No dia 31/10/12, o então presidente do STJ, ministro Félix Fischer, desabafou: “Precisamos do socorro do Congresso Nacional”. O experiente ministro se referia, então, à PEC 209/12 e ao PL 4.230/12.
O ministro João Otávio de Noronha, também do STJ, no anterior ano de 2011 havia lançado obra de sua autoria intitulada “O Superior Tribunal de Justiça e a Reconstrução do Direito Privado”1, na qual abordara a questão:
“É verdade que ainda há demora na prestação jurisdicional. Numa época em que as pessoas acostumaram-se a atravessar oceanos em poucas horas, em que vigora a comunicação em tempo real, parece incompreensível que uma demanda proposta há cinco, dez anos ainda não esteja definitivamente decidida, aguardando, muitas vezes, julgamento de recurso encaminhado a esta Corte.
São conhecidas as razões que levaram a esse estado de coisas. E muito tem sido feito para atacá-las. Mas é difícil conciliar qualidade das decisões com quantidade de processos e celeridade na sua tramitação.”
O socorro enviado pelo Congresso Nacional sob a forma da PEC 209/12 para ajudar nesta reconstrução do direito ainda está, dois anos passados, pendente de aprovação pela Câmara e Senado Federais. Sua missão seria instituir no STJ, formalmente, o requisito de admissibilidade da “Relevância Geral” que, a bem da verdade, já é respeitado na Corte Cidadã para fazer analisar recursos que, outrossim, poderiam ter sido barrados2:
“PROCESSO CIVIL – AGRAVO REGIMENTAL – CONTRIBUIÇÃO PARA O INCRA – LEI 7.787/89.
1. Tema jurídico em fase de reestudo, possibilitando mudança jurisprudencial.
2. Prudente subida do especial para melhor exame, diante da relevância da tese.
3. Agravo regimental provido para dar provimento ao agravo de instrumento.”
(AgRg no Ag 516.378/RS, Rel. Ministro Francisco Peçanha Martins, Rel. P/ Acórdão Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 04/04/2006, DJ 02/08/2006, p. 253)"Diante da relevância da tese jurídica, exerço o juízo de retratação, todavia, em face das circunstâncias que envolvem a controvérsia, é temerário o juízo de admissibilidade do especial por ora.
Diante disso, com base no artigo 34, inciso VII, do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, e para melhor exame do objeto do recurso, dou provimento ao presente agravo de instrumento, para determinar a subida do recurso especial, sem prejuízo de novo exame acerca de seu cabimento, a ser realizado no momento processual oportuno."
(AgRg no Ag 977.697. Trecho de Decisão Monocrática. Rel. Min. Luís Felipe Salomão. Dj 10.02.2010)
“Para melhor exame da matéria suscitada, dada a relevância da tese, bem como a existência de precedente desta Corte em sentido contrário ao acórdão recorrido (REsp 286.514/SP, relator Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, DJ de 22/10/2007), dou provimento ao agravo, determinando a subida dos autos do recurso especial.”
(Ag 1.190.849. Trecho de Decisão Monocrática. Rel. Min. João Otávio de Noronha. DJ 09.05.2011)
Parece se fortalecer no seio jurídico o entendimento de que a forma importa – e muito –, mas determinados conteúdos importam mais.
Com a aprovação da PEC, a apreciação dos recursos especiais dependeria, além dos requisitos legais preexistentes, de o objeto recursal tratar questão de direito infraconstitucional com repercussão econômica, política, social ou jurídica que – a princípio – simultaneamente extrapolasse o interesse subjetivo das partes envolvidas ou divergisse de súmula.
É esta simultaneidade que causa, aqui, inquietude. Isto porque as partes em um litígio certamente consideram sua causa como sendo da mais óbvia relevância. Mas que é relevância? Relevância pode ser até afeto ou necessidade, por isso estipulou-se que se deveria constatar, nos recursos, repercussão econômica, política, social ou jurídica.
Coisa diferente de relevância, portanto, é a “Relevância Geral” institucionalizada que pressupõe, como dito, um tipo específico de repercussão e, simultaneamente, transcendência.
Uma ação de cobrança, por exemplo, poderá tratar dívida milionária que decidirá a continuidade e a viabilidade de certa sociedade empresária. Contudo, de um modo ou de outro, stricto sensu, dificilmente esta ação de cobrança seria considerada (economicamente) relevante e, simultaneamente, transcendental ao interesse subjetivo das partes.
Demandas milionárias e eminentemente pessoais são ocasionais no Direito Privado e comuns, particularmente, no Direito Empresarial. O dilema seria definir “interesse subjetivo das partes” e como se daria a análise desta subjetividade, subjetivamente pelos Ministros.
