Migalhas de Peso

Estado "shakespeariano"

Assim como no drama que se encerra na obra "O Rei Lear", aqui livremente adaptada, do palco no qual somos atores a encenar nossas vidas, estamos a imitar a arte.

6/10/2014

O rei de nome Brasil1, de alcunha gigante medroso2 e cujo reinado se alastrava além d'olhos na América do Sul, tinha três filhos: Executivo, Legislativo e Judiciário, os dois primeiros comprometidos, o último cortejando a jovem Promotoria.

Com pouco mais de quinhentos anos, o jovem-velho pai resolvera abdicar dos temas de Estado3. Assim, convocou os filhos para uma audiência em reservado. Queria saber de suas próprias bocas qual deles o amava mais, a fim de dividir o Estado entre eles, na mesma proporção de seus sentimentos.

Executivo, o primogênito, declarou que pelo pai nutria amor tão grande quanto suas obrigações para com a "administração em geral, como a fixação das diretrizes políticas da administração em geral e a disciplina das atividades administrativas"4 entre outras relevantes funções. E disse muito mais, com a veemência de um marechal dirigindo-se à sua tropa em tempos de guerra, cousas essas fáceis de simular quando presentes outros interesses que não o verdadeiro amor. Embriagado pelas doces, mas venenosas, palavras, o pai concedeu ao filho mais velho um terço de seu reino.

Chamou então Legislativo, o segundo filho. Este não se fez de rogado. E com o coração podre como madeira carcomida a cupim, declarou fervorosa paixão pelo pai, já que a ele se "atribuiu a competência legislativa das entidades federadas."5

O rei Brasil, tomando-se pelo mais feliz dos pais, concedeu a Legislativo um outro terço de seu reinado.

Voltou-se então para seu terceiro filho, Judiciário, e questionou-lhe o que tinha a falar. Comedido como de costume, o filho disse ao pai que seu dever para com o rei era o de manter em boa ordem o "equipamento estatal encarregado de resolver conflitos às novas exigências postas por esta era."6 Nem mais, nem menos. E o fez de forma modesta a apresentação, por desgosto aos dissimulados testemunhos feitos pelos irmãos.

Apalermado com aparente ingratidão do filho mais novo, o rei pediu-lhe que reconsiderasse o que falara e modificasse sua sentença, para que tal não lhe trouxesse dissabores futuros.

Judiciário então respondeu ao pai que lhe era grato por ser autor de seus dias, desenvolvimento e atuação, mesmo em tempos outros de sofrimento e falta de liberdade, e que isso ele retribuía com segurança e legalidade. Não podia, porém, exprimir palavras de ordem e modo diferentes daquelas, nem com a ênfase como fizeram seus irmãos, nem prometer a alguns dar mais privilégios do que a outros.

Falou com pesar, pois sabia da falsidade dos louvores proferidos pelos irmãos mais velhos, preferindo então guardar silêncio de seus verdadeiros sentimentos. Acima da mercancia estava seu amor ao rei País.

Porém, o comedimento de suas palavras irritou ao rei que, em um ato falho e ausente de discernir o falso ao justo, decretou que o terço pertencente a Judiciário seria dividido entre Executivo e Legislativo, isolando o suposto filho ingrato no condado da Praça dos Três Poderes.

E assim o fez, tendo por fim fixado uma última condição aos dois filhos afortunados: a de frequentar alternativamente cada mês o palácio de um deles, acompanhado de um séquito de povo.

A absurda divisão deixou os súditos pasmos, mas assim foi feito.

O rei Brasil, como ato derradeiro contra o terceiro filho, mandou chamar a donzela Promotoria para lhe informar a deserção levada a efeito contra Judiciário. Promotoria fitando Judiciário disse ao rei que o acompanharia para fora do reinado.

Judiciário assim ficou ao longe, angustiado com os rumos dessa estória.

E nem bem se completara um mês e as artimanhas dos irmãos Executivo e Legislativo vieram à tona. Logo, o rei em sua estada com o filho Executivo notou que este se transformara por completo, face à indiferença com que passou a tratar o pai.

Executivo não dava ouvidos às necessidades mínimas do rei, e administrava a parte a que fez direito no reinado com gerência de ferro. A população que acompanhava seu pai também sentiu o desprezo do filho mais velho.

