Migalhas de Peso

Repercussão geral – anotações sobre as propostas formuladas pelo ministro Luís Roberto Barroso

Alterações radicais, criativas e realistas dos procedimentos relativos ao reconhecimento da repercussão geral parecem ser a única forma de permitir ao STF desempenhar adequadamente seu papel de guarda da Constituição.

25/9/2014

1. Introdução

No recente “I Colóquio sobre o STF: Homenagem ao centenário de Victor Nunes Leal”, promovido pela Associação dos Advogados de São Paulo e pelo Instituto Victor Nunes Leal, o Ministro Luís Roberto Barroso apresentou oportunas sugestões voltadas a aperfeiçoar o método de trabalho do Supremo Tribunal Federal. Na oportunidade, identificou os pontos mais relevantes de congestionamento do STF e deteve-se, com mais profundidade, no tema da seleção dos casos de repercussão geral.

Como o texto da exposição foi publicado em primeiríssima mão pelo Migalhas (edição nº 3.438), considerei ser esse o fórum próprio para tecer algumas breves considerações e apresentar singelas proposições no sentido de contribuir para o imprescindível debate sobre o tema.

<_st13a_metricconverter w:st="on" productid="2. A">2. A repercussão geral

A repercussão geral foi instituída no ordenamento jurídico brasileiro pela Emenda Constitucional n. 45/2004, como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário (art. 102, §3º, CF). Pretendeu-se, por um lado, reduzir o enorme afluxo de recursos direcionados ao Supremo Tribunal Federal, na grande maioria das vezes veiculando matérias de menor relevância para o país; por outro, prestigiar a qualidade dos julgamentos emanados pelo Supremo Tribunal Federal, intérprete máximo das normas constitucionais, a fim de valorizar sua função de Corte formadora de precedentes.

Na regulamentação infraconstitucional, agregou-se à repercussão geral um mecanismo voltado a permitir o gerenciamento mais eficiente das denominadas demandas de massa, que exigem repetidos julgamentos sobre o mesmo tema constitucional. Estabeleceu-se, assim, o julgamento de recursos extraordinários repetitivos (art. 543-B, CPC).

A modificação constitucional foi aplaudida por significativa parte da doutrina, que realizou estudos e apontamentos comparativos com sistemas estrangeiros, para concluir que a missão constitucional destinada ao Supremo Tribunal Federal não poderia torná-lo refém de milhares de casos irrelevantes do ponto de vista social, jurídico, político ou econômico1. Reconheceu-se que o tempo do STF deve ser empregado para julgar as causas de maior repercussão para a sociedade, que demandam maior estudo, meditação e debates. Por isso, a introdução de um filtro de acesso ao STF foi considerada legítima e revelou verdadeira esperança no sentido de melhorar a organização dos trabalhos do Supremo.

O texto do Ministro <_st13a_personname w:st="on">Luís Roberto Barroso, porém, é revelador de que o instituto da repercussão geral, embora tenha permitido reduzir drasticamente o número de recursos extraordinários e agravos de decisão denegatória – de 59.722 em 2008 para 35.977 em 2013 -, é apenas uma miragem de um desejável oásis, pois “o número de recursos extraordinários e de agravos em recurso extraordinário que ainda chegam anualmente a cada Gabinete excede a capacidade humana dos Ministros”.

Não há como negar que o número de recursos dirigidos ao STF, mesmo com o filtro da repercussão geral, inviabiliza o adequado desenvolvimento do papel de guardião da Constituição. Não é por outro motivo que o referido Tribunal continuou a utilizar a denominada jurisprudência defensiva, como meio de reduzir a excessiva carga de trabalho.

A partir de dados estatísticos, o Ministro Luís Roberto Barroso apresenta outro dado preocupante, qual seja, o tempo necessário para julgamento dos casos em que houve reconhecimento de repercussão geral: de sete anos (se considerado o ano em que mais se julgaram recursos com repercussão geral) a 12 anos (se mantida a média de julgamentos por ano)2. Esse dado é alarmante, notadamente por que muitos casos de repercussão geral ensejam que os sujeitos interessados e também os órgãos do Poder Judiciário adotem postura de espera, até que a solução venha a ser apresentada pelo STF. Pior ainda para os casos repetitivos, em que milhares de recursos extraordinários ficam compulsoriamente sobrestados na origem, até que a matéria seja apreciada pelo Supremo.

