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Perigo de retrocesso social: projeto de lei sobre desapropriação por trabalho escravo

PL 432/13, de forma inusitada, deixa de prever o “trabalho degradante” como hipótese de trabalho escravo, certamente sob a justificativa de que acarretaria insegurança jurídica.

8/10/2014

No dia 5 de junho de 2014 foi promulgada a EC 81, que, de forma louvável, prevê a desapropriação decorrente de trabalho escravo.

Entretanto, o Senado Federal acrescentou a necessidade de regulamentação legal quanto a essa modalidade de expropriação da propriedade.

O art. 243 da CF passou a dispor, assim, que as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo, nos termos da lei, devem ser expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º da mesma Constituição.

Tendo em vista a necessidade de lei regulamentadora, o PL do Senado 432/13 tem como objeto, justamente, dispor sobre a expropriação das propriedades rurais e urbanas onde se localizem a exploração de trabalho escravo.

Nesse sentido, estabelece que, para os fins ali previstos, o trabalho escravo é considerado como: a submissão a trabalho forçado, exigido sob a ameaça de punição, com uso de coação, ou que se conclui da maneira involuntária, ou com restrição da liberdade pessoal; o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; a manutenção de vigilância ostensiva no local de trabalho ou a apropriação de objetos ou documentos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; a restrição, por qualquer meio, da liberdade de locomoção do trabalhador, em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Nota-se que o referido projeto de lei, ao propor a regulamentação do atual art. 236 da Constituição Federal de 1988, de forma inusitada, deixa de prever o “trabalho degradante” como hipótese de trabalho escravo, certamente sob a justificativa de que, em razão do seu conceito ser indeterminado, acarretaria insegurança jurídica.

Entretanto, se bem examinarmos, não se observa qualquer indefinição conceitual.

O trabalho em condições degradantes é aquele em que não são observadas as normas básicas e essenciais que disciplinam o labor, em especial as voltadas à segurança, saúde, moradia, higiene e alimentação do empregado.

O art. 149 do CP, com redação determinada pela lei 10.803/03, é claro e expresso ao tipificar o crime de redução à condição análoga à de escravo, ao mencionar, de forma alternativa, as seguintes condutas:

a) submeter alguém a trabalhados forçados ou a jornada excessiva;

b) sujeitar a condições degradantes de trabalho;

c) restringir, por qualquer meio, a locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Nas mesmas penas (reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência) incorre quem:

d) cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;

e) mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.

No mesmo sentido dispõe a IN 91, de 05 de outubro 2011, da Secretária de Inspeção do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego, sobre procedimentos que deverão ser adotados em relação à fiscalização para a erradicação do trabalho em condição análoga à de escravo.

O projeto de lei em questão, na verdade, ao excluir o trabalho degradante como uma das modalidades de trabalho escravo da atualidade, incide em manifesto retrocesso social, não admitido pela Constituição Federal de 1988 (arts. 7º, caput, e 5º, § 2º), contrariando a previsão legal já existente, consoante o mencionado art. 149 do Código Penal.

Além disso, o referido PLS acaba ignorando a previsão fundamental do art. 5º, inciso III, da Constituição da República, no sentido de que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (destaquei).

É preciso ter consciência de que a livre-iniciativa não pode ser exercida em prejuízo da dignidade da pessoa humana.

Afinal, como já decido pelo Supremo Tribunal Federal, para a “configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva ou a condições degradantes de trabalho, condutas alternativas previstas no tipo penal” (Inq. 3.412/AL, Red. para acordão Min. Rosa Weber, DJE 12.11.2012).

Espera-se, portanto, que o PL 432/13 seja aperfeiçoado, passando a abranger todas as atuais hipóteses de trabalho em condições análogas a de escravo, inclusive o trabalho em condições degradantes, atendendo, assim, à exigência constitucional de respeito ao valor social do trabalho (art. 1º, inciso IV, da Constituição da República).

________________

*Gustavo Filipe Barbosa Garcia é livre-docente e doutor pela Faculdade de Direito da USP. Especialista e pós-doutorado em Direito pela Universidad de Sevilla. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho. Professor Universitário. Advogado. Foi juiz do Trabalho, procurador do Trabalho do MPU e auditor-fiscal do Trabalho.

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