Migalhas de Peso

Seu João Mineiro e uma nova bandeira brasileira: um problema constitucional

Roxo, verde, preto e vermelho. Entenda o significado das cores com as quais o professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP pintaria a pátria.

9/10/2014

Seu João Mineiro é uma pessoa real, não inventada. Quem desejar a prova venha falar comigo para tirar a dúvida. Hoje ele mora em um sítio próximo a uma importante cidade de Minas, mais para os lados da Bahia, para aonde voltou depois de passar muitos anos em São Paulo, quando aqui deixou a primeira companheira e os dezoito filhos que dela teve, sobreviventes de uma ninhada maior.

Há sete anos, quando tinha os seus 65, Seu João Mineiro retornou às suas paragens e se casou de novo com uma moça de 22. Hoje ele tem 72, ela 29 e os dois somam mais cinco filhos. A segunda esposa é somente um ano mais velha do que o primogênito do seu João Mineiro. A nova família é sustentada por cinco bolsas-família e mais outras tantas bolsas-fralda. Haja filho! Os meio irmãos de São Paulo não sabem direito os nomes dos filhos da segunda leva, chamando-os conforme o tamanho de João 1, João 2, João 3 e assim vai. Para completar o gasto, seu João Mineiro tem um pequeno negócio onde vende pinga e cria umas vaquinhas de leite no sítio. O leite anda em falta porque a cerca quebrou e as vacas fogem para outras bandas onde algum malandro alivia os seus úberes cheios e deixa que elas voltem com eles vazios. Seu João Mineiro não conserta a cerca porque diz que os filhos de São Paulo não lhe mandam o dinheiro necessário.

E assim ele segue a vida até as próximas bolsas-família e bolsas-fralda. Se lhe perguntarem, ele dirá que esse dinheirinho das bolsas vem do governo, não lhe passando pela cabeça onde o governo vai buscá-lo.

Do lado oposto um dos filhos do seu João que eu conheço dá um duro danado aqui em São Paulo para sobreviver, manter a família e progredir de alguma forma. Ele trabalha como motorista de taxi, às vezes virando 20 horas num dia. Ele mora em uma favela. De vez em quando dá uma fugida até em casa para ver a mulher e as duas filhas pequenas, cochilar um pouco e acompanhar seu pequeno negócio no qual a esposa vende pipas nas épocas próprias. Como a venda de pipas é sazonal, ele montou uma lojinha de roupas e nela agregou uma máquina de sorvete italiano. O negócio vai bem e precisou botar duas funcionárias para ajudar a esposa, especialmente quando ficou grávida (sem bolsa, a não ser a própria). A loja é embaixo e a pequena casa onde vive é em cima. Já conseguiu comprar outra casinha ali perto para pagar em cinco anos (sem financiamento e sem qualquer bolsa), que vai alugar até ter o dinheiro para fazer uma reforma e se mudar de vez.

Bem, e o que isto bem a ver com uma nova bandeira brasileira? Pode deixar que eu conto.

Como se sabe, as bandeiras de todos os países procuram transmitir uma mensagem para quem as vê fundada nos valores que, ao tempo de sua elaboração, inspiravam os ideais ou pilares sociais da nação correspondente.

No caso do Brasil, nossa bandeira, nascida com a proclamação da república, nos dá pelas suas cores e símbolos uma representação de algumas das nossas características então julgadas principais, bem como a visão política dos seus idealizadores. Nesses termos, um pouco diferente do significado oficial, desde muito cedo aprendemos que o verde correspondia às nossas florestas; o amarelo às riquezas minerais, como o ouro; o branco ao ideal da paz, o azul ao nosso céu estrelado; e as estrelas aos Estados da federação, sob o signo do Cruzeiro do Sul, que marca o nosso hemisfério. Por sua vez, foi adotado como lema, a frase positivista “ordem e progresso”, bases sobre as quais seria erigida a nação brasileira. A frase completa, atribuída a Augusto Comte dizia: O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim. Pelo visto o amor ficou de fora, principalmente nesta campanha eleitoral, onde pintou o ódio.

Da proclamação da República para cá, as coisas mudaram bastante. As florestas estão desaparecendo progressivamente, sem que haja maior cuidado em se manter núcleos separados do avanço das cidades e das culturas, por meio de uma convivência inteligente. Quando um governante afirma que o desmatamento foi reduzido em “xis” por cento, isto apenas significa uma agonia mais lenta de um destino inexorável.

A riqueza em geral anda caindo pelas tabelas, representada pelos “pibinhos” insignificantes dos últimos anos. A paz desapareceu faz muito tempo das cidades e do campo. O céu está cada vez mais poluído. Os estados não se integraram em uma unidade econômica e social coesa, mantendo-se grandes disparidades. E os cidadãos suportam tremenda desordem e falta de segurança todos os dias, não havendo efetivo progresso, mas apenas crescimento desordenado em diversas áreas.

