivos extrajudiciais, assim taxativamente estabelecidos por lei, têm em comum a participação do devedor em sua formação. Todavia, tal aspecto, cuja lembrança é necessária, não supera a ponderação que resulta implícita do princípio da proporcionalidade, de índole constitucional. Ademais, deve-se refletir se o aspecto estatístico levantado pelos defensores dos títulos extrajudiciais justifica uma única execução injusta, tendo em vista os efeitos danosos, muitas vezes irreversíveis, que os atos ali praticados podem causar.

11A equiparação em tela passaria por um teste de constitucionalidade?
12“O art. 620 do CPC consagra favor debitoris e tem aplicação quando, dentre dois ou mais atos executivos a serem praticados em desfavor do executado, o juiz deve sempre optar pelo ato menos gravoso ao devedor” (AgRg no REsp 686157/RJ, 1ª Turma, rel. Min. Luiz Fux, DJ 27.6.2005 p. 256).
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*Advogado militante em São Paulo, pós-graduado em Direito Processual e Direito Constitucional, pós-graduando em Direito Contratual; bacharel em administração de empresas. Autor do livro "Os Princípios Processuais no Juizado Especial Cível", Iglu Editora, 2004.





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