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Nova resolução da ANS retoma a política pública de proteção à mulher na saúde

Norma visa incentivar parto normal na rede suplementar de saúde, sob a perspectiva de uma política pública de redução de riscos à mulher e ao bebê.

28/1/2015

Recentemente foi publicada a Resolução Normativa nº 368/2015 pela ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar1, autarquia vinculada ao Ministério da Saúde responsável pela gestão da Saúde Suplementar.

Esta resolução era esperada há muito tempo e é resultado de uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal, em curso na 24ª. Vara Cível Federal de São Paulo, ajuizada em face do excessivo número de cirurgias cesarianas na rede suplementar: quase 85% (oitenta e cinco por cento) dos nascimentos é feito por cirurgia no setor2.

A ACP, por sua vez, foi motivada por uma denúncia das próprias mulheres e usuárias dos planos de saúde, que se organizaram em rede no movimento social “Parto do Princípio”, trazendo em comum a narrativa de terem realizado o pré-natal com a intenção de ter um parto normal, mas os desfechos foram cirúrgicos por determinação exclusivamente médica, contra a sua vontade e muitas vezes com justificativas questionáveis sob o ponto de vista clínico.

Esta situação foi confirmada na pesquisa “Trajetória das mulheres pela definição pelo parto cesáreo”, conduzida pela Fundação Oswaldo Cruz em 2008, que constatou que 70% (setenta por cento) das mulheres tinha preferência pelo parto normal, mas 90% (noventa por cento) delas tiveram seus filhos por cesariana3 - 92% (noventa e dois por cento) por procedimento antes do trabalho de parto.

Dados do Ministério da Saúde indicam que as cirurgias cesarianas causam 3 (três) vezes mais risco de morte para a mãe e 120 (cento e vinte) vezes mais chances do bebê nascer com complicações respiratórias4, além de estudos indicarem maiores chances da criança desenvolver a longo prazo asma, alergias e doenças autoimunes tais como a diabetes tipo 1 (20%) e Doença de Crohn.

A cesariana também aumenta o risco de prematuridade dos bebês nos casos da cirurgia ser feita sem real indicação clínica – o que aumenta também o risco de morte da criança, pois cerca de 25% (vinte e cinco por cento) dos óbitos neonatais são causados pela prematuridade4.

A situação é grave. A relação entre a mortalidade materna/neonatal e o alto número de cirurgias foi reconhecida no Relatório 2014 da PMCH – Partnership for Maternal, Newborn and Child Health (Parceria para Saúde Materna, Neonatal e Infantil da Organização Mundial de Saúde5, e vem sendo estudada por conta do impacto nos índices de mortalidade materna, que no Brasil atingem o patamar de 69 (sessenta e nove) mulheres a cada 100.000 nascidos vivos atualmente (a Organização Mundial de Saúde considera ALTA a taxa a partir de 50/100.000)6.

Desde o ano 2000 o Brasil vem implantando uma política pública de atenção à saúde das mulheres focada em diminuir a mortalidade materna e neonatal, considerando as conclusões do Relatório da CPI da Mortalidade Materna7 instaurada naquele ano, onde se apurou que 68% (sessenta e oito por cento) da mortalidade materna ocorre durante os partos e que em 98% (NOVENTA E OITO POR CENTO) DOS CASOS AS MORTES SÃO EVITÁVEIS.

Porém, atualmente, com o elevadíssimo índice de nascimentos cirúrgicos na rede suplementar, e 56% (cinquenta e seis por cento) na média nacional, verificamos há grande resistência do setor de saúde para efetivar as políticas públicas de incentivo ao parto normal e que as mulheres não estão sendo informadas dos riscos associados ao parto cirúrgico, o que expõe mulheres e bebês a riscos desnecessários cujas consequências são arcadas isoladamente pelas mulheres.

A não efetividade desta importante política pública de proteção à maternidade implica em grave violação de direitos humanos. Destacar uma parcela da população (gestantes) que vem sendo impedida de receber seu direito à saúde no mais elevado nível disponível e livre de riscos de morte desnecessários (direito previsto no artigo 12 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, ratificado pelo Brasil de 1992)8, significa atribuir um tratamento discriminatório às mulheres, o que, por sua vez, constitui violação à Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher de 1979 (CEDAW), ratificada integralmente pelo Brasil em 2002 [9].

Considerar honestamente os riscos do procedimento cirúrgico como via de parto é uma questão de saúde pública que, na verdade, está harmonizada com todos os preceitos legais atinentes ao direito à saúde e fundamentado no preceito constitucional constante do art. 196:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Esta premissa é repetida na lei da Saúde (8.080/90), que dispõe sobre o dever do Estado em implementar políticas de redução de riscos, de alcança universal e igualitário.

Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

Nesse sentido, o estímulo ao parto normal enquanto política nacional de redução de riscos à mulher e ao bebê deve ser dar na rede pública e também na rede privada de atenção à saúde. E no âmbito da Saúde Suplementar, o estímulo ao parto normal é expressamente um princípio balizador do setor. A resolução 338/13 da ANS determina expressamente que:

Art. 3º A atenção à saúde na saúde suplementar deverá observar os seguintes princípios:

I - atenção multiprofissional;

II - integralidade das ações respeitando a segmentação contratada;

III - incorporação de ações de promoção da saúde e prevenção de riscos e doenças, bem como de estímulo ao parto normal;

IV - uso da epidemiologia para monitoramento da qualidade das ações e gestão em saúde; e

Não à toa o Ministério da Saúde fala em “epidemia de cesarianas” na rede suplementar, já que este é um principio de atuação para analisar resultados e determinar condutas de saúde.

Especialmente, ressaltamos que existe vedação aos médicos de realizarem cirurgias cesarianas eletivas, antes do início do trabalho de parto e sem necessidade terapêutica comprovada, que resultem em nascimentos prematuros, constante do decreto 10.931/32 - vigente atualmente e que foi revigorado pelo decreto de 12/07/91:

Art. 16 É vedado ao médico:

f) dar-se a práticas que tenham por fim impedir a concepção ou interromper a gestação, só sendo admitida a provocação do aborto e o parto prematuro, uma vez verificada, por junta médica, sua necessidade terapêutica;

O estímulo ao parto normal é diretriz terapêutica do Ministério da Saúde e medida de efetivação dos direitos humanos fundamentais das mulheres, consolidada no Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal de 200410. Gerado pelo Ministério da Saúde, este documento tem força vinculante em todo o âmbito da Saúde, pública e particular, de acordo com o art 19-Q da lei 8.080/90.

Fruto da diretriz terapêutica de estímulo ao parto normal, houve os posteriores desdobramentos que se consolidaram na criação da Atenção Humanizada ao Parto e Nascimento como política nacional de redução da mortalidade materna/neonatal definida na Portaria 1.067/05 do Ministério da Saúde11, bem como na criação da Lei do Acompanhante no Parto (lei 11.108/05) e na lei de Vinculação da gestante à maternidade (11.634/07).

Como política nacional, a atenção humanizada ao parto e nascimento pressupõe que a mulher e a criança são sujeitos de direitos, detentores de direitos humanos fundamentais tais como dignidade da pessoa humana, integridade física e atenção qualificada e eficiente à saúde. Nesse sentido, a política de humanização determina que as condutas médicas sejam decididas em conjunto pela mulher e equipe de saúde:

A Atenção Obstétrica e Neonatal, prestada pelos serviços de saúde deve ter como características essenciais a qualidade e a humanização. É dever dos serviços e profissionais de saúde acolher com dignidade a mulher e o recém-nascido, enfocando-os como sujeitos de direitos. (...)

A atenção com qualidade e humanizada depende da provisão dos recursos necessários, da organização de rotinas com procedimentos comprovadamente benéficos, evitando-se intervenções desnecessárias e do estabelecimento de relações baseadas em princípios éticos, garantindo-se a privacidade, a autonomia e compartilhando-se com a mulher e sua família as decisões sobre as condutas a serem adotadas.

Determinar que a decisão sobre os procedimentos seja compartilhada, além de garantir a efetividade dos direitos humanos fundamentais da mulher e do bebê, reitera outras disposições legais que condicionam os procedimentos ao consentimento livre e informado do paciente, como encontramos:

a) No Código Civil, art. 15:

Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.

b) E no Código de Ética Médica, arts. 22 a 24 e 31:

Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte.

Art. 23. Tratar o ser humano sem civilidade ou consideração, desrespeitar sua dignidade ou discriminá-lo de qualquer forma ou sob qualquer pretexto.

Art. 24. Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo.

É vedado ao médico:

Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte.

Ou seja, a escolha da via de parto não é uma escolha exclusivamente do médico. Toda e qualquer conduta adotada no corpo da mulher deve ser expressamente autorizada por ela após ter recebido do profissional as informações claras e adequadas sobre os benefícios e os riscos de cada procedimento.