Olhando para os fatos da atualidade, verifica-se que os valores buscados hoje no Brasil são muito diversos dos presentes em nossa bandeira, expressos na filosofia de vida do Seu João Mineiro. Uma das forças que movimentam com mais expressão os anseios de uma grande parte dos brasileiros é a da busca pelo Estado Paternalista em sua expressão mais intensa e ampla. Do Estado tudo se espera, nada se lhe dando em troca, restando muito pouco para o fazer individual. E esse sentimento de deixar ao Estado a responsabilidade e os custos pelo bem estar social tem sido fortalecido pela imposição e difusão cada vez mais abrangente de políticas sociais irresponsáveis pelos políticos em geral, como é o caso do “bolsa família” e de todos os programas congêneres. Irresponsáveis porque não apresentam porta de saída que seja apta a dar dignidade aos brasileiros, cuja assistência deveria ter sido de meio e não como finalidade da criação de um curral de votos de cabresto.

Vejam-se as promessas presentes na atual campanha eleitoral. Não somente todos os candidatos prometem manter as atuais benesses, mas insistem em sua ampliação nos mais diversos setores, nunca mostrando de onde virá o dinheiro necessário. Afinal de contas, parece que ele dá em árvores, como se diz que assim acreditaram imigrantes estrangeiros convidados a virem para o Brasil no século retrasado. E a acusação que um candidato mais teme hoje não é a de ser ladrão, mas a de alguém que, se eleito, acabará com o “bolsa família”.

E, nessa toada aos eleitores tudo se promete de graça e estes de tudo cobram aos candidatos também de graça, sem a mínima preocupação com o preço: casa, comida, educação, saúde, transporte, aposentadoria; viagens interurbanas; e por ai vai. O limite é o da capacidade imaginativa de cada promitente doador.
Ora, como as pessoas minimamente pensantes sabem que não há almoço de graça, caindo a conta sempre no bolso de alguém, o custo dos programas sociais continuará a ser pago pelo sangue dos contribuintes, cada vez mais extenuados pela derrama cada vez mais intensa por parte do governo.

Só um exemplo. Como todo mundo sabe, no ano passado espalhou-se pelo País um forte movimento contra o aumento das passagens dos ônibus urbanos, vencido pelos manifestantes. O preço das passagens não foi mudado diretamente, mas sim o dos subsídios pagos pelas prefeituras aos proprietários das companhias de transporte, que aumentou. Ou isto ou o caos, porque havendo os custos se elevado, nenhum empresário continuaria no ramo somente por diletantismo. E os tais subsídios têm que ser cobertos de alguma forma e, claro, a única renda das prefeituras é originada dos impostos e das taxas pagos pelos contribuintes já quase que totalmente esfolados e exangues.

Desta forma, eu sugiro uma mexida na Constituição Federal para permitir mudanças na bandeira brasileira, de maneira a que ela passe a representar nossa nova realidade social. No lugar do verde deve entrar o vermelho do sangue dos doadores da farra fiscal. No fundo vermelho seriam desenhadas tantas bocas quantas são os estados brasileiros, delas saindo a frase “me dá”, “me dá”, “me dá”, cantada por João 1, João 2, João 3, representando os famigerados programas sociais sem porta de saída.

O mesmo vermelho indicaria as vitimas tombadas na violência diária, significando as famílias que a cada dia recebem a notícia de que morreu algum parente de bala perdida ou não, a qual achou um alvo indefeso.

O amarelo das riquezas deveria ser substituído pelo negro. Este representaria o petróleo do prometido “pré-sal” o novo ouro mágico que resolverá todos os problemas financeiros da pátria, depois que, não se sabe se e quando, a sua exploração tiver se tornado viável e comercialmente efetiva. Até lá, se não tiverem ocorrido mudanças significativas em sua gestão, a Petrobrás terá se tornado em uma triste lembrança do passado.

O branco da bandeira deveria mudar para o verde, correspondendo a uma pequena esperança remanescente, a aguardar dias melhores, mas na forma de uma interrogação bem pequenininha, presente em um dos cantos inferiores da nossa flâmula.

O azul do céu seria trocado por um roxo intenso, representando o tamanho das preocupações dos brasileiros com o seu futuro, considerando que o presente não se mostra nada promissor.

E quanto aos novos dizeres da nossa bandeira?

Bem, eu sugiro o conhecido aforisma, “quo usque tandem”, que os advogados muito bem conheciam quando o latim ainda dominava como referência nas petições (Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?). Trata-se da história de discursos feitos pelo senador Cícero contra Catilina (Catilinárias). Este foi o protótipo do político moderno, na busca de riqueza e poder Desta forma, “quo usque tandem” na nova bandeira teria uma dupla aplicação: políticos, até quando vocês perturbarão a nossa paciência. E, “quo usque tandem”, vocês eleitores brasileiros continuarão tão burros, sempre procurando um salvador da pátria para a ele venderem a sua alma?

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

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