O pai, então, procurou o filho para lhe censurar os atos. Sem encarar os reclames do então rei de frente, Executivo disse que o Estado estava agora à sua própria sorte.

Em resposta o pai disse que iria se ver com o filho Legislativo, pois este o muito estimava. Qual o quê! Legislativo já havia sido alertado pelo irmão Executivo sobre as intenções do pai. E, como lhe era próprio e useiro conchavar, preparou a pior recepção ao jovem-senhor. Agora, um rato que rugia.

Pior, Executivo também aguardava ao Brasil na casa do irmão Legislativo.

Almas corrompidas, os irmãos quase levaram à bancarrota o Estado, aumentando a falta de credibilidade perante os reinados vizinhos e além-mar.

Apoiado por Promotoria, Judiciário saiu em socorro a Brasil. Combatível, trouxe um sopro de esperança ao Estado, mesmo enfrentando duros exércitos de resistências dos poderosos irmãos: Executivo e Legislativo.

Mas, outros ares começaram a rondar o reino antes impoluto, os ares da vilania praticada pela Promotoria contra o Judiciário, que pela casta amante passou a ser envenenado. O poder subiu-lhe à cabeça e ao fio da espada, sendo que pesadas condenações impôs, eivadas de interesses e torpeza. Aos irmãos enfileirou ombros.

A população d'antes esperançosa às ruas saiu. A quebradeira foi geral, sendo tamanha a reclamação que nossas personagens tiveram ao final suas cabeças decapitadas e servidas em bandeja do mais puro minério, extraído de terras distantes dominadas por mercadores silvícolas.

Assim como no drama que se encerra na obra “O Rei Lear”, aqui livremente adaptada, do palco no qual somos atores a encenar nossas vidas, estamos a imitar a arte.
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1 “Mas os acontecimentos tomaram rumo diverso. Se a cruz erguida naquele lugar durou algum tempo, o demônio logo começou a agir para derrubá-la, negando-se a perder o domínio sobre a nova terra: valendo-se do fato que carregamentos cada vez maiores de pau-brasil chegavam a Portugal, trabalhou para que o nome da madeira comercializada dominasse o do lenho no qual morrera Jesus, vulgarizando-o na boca do povo. Assim, era como se importasse mais “o nome de um pau que tinge panos” do que o “daquele pau que deu tintura a todos os sacramentos por que somos salvos, pelo sangue de Cristo que nele foi derramado”.” (‘História do Brasil para ocupados: os mais importantes historiadores apresentam de um jeito original os episódios decisivos e os personagens fascinantes que fizeram o nosso país.” / organização Luciano Figueiredo. MAGALHÃES, Joaquim Romero de. Quem descobriu o Brasil?. – 1 ed. – Rio de Janeiro : Casa da Palavra, 2013, p.24)
2 ‘in’ Brasil globolizado : o Brasil em um mundo surpreendente / [organizadores] Fábio Giambiagi, Octávio Barros ; [autores] Affonso Celso Pastore ...[et al.]. – Rio de Janeiro : Elsevier, 2008, p. VII
3 “Há pensadores que tentam caracterizar o Estado segundo posição predominantemente filosófica; outros realçam o lado jurídico e, por último, não faltam aqueles que levam mais em conta a formulação sociológica de seu conceito.” (‘Ciência política’. BONAVIDES, Paulo. – 21 ed. – São Paulo : Malheiros Editores, 2014, p. 66)
4 ‘in’ Curso de direito constitucional / MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. – São Paulo : Saraiva, 2007, p. 858
5 ‘in’ Curso de direito constitucional / JÚNIOR, Dirley da Cunha. – 5 ed. rev. ampl. e atual. – Salvador : Editora JusPODIUM, 2011, p.995
6 Tratado de direito constitucional, v. 1 / coordenadores Ives Gandra da Silva Martins, Gilmar Ferreira Mendes, Carlos Valder do Nascimento. NALINI, José Renato. “O Poder Judiciário na Constituição de 1988”. – São Paulo : Saraiva, 2010, p. 953

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*Dalton Cesar Cordeiro de Miranda é consultor e advogado do escritório Trench, Rossi e Watanabe Advogados.

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