Lembramos ainda que na saúde suplementar, onde a usuária é consumidora do plano de saúde, vigora especialmente a exigência legal da escolha informada sobre os riscos para aquisição do serviço da cirurgia cesariana:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;

II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e

III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;

Neste aspecto, acertada a resolução 368/15 da ANS que ao instituir a obrigatoriedade do percentual de cesarianas do profissional e do estabelecimento, permite à usuária do plano escolher um profissional que pratique a conduta que estiver mais de acordo com as convicções da mulher, evitando, por exemplo, que uma mulher que deseje o parto normal seja atendida por um profissional com taxa de 100% de nascimentos cirúrgicos.

Igualmente acertadas as determinações sobre o Cartão da Gestante e, especialmente, a Carta de Informação à Gestante, que são instrumentos preciosos de empoderamento da mulher quanto aos seus direitos sexuais e reprodutivos, na atual concepção destes como direitos humanos fundamentais das mulheres constante na Declaração de Pequim 1995, que considera o empoderamento feminino uma ferramenta chave para atingimento das metas do milênio.

Sobre o partograma, que é um documento gráfico que registra a evolução do trabalho de parto, este é um instrumento que permite avaliar se a escolha do procedimento cirúrgico tem justificativa clínica. Apesar de instituído em âmbito público e particular pela RDC 36/08 da Anvisa, este importante documento não vinha sendo utilizado corretamente, o que motivou a elaboração desta política do Ministério da Saúde/ANS, de ordem econômica, que condiciona o pagamento do procedimento ao preenchimento do partograma.

Como política pública, a nova resolução é uma medida de redução de riscos muito benvinda, uma vez que o partograma, por só poder ser preenchido durante o trabalho de parto, visa reduzir o risco de prematuridade dos bebês nascidos de procedimento cirúrgico eletivo - fora do trabalho de parto e com alta taxa de mortalidade.

Vale lembrar que a Resolução NÃO IMPEDE A REALIZAÇÃO DE CESARIANA A PEDIDO DA MÃE, que continua com seu direito de solicitar junto ao seu médico o procedimento eletivo.

Nesses casos, a SOGESP (Sociedade de Ginecologia e Obstetrícia de São Paulo) recomenda que a mulher assine um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido12 onde se declare ciente dos riscos à ela e a seu bebê associados à cirurgia. Porém, o plano de saúde não vai custear o procedimento, que deve ser pago particular – a exemplo do que já ocorre com as demais cirurgias eletivas como é o caso das cirurgias plásticas.

Já a FEBRASGO (Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia) recomenda que as gestantes elaborem durante o pré-natal o seu Plano de Parto, um documento feito por escrito contendo as principais escolhas da mulher para o seu parto13.

O Plano de Parto já é uma realidade no município de São Paulo e foi instituído pela lei municipal 15.894/14.

A recomendação da FEBRASGO depende apenas da sanção do Governador para ser estendida a todas as gestantes do território paulista, tendo em vista a recente aprovação na Assembléia Legislativa de São Paulo, por unanimidade, do PL 712/13 de autoria do Dep. Carlos Bezerra14, propondo tanto o Plano de Parto para formação do consentimento da gestante como também consagrando o direito da mulher à receber adequada anestesia no parto normal.

De âmbito nacional, destacamos por fim a iniciativa do PL 7.633/14 proposto pelo Dep. Jean Wyllys que sensibilizou-se com esta importante questão feminina e elaborou em parceria com a Associação Artemis o texto do PL que garante a assistência humanizada às mulheres no parto, elevando à categoria de lei as políticas públicas de saúde já existentes, prevendo especialmente medidas como Plano de Parto, direito à anestesia no parto normal e proteção da mulher e da criança contra a violência obstétrica15.

__________________

Referências

1 - Resolução 368/2015 ANS

2 - Percentual de partos cirúrgicos na saúde suplementar

3 - Pequisa FioCruz Trajetória das mulheres na definição pelo parto cesáreo

4 - Riscos da Cesariana divulgados pelo Ministério da Saúde

5 - Relatório OMS - PMNCH 2014 sobre o Brasil

6 - Pesquisa FioCruz Nascer no Brasil

7 - Relatório Final da CPI da Mortalidade Materna de Agosto/2001

8 - Promulgação do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais

9 - Promulgação do Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher de 1979

10 - Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal

11 - Portaria 1.067/2005 do Ministério da Saúde

12 - Parecer SOGESP

13 - Parecer FEBRASGO

14 - Projeto de Lei Estadual (SP) do Dep. Carlos Bezerra

15 - Projeto de Lei Federal do Dep. Jean Wyllys.

_________

*Valéria Sousa é advogada e coordenadora do Legal Advocacy na Associação ARTEMIS – ONG que trabalha pela erradicação da Violência contra a Mulher.

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