Migalhas de Peso

Jogos eletrônicos e o consumidor: responsabilidade civil pela perda de uma vida ou algo a mais?

Estamos diante de um mercado multimilionário no qual, infelizmente, as preocupações sociais e jurídicas não se adequam à sua grandeza.

27/1/2015

Abordarei hoje um tema que jamais pensei que um dia fosse escrever juridicamente a respeito: vídeo game, ou melhor, jogos eletrônicos de uma maneira geral. Não, evidentemente, por uma suposta ausência de relevância no cenário mundial, mas sim por um grande (e não menos tolo) preconceito social existente sobre o tema.

Mas, como bom apreciador, afinal, além de advogado e eterno acadêmico, sou “gamer” desde os tempos do saudoso Atari e dos primeiros títulos do eterno Mario, aquele que, em que pese “Super”, adora um cogumelo e entrar pelo cano.

Assim, se você leitor se encontra entre aqueles que creem estar diante de uma verdadeira perda de tempo, aconselho que interrompam sua leitura agora.

Todavia, aqueles que, simplesmente, ignoraram o de fato de que, já há alguns anos, o entretenimento eletrônico vem obtendo faturamento anual significativamente superior à indústria do cinema1, bem como que títulos consagrados como Grand Theft Auto V (ou GTA V para os íntimos) é o produto de entretenimento que mais rapidamente faturou US$ 1 bilhão (03 dias) sendo que US$ 815,7 milhões se deram nas primeiras 24 horas2, tendo custo de produção de aproximadamente US$ 266 milhões, bem como que a série de jogos Call of Duty, criada em 2003, recentemente, de acordo com a Forbes, ultrapassou os US$ 10 bilhões em vendas3.

Além disso, os jogos eletrônicos, de uma maneira geral, vem, gradativamente, se mostrando uma crescente fonte de manifestação cultural (afinal, a partir de 2012, através da Portaria nº 116 de 29/11/2011, assinada pelo ministério da cultura, os jogos eletrônicos passaram a ser reconhecidos como segmento cultural e, portanto, beneficiários da lei Rouanet – 8.313/91), convido-lhes a seguir com o texto para, ao menos, provocar-lhes uma pequena reflexão sobre este mercado bastante promissor4.

A história deste artigo começou com uma conversa de alguns meses atrás com um amigo meu, igualmente advogado e também bom apreciador do entretenimento eletrônico na qual me foi feita a seguinte pergunta: Um jogo ruim poderia ser objeto de vício (art. 18 do CDC)?

Minha resposta imediata foi não, afinal, ser bom ou ruim é uma qualificação de ordem puramente subjetiva, tal como ir a um restaurante e não gostar da comida que lhe foi servida.

Agora, refletindo um pouco mais sobre o tema, acredito que a questão não é tão simples assim. Explico.

Como mencionado um pouco acima, a indústria de games conta (falando aqui de seus principais títulos) com orçamentos multimilionários, com pesados investimentos em marketing e publicidade. Apenas para se ter uma pequena ideia a respeito, existem dezenas de revistas e sites especializados (em esmagadora maioria no exterior, visto que o Brasil, só para variar, ainda hiberna diante deste novo, e extremamente promissor, mercado) que publicam reportagens, ou divulgam trailers, imagens e vídeos de gameplay (do jogo em curso, ou seja, de como será a experiência com o produto final) fornecidos pelas empresas desenvolvedoras sobre lançamentos que ocorrerão dentro de um ou dois anos.

Tais vídeos e textos contém descrições sobre os gráficos (qualidade da imagem do jogo) e a jogabilidade em si (fluidez dos controles, mecânicas de jogo, inovações etc.), tudo visando ampliar a expectativa dos consumidores e aumentar as vendas, que costumam, na maioria dos casos, se concretizar antes mesmo da data do lançamento do produto (as chamadas pré- vendas).

E é neste aspecto que a pergunta fica mais complexa de ser respondida, afinal, e se as imagens e vídeos não corresponderem ao produto final? Se a jogabilidade não for tão fluída como presente nos vídeos de divulgação? E se os gráficos se mostrarem de qualidade inferior? Ou ainda se o jogo vier ao mercado com problemas diversos que, por qualquer razão, impeçam ou prejudiquem a experiência?

Um caso bastante interessante foi o ocorrido agora em dezembro de 2014 com o jogo Assassin’s Creed: Unity, o mais novo de uma famosa série de mesmo nome. Logo no dia de seu lançamento, ou seja, em 11/11/2014, o título apresentou diversas falhas de comprometimento à experiência do jogador e sua desenvolvedora, a canadense Ubisoft, uma das gigantes do ramo, logo apressou-se em reconhecer boa parte das falhas e em oferecer um belo pacote de benesses a seus consumidores para compensá-los sobre o ocorrido, consistindo este, basicamente, no download de outros jogos e títulos recém-lançados e\ou publicados pela empresa.

