Migalhas de Peso

Policiais que participaram da investigação policial não podem ser inquiridos como testemunha ou informante em juízo

Policiais responsáveis pela investigação sempre apresentarão interesse em demonstrar que o trabalho realizado na fase preliminar surtiu efeito.

16/1/2015

A doutrina conceitua “testemunha”, em termos gerais, como a pessoa que toma conhecimento de fato juridicamente relevante e comparece a juízo para externar as percepções do que viu, ouviu, agindo sob o compromisso de estar sendo imparcial e dizendo a verdade.

Já o artigo 202 do CPP estabelece que "toda pessoa poderá ser testemunha", cabendo esclarecer, nesse ponto, que a redação do referido artigo buscou afastar a restrição em termos probatórios que ao longo da história do processo penal sofreram os escravos, as mulheres, as crianças e as "pessoas de má reputação". De outro lado, o artigo 207 do mesmo diploma legal prevê que "são proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho".

Igual proibição deveria ser estendida aos policiais que participaram da investigação policial que, sempre arrolados pela acusação, são inquiridos em Juízo para depor sobre os fatos narrados na denúncia.

A já conhecida e reiterada estratégia da acusação é judicializar a palavra dos policiais para driblar a vedação contida no art. 155, CPP, de condenação exclusivamente em elementos informativos colhidos na investigação.1

Entretanto a oitiva de policiais (civis ou federais) não pode ser admitida em Juízo, sob pena de violação ao principio da ampla defesa. Embora o art. 202 disponha que qualquer pessoa pode ser testemunha, é nítida a proibição que deve recair sobre esses policiais, pois estão totalmente comprometidos com a causa e com o sucesso da investigação. Eles são arrolados pela acusação, tão somente, para confirmar a versão acusatória, baseada na própria investigação.

Os policiais responsáveis pela investigação sempre apresentarão interesse em demonstrar que o trabalho realizado na fase preliminar surtiu efeito, que foi positivo, e que as diligências realizadas respeitaram toda a regra prevista no ordenamento jurídico para a investigação policial.2

Aury Lopes Jr., embora conclua pela possibilidade da oitiva de policiais, assevera acertadamente que eles estão naturalmente contaminados pela atuação que tiveram na apuração do fato e acresce ainda que: "Além dos prejulgamentos e da imensa carga de fatores psicológicos associados à atividade desenvolvida é evidente que o envolvimento do policial com a investigação gera a necessidade de justificar e legitimar os atos praticados."3

Pouco provável que o delegado, escrivão ou inspetor de Polícia que participaram da investigação policial deponham em Juízo para desqualificar os elementos por eles reunidos na fase pré-processual. Assim, esta manifesta parcialidade deve ser vista como impedimento da oitiva destes policiais em Juízo, inclusive porque a figura desses policiais não se coaduna sequer com o conceito de testemunha, pois não tomam conhecimento do fato (não o presenciaram), mas sim realizam a investigação do fato levado a seu conhecimento.

Não se esta aqui afirmando que todo e qualquer policial deve ser proibido de depor. Aquele que efetivamente foi testemunha do fato deve, sim, ser inquirido. É o caso do policial (normalmente da Polícia Militar) que efetua uma prisão em flagrante. Este policial, por certo, deve ser ouvido em Juízo pelas partes, pois efetivamente testemunhou o fato ou as circunstâncias da prisão. Aplica-se, neste caso, as ponderações doutrinárias referentes à limitação desses depoimentos e à cautela que o magistrado deve ter em sua valoração.

Esta não é a hipótese daquele policial que conduziu a investigação em sede policial, colhendo depoimentos, analisando e acompanhando o resultado das interceptações telefônicas e/ou telemáticas ou participando do cumprimento de mandados de prisão ou busca e apreensão.

Os policiais envolvidos na investigação policial, além de terem a sua imparcialidade comprometida, pois sempre irão enaltecer a investigação por eles realizada, devem apresentar relatórios através dos quais registram, nos autos do inquérito, todo e qualquer fato relevante. Caso haja algum fato digno de nota, na ocasião do cumprimento de qualquer diligência, os policiais devem registrá-lo em relatórios e informações e acostá-los à investigação. Estas peças (relatórios e informações) constituem (e assim devem ser compreendidas) provas irrepetíveis, como o é a perícia realizada pelo Instituto de Criminalística na fase policial, ou as medidas de interceptação telefônica e/ou telemática, não havendo razão para oitiva dos policiais em Juízo se tudo que poderia ser dito já está acostado e documentado nos autos.

