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Delação premiada

Sua criação foi influenciada pelo modelo italiano, mas o transplante de tais ideias para o ordenamento jurídico brasileiro representou um equívoco do legislador, mormente pelas diferenças de criminalidade e pela discrepante estrutura.

17/10/2014

"Na hora da dura
Você abre o cadeado
E dá de bandeja
Os irmãozinhos pro delegado
Na hora da dura
Você abre o bico e sai cagüetando
Eis a diferença, mané, do otário pro malandro
Eis a diferença do otário pro malandro
E no pau-de-arara você confessou o que fez e não fez
E de madrugada gritava gemendo dentro do xadrez
Quando via o xerife se ajoelhava e ficava rezando
Eis a diferença, canalha, do otário pro malandro
Eis a diferença do otário pro malandro
E na colônia penal
Assim que você chegou
Deu de cara com os bichos que você cagoetou
Aí você foi obrigado a usar fio-dental e andar rebolando
Eis a diferença, canalha, do otário pro malandro
Eis a diferença do otário pro malandro."

Bezerra da Silva, Na hora da dura



A delação premiada, também denominada colaboração espontânea com a justiça, surgiu nas décadas de 70 e 80, quando dos julgamentos dos delitos praticados pela famigerada máfia , não obstante o instituto tenha sido empregado na década de 80 na Espanha, no âmbito das práticas terroristas, o modelo que de fato influenciou e influencia diversos ordenamentos jurídicos é o modelo italiano.

Em que pese a nítida estruturação normativa italiana com o objetivo de deter e responsabilizar a máfia, a operazione mani pulite, inicialmente aclamada pela população italiana, foi ganhando espaço na crítica ante os abusos cometidos pelo Ministério Público e pelos juízes, especialmente "pelos exageros apontados nos encarceramentos preventivos, tanto que a operação passou a ser apelidada pela imprensa de 'operação algemas fáceis'" (Pellegrini, 1995, p. 85). Iniciava-se um embate entre os operadores do direito, divididos entre o argumento de combate à criminalidade e do respeito às garantias fundamentais.

O legado que se pode extrair das raízes da delação premiada, é que a sua criação foi influenciada pelas circunstâncias e idiossincrasias peculiares da Itália naquele momento, e que, conforme se abordará em seguida, o transplante de tais ideias para o ordenamento jurídico brasileiro representou um equívoco do legislador, mormente pelas diferenças de criminalidade e pela discrepante estrutura.

Uma digressão quanto ao percurso da legislação brasileira demonstra que a delação premiada ganhou seus primeiros traços ainda nas Ordenações Filipinas, em vigência de 1603 a 1830, e que consignava a faculdade de se perdoar o individuo que delatasse conspirações ou conjurações, bem como fornecia dados que ajudassem na prisão dos envolvidos ("Como se perdoará aos malfeitores, que derem outros à prisão") (Bittar, 2011, p. 240).

No entanto, o termo inicial do instituto já com a denominação de delação premiada teve inicio após a promulgação da CF que, inspirada no Movimento da Lei e Ordem, trouxe dispositivo acerca da criação da lei dos crimes hediondos (art. 5º, inciso XLIII, da CF).

Influenciados pela excitação gerada pela operação italiana mani pulite, bem assim pelo clamor social advindo da sensação de insegurança incrementada pelos meios de comunicação sensacionalistas e pelo aumento do crime de extorsão mediante sequestro de pessoas tidas como importantes, a primeira imersão do instituto sob análise no ordenamento jurídico brasileiro ocorreu com o advento da lei 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos).

Em 2001, foi realizada uma grande reforma nos vários campos da normatividade premial. As principais modificações se deram no âmbito do direito processual, ante o fenômeno da progressão acusatória, ou seja, da "desistência" do colaborador na fase processual, em virtude do descontentamento quanto à proteção oferecida.

Sob o aspecto processual, as declarações dos colaboradores, tidos como suspeitos, são analisadas criteriosamente. Somente é aceito como prova aquele testemunho que restar corroborado pelas demais provas produzidas. Assim, o exame da declaração passa pela análise da credibilidade do declarante (personalidade, passado, relação com os acusados), da confiabilidade da informação (precisão, coerência, seriedade) e da ratificação por outras provas.

Em relação especificamente à palavra de coréu ou cúmplice como meio de prova – podendo ser aplicada ao delator - , valiosa é a lição de MITTERMAYER, in verbis: "O depoimento do cúmplice apresenta graves dificuldades. Têm-se visto criminosos que, desesperados por conhecerem que não podem escapar à pena, se esforçam em arrastar outros cidadãos para o abismo em que caem; outros denunciam cúmplices, aliás inocentes, só para afastar a suspeita dos que realmente tomaram parte no delito, ou para tornar o processo mais complicado ou mais difícil, ou porque esperam obter tratamento menos rigoroso, comprometendo pessoas colocadas em altas posições." (in, Tratado das Provas em Direito Criminal)

Já na fase penitenciária, o tratamento conferido segue a mesma lógica do direito material, isto é, o recrudescimento aos que se mostram irredutíveis à colaboração, e a flexibilização para os colaboradores, com inúmeras facilidades de obtenção de melhorias na execução da pena.

No tocante à inserção da delação premiada no ordenamento jurídico pátrio, verifica-se que, ao contrário do modelo italiano, objeto de inspiração do legislador brasileiro, houve aberta preocupação em alargar progressivamente a possibilidade de aplicação do instituto, culminando no seu emprego em todo e qualquer delito. Assim, até o presente momento, encontra-se em segundo plano qualquer adaptação normativa que tenha por escopo estabelecer um regramento processual para a questão sob discussão, ou mesmo que seja direcionada para uma real eficácia e legalidade. Somado a isso, temos a negligência quanto a uma normatização que confira eficácia e validade à delação.

Por tudo, principalmente pelo desespero e temor daquele que se encontra privado de sua liberdade, a delação premiada, de ética-moral duvidosa, deve ser vista com muita ressalva posto, sobretudo quando não corroborada por outras provas lícitas.

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*Leonardo Isaac Yarochewsky é advogado criminalista do escritório Leonardo Isaac Yarochewsky Advogados Associados e Doutor em Ciências Penais.






*Thalita da Silva Coelho é advogada criminalista do escritório Leonardo Isaac Yarochewsky Advogados Associados e professora de Direito Penal.

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