Contudo, como não existe um almoço grátis, preocupados com eventuais demandas judiciais (afinal o Poder Judiciário norte-americano é famoso por fixar indenizações elevadíssimas), no momento de aceitação do “mimo”, o consumidor deveria assinar (eletronicamente) uma espécie de quitação geral, pela qual se comprometia a não demandar contra a Ubisoft em decorrência dos problemas apresentados no jogo. Ou seja, não se tratava de um simples agrado ou compensação, mas sim de um termo de acordo, pura e simplesmente5.

O exemplo retrata a resposta que, apesar de óbvia, passa longe do nosso imaginário comum, afinal de contas, porque se preocupar com isto?

Infelizmente, ainda que o mercado brasileiro de consumo de jogos eletrônicos seja bastante cobiçado ao ponto das grandes empresas já estarem se estabelecendo em território nacional, bem como que os títulos de maior expressão começam a ser nacionalizados (ou seja, com legendas e dublagem em português), em solo tupiniquim, a preocupação jurídica com o tema é praticamente inexistente, sendo que os poucos esforços dedicados circundam à classificação etária indicativa, a questão da preservação da propriedade intelectual e do combate à pirataria, cuja tipificação penal, até a edição da Súmula 502 do Superior Tribunal de Justiça, vinha sendo afastada, pasme-se, ante a adequação social do tema, ou seja, comercializar CD’s, DVD’s e Softwares piratas era uma prática usual e socialmente aceita, logo, estar-se-ia diante de fato atípico.

O mercado de games cresce a cada ano, cada vez mais aumentam o número de consumidores, proliferando-se os estabelecimentos especializados na venda deste tipo de produto, especialmente na internet através da modalidade de e-commerce, ou ainda pelo comércio de compra de créditos a ser revertido em dado jogo ou aplicativo, através do fornecimento de dados bancários e\ou cartão de crédito, tornando-se mais do que premente a necessidade de uma maior fiscalização e cuidados ante a maior acessibilidade ao produto, cujo enfoque principal, sabidamente está no público infanto-juvenil.

Sites demandam regularização, produtos carecem de informação, imagens e vídeos (especialmente em produções menores como é o caso de aplicativos e jogos para celulares e tablets) carecem de fidedignidade e SAC’s, se existentes, são caóticos ou completamente ineficientes, deixando os consumidores verdadeiramente a mercê de sua própria sorte.

A par desta questão qualitativa a respeito do produto, é evidente que seu conteúdo, ou seja, a história contada ou a temática abordada, pode ser considerada ofensiva por alguns públicos. Nestes casos caberia algum direito à indenização? Ou, por se tratar de uma produção cultural poderia ser também abarcado pela liberdade de expressão?

Deixo bastante claro que não me mostro favorável a qualquer tipo de controle ou censura, mas é minimamente evidente que abusos devem ser coibidos, vez que, como já disse em outras oportunidades, não há direito, por mais fundamental que seja, absoluto.

Da mesma forma, repudia-se qualquer tipo de críticas românticas e desprovidas de fundamento, protagonizadas por fanfarrões midiáticos, como foi o caso de outro jogo da série Assassin’s Creed ter sido apontado por um dado programa “jornalístico” como influenciador do assassinato da família Pesseghini que teria sido assassinada por seu filho de 13 anos de idade, que o possuía. Mas, novamente, as arestas necessitam ser aparadas.

Isso significa que, por seu conteúdo, determinados jogos devam ter sua venda proibida ou retirada do mercado? A resposta é igualmente negativa a não ser quando diante de casos absolutamente extremos, vez que a liberdade de expressão merece ser preservada, não se tratando, portanto, uma pergunta de resposta única, mas sim de uma obtida após intenso debate de sopesamento valorativo entre princípios e garantias constitucionais e fundamentais sensíveis.

Como se viu, estamos diante de um mercado multimilionário no qual, infelizmente, as preocupações sociais e jurídicas não se adequam à sua grandeza, vez que, seja pela falta de qualidade, seja por um conteúdo ofensivo, o produto, ou seja, o jogo em si, poderá, em casos excepcionais, se mostrar impróprio ou inadequado ao consumo, causando danos ao consumidor, comprometendo-se a experiência almejada a ponto de causar prejuízos que podem ir muito além da perda de uma vida.

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1 Recomenda-se a leitura (em inglês): "Videogames now outperform Hollywood movies"

2 Sobre as vendas de GTA V: "GTA V quebra seis recordes de vendas e entra para o Guinness" e sobre o custo de produção: "GTA V pode ter custado US$ 266 milhões para ser produzido, diz jornal"

3 Sobre os números de Call o Duty (em inglês): "Activision Smokescreens 'Call of Duty: Advanced Warfare' Sales, Continuing A Trend"

4 Sobre a Lei Rouanet: "Jogos eletrônicos entram na lei Rouanet"

5 Para inteiro teor do termo de quitação (em inglês) acessar: "Assassin's Creed Unity Free Game Offer Waives Lawsuits"

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*Fernando Henrique Rossi é sócio da banca Araújo Branco, Rossi e Berg Advogados Associados.

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