Outro fator a ser considerado seria o gasto de energia e tempo indispensáveis para que se desse a necessária evolução da retórica e do modus operandi dos advogados de maneira a explicar o porquê de algo aparentemente privado ser, na verdade, transcendental. Pergunta-se: há um custo benefício razoável na lógica que impõe esse esforço? Este tempo não deveria ser melhor aproveitado? De que modo os clientes serão onerados diante da nova conjuntura?
A raiz do problema estaria no fato de que a prestação jurisdicional ser precária na origem, o que transforma as Cortes Superiores não em órgão uniformizador, mas em pronto socorro para as partes cujos direitos estão na iminência de perecimento. Para que estas Cortes deixassem de analisar causas “sem transcendência”, seria necessária uma reforma vertical no Judiciário que tornasse a apreciação satisfatória, suficiente e saudável desde o juiz singular.
Se a Relevância Geral no STJ for estabelecida à semelhança da Repercussão Geral do STF (como está previsto), sem que baste o relevo econômico, jurídico, político ou social, exigida simultaneamente a transcendência, recursos especiais de Direito Empresarial poderão deixar de ser conhecidos e analisados, com grave ou irreversível prejuízo para as partes, mercado e desenvolvimento econômico.
A questão é preocupante porque levará ao trânsito em julgado de acórdãos que, não raro, são superficiais por força da sobrecarga do Judiciário – que, aliás, motivou a PEC da Relevância Geral – em precisa demonstração do efeito borboleta em ação.
Se é impossível providenciar a necessária reforma do Judiciário na sua integralidade, haveria de se propor uma solução conciliatória para que a PEC 209/14 não afastasse questões economicamente relevantes de Direito Empresarial da apreciação Judicial quando supostamente ausente a prova da transcendência, ou o que se chamaria “transcendência direta”.
Por transcendência direta entenda-se aqui, mutatis mutandi, da situação em que a sociedade (o interesse social) não é imediatamente interessada, mas é mediatamente.
Em um “mundo ideal”, portanto, seria o caso de se realizar uma mudança vertical no Judiciário, desde o juiz singular até os tribunais superiores, se implementando qualidade como regra, com a entrega perfeita e acabada da prestação jurisdicional buscada. Tal panorama seria especialmente interessante às causas de direito privado, especificamente de Direito Empresarial, que costumam ser mais beneficiadas pela celeridade. A sobrecarga atual do Sistema, entretanto, é realidade inafastável que não encontra espaço na equação idealizada.
Tendo em vista este cenário realista, para a implementação de uma mudança restrita ao STJ, como propõe a PEC 209/12, seria razoável estabelecer a Repercussão Econômica como bastante-suficiente para a caracterização da Relevância Geral, nos moldes do que já têm ocorrido há algum tempo na sistemática de precedentes.
Significa afirmar que a transcendência das causas estaria casuisticamente implícita por força das consequências econômico-sociais (desenvolvimento econômico, livre concorrência, pleno emprego, livre iniciativa) mediatas.
Perder duzentos mil reais para uma multinacional seria “irrelevante”, mas para o empresário individual implicaria na falência: desta hipótese se verificaria (i) a relevância econômica em razão da reverberação da causa para a parte e (ii) a transcendência mediata ou presumida pelo potencial reflexo que teria na sociedade ou na economia. Assim, estabelecida pelo STJ a ressonância econômica, a transcendência seria “adivinhada” ou “adivinhável”.
Se a situação acima pode gerar controvérsias de opiniões, outras causas – como uma briga hiperbólica por milhões de reais em participação acionária – terão impacto econômico inerente e inasfastável no mercado, a despeito de tratarem de interesse subjetivo das partes.
Não se ignora que muitas vezes há, ainda, relevância jurídica nessas causas milionárias ante exposição ou defesa de teses, não raro apoiadas em pareceres exarados por juristas da maior autoridade técnica e que podem alterar o rumo da jurisprudência. Nem mesmo a jurisprudência consolidada é imutável porque a sociedade evolui e o Direito é cosmopolita.
O excesso de rigor na admissão destas causas economicamente pungentes em sede de recurso especial pela suposta ausência de interesse que extrapole a esfera particular das partes poderia consistir em contrariedade ao propósito inspirador da Relevância Geral – justamente filtrar demandas que forçosamente deveriam passar pela análise da Corte Superior.
Em razão da dificuldade em separar os recursos efetivamente pertinentes dos protelatórios – às vezes, por ocasião de acórdãos insuficientemente motivados que não possibilitam aferir se houve prestação jurisdicional satisfatória –se tem justificado a admissão de recursos especiais sob o fundamento da relevância econômica:
“Esta Corte dispensa o atendimento de maiores rigores formais quando presente excepcional relevância econômica e jurídica da questão.
4. Na hipótese, a parte demandada foi condenada ao pagamento de mais de R$ 50.000.000,00 (cinquenta milhões de reais) em processo, no qual fora revel, por alegado defeito de citação, o que traduz a relevância econômica.”
