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O sigilo médico, o aborto e a lei

A relação médico-paciente, além de criar um vínculo obrigacional, vem acobertada pela confiabilidade que deve orientar as partes envolvidas.

1/3/2015

Noticiou a imprensa que em São Paulo um médico atendeu uma jovem de 19 anos com hemorragia pós-aborto, em razão de ter ingerido quatro comprimidos de um medicamento indicado para úlcera e considerado abortivo. Após o procedimento, o médico comunicou o fato à autoridade policial, que lavrou o auto de prisão em flagrante delito pelo abortamento praticado pela paciente, com o consequente arbitramento de fiança para ser colocada em liberdade. Ainda segundo a notícia, o Conselho Regional de Medicina de São Paulo irá instaurar sindicância para apurar a falta ética do médico que, uma vez provada, poderá acarretar a cassação do seu registro profissional1.

O artigo 5º, §3º do CPP faculta a qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de crime em que caiba ação pública, que é o caso do abortamento, poderá, verbalmente ou por escrito, comunicar o fato à autoridade policial, que irá instaurar inquérito, se procedente a notitica criminis. Assim, levando-se em consideração o fato narrado, o vizinho da mulher tem plena legitimidade para fazer a delação à autoridade policial que, obrigatoriamente, deverá dar início à persecução penal. O médico que a atendeu e realizou o procedimento, no entanto, não está compreendido neste permissivo processual.

Parece até uma incoerência, porém há razões legais para tanto.

A relação médico-paciente, além de criar um vínculo obrigacional, vem acobertada pela confiabilidade que deve orientar as partes envolvidas. No instante em que a paciente narrou e confidenciou ao médico a prática do abortamento, elegeu-o como depositário e guardador de seu segredo, permitindo a realização de exames clínicos, obstétricos e complementares para realizar o procedimento indicado para o caso. Tais informações são imprescindíveis e devem ser utilizadas somente para providências em favor da paciente. Tamanha é a importância do sigilo médico que, mesmo que o fato seja de conhecimento público ou até mesmo que o paciente tenha falecido, permanece vivo para sempre.

Tanto é que o CP, em seu artigo 154, erigiu à categoria de crime a revelação, sem justa causa, de segredo de que o agente tenha ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão e cuja revelação possa produzir dano a outrem. É importante observar que a definição de segredo no Código Penal corresponde a todo fato cuja divulgação a terceiro possa produzir um dano para seu titular. A intenção da lei é fazer prevalecer a confiança pública depositada no profissional, justamente para que seu serviço possa ser executado com toda segurança, presteza, sem qualquer atropelo coativo. Preserva a vida privada e a intimidade do paciente, expressões blindadas pela Constituição Federal e Código Civil para preservar o foro íntimo como o asilo inviolável do cidadão, nos moldes do peace of mind do direito americano. Assim, com a divulgação do segredo quebra-se o pacto convencionado entre as partes e a publicidade indevida passa a representar uma invasão à vida privada do paciente acarretando não só a inconveniente investigação policial, como também a intranquilidade do espírito pela intromissão alheia.

É certo que o sigilo relatado, compreendendo somente aquele revelado no exercício profissional, não vem revestido de caráter absoluto, pois, em algumas hipóteses, pode ser quebrado, tais como dever legal, justa causa ou autorização expressa do paciente. Mas, no caso presente, ausentes tais requisitos.

A preservação da confiança da paciente que revelou ao médico circunstâncias de caráter íntimo e direcionadas para uma prestação de serviço mais eficiente, mesmo que verse sobre fato criminoso, não pode provocar, em contrapartida, a sua exposição e submetê-la a uma investigação penal. O Código de Ética Médica (resolução CFM 1931/09), que contém as normas que devem ser seguidas pelos profissionais, em seu artigo 73 é taxativo ao afirmar que é vedado ao médico "revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente".

Por outro lado, ainda relacionado com o tema, o Ministério da Saúde vem realizando sistemáticas campanhas que colocam a mulher como destinatária de novos serviços e benefícios, principalmente a fundida no documento "<_st13a_verbetes w:st="on">Norma <_st13a_verbetes w:st="on">técnica de <_st13a_verbetes w:st="on">atenção humanizada ao abortamento", <_st13a_verbetes w:st="on">além dos esclarecimentos aos <_st13a_verbetes w:st="on">profissionais da <_st13a_verbetes w:st="on">saúde <_st13a_verbetes w:st="on">responsáveis <_st23a_dm w:st="on">pelo procedimento do <_st13a_verbetes w:st="on">ato <_st13a_verbetes w:st="on">médico.

Fato anterior a respeito do sigilo médico diante de uma situação de aborto ensejou a consulta 24.292/00 do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, que foi conclusiva no sentido de recomendar a instauração do devido processo administrativo para sua apuração.

Concluindo, todo o imbróglio foi criado pelo fato de ter o médico comunicado o abortamento à autoridade policial. Daí surgem várias outras situações jurídicas, tais como o erro do médico em acreditar que fosse obrigado a denunciar o fato, o direito da paciente em pleitear indenização cível, a constituição de prova ilícita para a apuração penal, sem falar ainda do processo de cunho ético.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde, advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.


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