Migalhas de Peso

O Estado não confia no cidadão e o cidadão não confia no Estado. Eis a questão.

Desejo e necessidade da construção de uma outra realidade nacional exigem mais do que reformas, mais do que consciência social.

24/11/2014

O jornal Valor Econômico publicou nesta semana o resultado de uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas, demostrando que 81% dos brasileiros optam pelo "jeitinho", ao invés de cumprir as leis; que o mesmo porcentual reflete a crença de que é "fácil descumpri-las"; que apenas 32% e 33% confiam, respectivamente, no Poder Judiciário e na polícia e de que 57% da população acredita que "há poucos motivos para seguir as leis do Brasil", dentre outros indicadores.

Saint Exupéry já dizia que “O homem gosta de números", mas estes, com certeza não agradam a ninguém.

Reflexão é preciso, mas, providências urgentes são imperativas.

Ao refletir estatisticamente esse fato, demostra também, que por diferentes razões ou motivações, a quase totalidade da população não cumpre as leis. Ou seja, não se trata apenas de segmentos específicos, mais sim, do indivíduo coletivo, do conjunto da sociedade.

Esta, todavia, não é só uma realidade objetiva, mas o retrato obscurantista, anacrônico e anárquico do psicossocial da nação, que vige na esteira da incompetência, da omissão, da permissividade, da leniência, da falta do espirito público e vontade política tanto das instituições do Estado, às quais cumpre zelar, impor o cumprimento das leis e punir os transgressores, quanto dos governos que se sucedem.

Com isso, gradualmente foram construindo no consciente e inconsciente coletivos a descrença nas instituições e na Justiça, plantando e fortalecendo a completa alienação e desprezo pelo significado ético e moral das leis, inclusive como valores imprescindíveis ao Estado Democrático de Direito.

De forma procedente, mas um pouco reducionista, há quem defenda que o assunto se resume ao fato de que ao povo falta educação.

Sim, educação é fundamental. Até mesmo historicamente a educação se encontra na origem remota, nas causas contemporâneas e com certeza continuará presente na raiz e no cerne dos valores e do comportamento da sociedade, especialmente na interface com as grandes questões nacionais.

Mas, com certeza, “stricto sensu”, com vistas ao que demonstra a pesquisa, a educação, por maior significado e abrangência que o termo contemple, seguramente não é o único ponto de referência.
Até porque, pergunta-se: será que para os 86% - conforme a pesquisa – da população de renda mais alta, que obviamente tem mais acesso a informação e educação, o que falta para cumprirem a lei é somente educação? É evidente que não.

E o que está faltando, a aqueles que governam, quando flagrantemente, sob o eufemismo de alterar a lei de diretrizes orçamentarias, em verdade buscam um “jeitinho” para se eximir do crime e das consequências de não tê-la cumprido, no capítulo da responsabilidade fiscal?

Enquanto isso, e enquanto tantos e conhecidos episódios se sucedem, no âmbito do Estado, através de suas diversas instancias de decisão, em todas as esferas de governo, instituem-se normas, regulamentos, criam-se jurisprudências, legislam-se e promulgam-se leis – frequentemente casuísticas – inchando e hipertrofiando o arcabouço legal e jurídico do País com dezenas de milhares de leis que a sociedade sequer sabe que existem.

Como agravante, não se aportam aos órgãos e instituições responsáveis, a estrutura, os recursos e os mecanismos necessários para que as leis sejam executadas, seu cumprimento seja fiscalizado e os infratores sejam punidos.

Assim, de acordo com o princípio dialético de que “tudo se relaciona”, de um lado é o Estado, através de seus sucessivos governos, cercando o povo de leis e fingindo que cumpre o seu verdadeiro papel, porque não respeita a sociedade e não acredita nos cidadãos. E, de outro lado, o conjunto da cidadania que não cumpre as leis, que confia na impunidade, e os cidadãos que não confiam no Estado.

Ora, esse é o contexto mais conveniente e propício para que nele prospere o “jeitinho” que, por sua vez, engendra a delinquência, o crime e a corrupção, inclusive em níveis institucionais.

Isso precisa acabar e o exemplo tem que vir de cima.

Continuar e cristalizar esta realidade num molde de comportamento social e num paradigma político-institucional, bem como, concomitantemente pretender construir um País mais ético, seguro, verdadeiramente democrático e republicano, é uma grande contradição; é pretender “a Aliança do Sim e do Não”; é praticar o sofismo de querer encontrar a verdade através da mentira.

O desejo e a necessidade da construção de uma outra realidade nacional exigem mais do que reformas, mais do que consciência social. Precisamos de profundas transformações sociais e políticas, que tenham a grandeza de um novo projeto de nação.

__________________________

*Trajano Bastos de Oliveira Neto Friedrich é advogado da banca Trajano Neto e Paciornik Advogados. Formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Pós-graduado em Advocacia Cível pelo Instituto Superior de Administração e Economia da Fundação Getúlio Vargas – ISAE/FGV e Membro da seção brasileira da AIDA – Association Internationale de Droit des Assurances.

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