Não deve prosperar a afirmação de que a oitiva dos policiais envolvidos na investigação deve ser realizada em Juízo, sob o crivo do contraditório, para que a defesa possa também esclarecer questões que a ela interessam. É cediço que estes depoimentos nunca interessam à defesa. São sempre utilizados pela acusação para "confirmar" a prova realizada na fase policial. Isto, obviamente, prejudica o pleno desenvolvimento da defesa técnica em Juízo.

Ademais, veja-se o que estabelece o Pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 8, n. 2, alínea ‘f’:

”Artigo 8º - Garantias judiciais:
(...)
2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:
(...)
f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos;”

Percebe-se que este enunciado prevê um meio de prova disponível apenas à defesa, não se estendendo à acusação o direito de ouvir quem quer que seja perante o Tribunal competente. Inaplicável, in casu, o princípio da paridade de armas, pois a oitiva de policiais responsáveis pela investigação policial será, sempre, prejudicial à defesa do acusado. E ainda que isto seja considerado tratamento privilegiado à defesa, não se vislumbra nisto qualquer irregularidade.

O próprio Código de Processo Penal, criado em 1941, sempre cultivou, como não poderia ser diferente, tratamento benéfico à defesa, facultando a ela (e somente ela) recursos e meios de impugnação exclusivos, como é o caso dos embargos infringentes e da revisão criminal, meios de impugnação que não podem, por vedação legal, ser utilizados pela acusação.

Assim, tem-se que a oitiva em Juízo daqueles policiais que participaram da investigação preliminar deve ser rechaçada, para evitar violação ao principio da ampla defesa e ao Pacto de São José da Costa Rica e conferir ao artigo 202, CPP interpretação conforme a Constituição.

A defesa poderá arrolar o delegado, inspetor ou escrivão de policia como testemunhas para prestarem depoimento em Juízo, obviamente, se a ela interessar. Caso a acusação venha a arrolá-los, a sua inquirição em Juízo somente poderá ocorrer com a anuência (tácita ou expressa) da defesa. Se não houver, o caminho mais condizente com os princípios constitucionais vigentes seria indeferir a oitiva das testemunhas da acusação.

Frise-se, ainda, o fato de que, na grande maioria das vezes, estes policiais, quando ouvidos em Juízo, limitam-se a reproduzir informações que já constam dos autos, seja em relatórios policiais, ou nos resultados de provas realizadas, como a interceptação telefônica e/ou telemática. Assim, o depoimento torna-se uma repetição enfadonha do que já consta do inquérito, o que em nada interessa à justiça ou ao deslinde da causa. Além disso, não raras as vezes, os policiais que desenvolveram a investigação são questionados sobre a conclusão a que chegaram, se o réu foi ou não responsável pelo fato investigado, e etc., o que constitui a emissão de opinião própria, sabidamente vedada pelo artigo 213, CPP (Art. 213. O juiz não permitirá que a testemunha manifeste suas apreciações pessoais, salvo quando inseparáveis da narrativa do fato).

Por estas razões, não se pode permitir que os policiais que conduziram a investigação preliminar sejam inquiridos em Juízo, sob pena de violação ao princípio da ampla defesa e ao Pacto de São José da Costa Rica.

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1 Aury Lopes Jr., Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, Vol. I, fl. 642

2 Fernando da Costa Tourinho Filho, Manual de Processo Penal, fl. 607

3 Aury Lopes Jr., Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional, Vol. I, fl. 642

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*Livia Desouzart é advogada criminalista do escritório Crissiuma Advogados, pós-graduanda em Direito Penal, Processo Penal e Criminologia pela Universidade Candido Mendes, no RJ.







*Marcos Vidigal de Freitas Crissiuma é advogado criminalista do escritório Crissiuma Advogados, mestrando em Direito Econômico e Desenvolvimento pela Universidade Candido Mendes, no RJ, membro do IDDD - Instituto de Defesa do Direito de Defesa, membro da Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativa da OAB/RJ e membro do IAB.


 

 

 

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