(AgRg no AREsp 466.411/PR, Rel. Ministro Antônio Carlos Ferreira, Rel. p/ Acórdão Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, DJe 26/09/2014)“Em atenção à missão do Superior Tribunal de Justiça, o rigor formal no exame de admissibilidade do agravo foi amenizado, diante da relevância econômica da questão federal trazida no recurso especial.
Com efeito, verificado que o conflito envolve discussão acerca da natureza jurídica do contrato - representação comercial ou prestação de serviço -, com envolvimento de valores na ordem de 25 milhões de reais (fl. 962), ficou evidente o grande relevo econômico e jurídico da causa, de modo que é devida a subida do recurso especial para que seja melhor analisada a controvérsia.
De acordo com entendimento recente da Quarta Turma, o Superior Tribunal de Justiça, a fim de bem cumprir sua missão constitucional de assegurar a inteireza do direito federal infraconstitucional, deve enfrentar as questões federais de grande relevância econômica e jurídica, como na espécie (...).”
(RCDESP no REsp 1.347.719. Trecho de Decisão Monocrática. Rel. Min. Luís Felipe Salomão. DJ 04.03.2013.)“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. INCIDÊNCIA DA SÚMULAS 5 E 7/STJ. ALEGAÇÃO DE OMISÃO. EMBARGOS DECLARATÓRIOS ACOLHIDOS.
1. No caso dos autos, mostra-se prudente determinar subida do recurso especial par melhor exame da alegada violação ao art. 53, CP e aplicação das Súmulas 5 e 7/STJ, diante da relevância econômica e jurídica da causa, bem como em razão da missão constitucional desta Corte de assegurar a inteireza do direto federal infraconstitucional, em tais hipótese. Precedente da Quarta Turma.
2. Embargos de declaração acolhidos par determinar subida do recurso especial.”
(EDcl no AgRg no Ag 1.134.547/SP, Rel. Ministro Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 18/10/2012)“Em face da relevância econômica, social e jurídica que envolve a controvérsia e para melhor exame do objeto do recurso, ratifico a decisão de fl. 773, que tornou sem efeito a decisão de fl. 757, e DOU PROVIMENTO ao presente agravo de instrumento para determinar a subida do recurso especial, sem prejuízo de novo exame acerca de seu cabimento, a ser realizado no momento processual oportuno”
(Ag 1362211. Trecho de Decisão Monocrática. Rel. Min. Luís Felipe Salomão. DJ 21.06.2012)“Assim, atento a esse entendimento e observando a relevância econômica da causa, revela-se imperiosa a subida do recurso especial, para que seja investigado melhor o ponto principal da controvérsia, principalmente no que se refere a alegação de violação ao artigo 535 do CPC.
(EDcl nos EDcl no Ag 1.109.169. Trecho de Decisão Monocrática. Rel. Min. Luís Felipe Salomão. DJ 24.11.2011)“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO.
AUSÊNCIA DA PARTE FINAL DA EMENTA. COMPREENSÃO DA CONTROVÉRSIA. EXCESSO DE RIGOR FORMAL. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO.
1. No presente caso, a ausência de parte da ementa do acórdão exarado pelo Tribunal a quo não prejudica o conhecimento do agravo de instrumento.
2. Constitui-se excesso de rigor formal não conhecer de agravo de instrumento na hipótese em que as demais cópias trasladadas são suficientes para vislumbrar-se a admissibilidade do recurso especial.
3. Ostentando a questão federal ventilada no recurso especial relevância jurídica, econômica e social a desafiar o conhecimento do apelo, propicia-se ao STJ que se proceda à interpretação final da lei federal e, por conseguinte, se desincumba de sua missão constitucional de assegurar a inteireza do direito federal infraconstitucional.
4. Agravo regimental provido para reconsiderar a decisão agravada e determinar a subida dos autos do recurso especial.”
(AgRg no Ag 1.322.327/RJ, Rel. Ministro João Otávio De Noronha, Quarta Turma, DJe 07/02/2011)
Observe-se que nestes julgados não foi considerada a eventual transcendência do recurso especial, apenas se constatou a relevância econômica, acompanhada ou não da jurídica e social, e a necessidade de se “assegurar a inteireza do direto federal infraconstitucional”.
Diante destas considerações, só se pode concluir o quanto seria interessante a inclusão no texto da PEC da “presunção de transcendência” dos recursos economicamente expressivos de direito privado, em virtude dos potenciais efeitos sociais, econômicos e mercadológicos inerentes, sem prejuízo, por óbvio, da verificação dos demais requisitos legais.
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1 O Superior Tribunal de Justiça e a Reconstrução do Direito Privado. Coord. Ana Frazão e Gustavo Tepedino. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2011. P.34
2 Quer dizer, parece que a atual relevância da tese é usada para fazer subir recursos, não para limitar a subida deles.
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*Eduarda Chacon é advogada do escritório Rosas Advogados.