Esse problema poderá ser agravado em razão da iminente aprovação do Projeto do Novo Código de Processo Civil, que prevê: “Reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional” (art. 1.048, §5º). Igual previsão é estabelecida para os recursos extraordinários repetitivos (art. 1.050, II). A regra é mitigada pelo §10 do art. 1.048 e pelo §5º do art. 1.050, que limitam a suspensão do processo ao período de um ano; no caso dos recursos extraordinários repetitivos, porém, outro relator poderá novamente afetar a matéria e, com isso, levar a nova suspensão do processo (§6º do art. 1.050).

Em suma, o eventual reconhecimento de repercussão geral para recursos repetitivos ensejará a paralisação de inúmeros processos, alguns desde o limiar, sem a esperança de o STF fixar de modo célere uma diretriz, o que conspira contra o princípio constitucional da razoável duração do processo.

3. As propostas do Ministro Luís Roberto Barroso em relação à escolha dos casos de repercussão geral

Nesse quadro dramático, verifica-se que as propostas no sentido de o STF modificar a gestão do exame da repercussão geral são muito felizes. Sem dúvida, representam mudança radical no modo de enxergar a “crise do Supremo” e de superá-la adequadamente. As propostas merecem o prestígio e o apoio da comunidade jurídica, por pretenderem trazer ao Supremo uma forma organizada de trabalhar, com maior atenção pública aos casos de repercussão, além de ampliar a contribuição das partes e do amicus curiae na formação dos votos, o respeito aos advogados, a previsibilidade de julgamento e, principalmente, a qualidade das decisões do STF.

Em linhas gerais, a proposta do Ministro Luís Roberto Barroso pretende: (i) estabelecer a escolha dos casos de repercussão geral duas vezes ao ano (junho e dezembro), quando se selecionariam os principais casos da safra de processos daquele período; (ii) limitar o reconhecimento da repercussão geral a dez casos por semestre; (iii) realizar a redistribuição dos casos em que a repercussão geral seja reconhecida, para que haja igualdade entre os Ministros; (iv) fixar datas para a sustentação oral, aproximadamente seis meses antes da sessão de julgamento; (v) fixar pauta para a sessão de julgamento dos casos de repercussão geral.

Nada obstante o importante ponto de partida apresentado de maneira extremamente racional pelo Ministro Barroso, algumas sugestões pontuais talvez possam ser consideradas no debate. Nesse breve espaço, o enfoque estará voltado para as repercussões gerais futuras, desconsiderando, portanto, as repercussões já reconhecidas.

a) O procedimento de escolha semestral

O primeiro ponto a ser comentado é a salutar criação de momentos definidos para a análise dos casos de repercussão geral: duas vezes por ano os Ministros do STF selecionarão os casos imbuídos de repercussão geral. Esse procedimento permite identificar, dentro de determinado universo de processos qualitativa e quantitativamente diversos, a partir de método comparativo, aqueles que apresentam a maior relevância para a nação. Em outras palavras, o STF poderá distinguir, dentre os casos surgidos no período, aqueles de repercussão geral qualificada.

Pelo que se extrai da proposta, os casos não selecionados terão a repercussão geral negada. Disso resulta que, à exceção dos recursos com repercussão geral reconhecida, todos os demais serão indeferidos, inclusive aqueles sobrestados à espera do julgamento do STF. E pode-se dizer, com boa dose de segurança, que reconhecer a inexistência de repercussão geral constitui óbice praticamente intransponível a novo acesso da questão ao STF, por meio de recurso extraordinário3.

Contudo, dentre os casos não selecionados, haverá alguns que veiculam questões constitucionais com duvidosa repercussão geral. Esses casos, embora não ostentem qualificação suficiente para permitir seu julgamento, por não figurarem dentre os mais relevantes daquela safra, em outras circunstâncias poderiam ser escolhidos pelo STF. Em outras palavras, se houvesse novo escrutínio, com diferentes casos, seria possível o reconhecimento da repercussão geral e, portanto, o processamento do recurso extraordinário.

Por isso, é prudente outorgar-se a possibilidade de que essas questões constitucionais, embora vencidas na votação sobre a presença de repercussão geral em um semestre, retornem à discussão do Plenário, para serem confrontadas com os casos da safra subsequente. Esse movimento exige que os casos de repercussão geral duvidosa não sejam indeferidos e a análise da presença dos requisitos caracterizadores da repercussão geral seja sobrestada, para permitir sua rediscussão no semestre seguinte.

Em resumo, parece adequado haver três situações na verificação da repercussão geral pelo STF: (i) casos com repercussão geral reconhecida; (ii) casos com repercussão geral negada; e (iii) casos de repercussão geral sobrestada.

É indesejável que a análise da repercussão geral possa ser postergada ad eternum, isto é, sem limite temporal para sua apreciação. O recurso extraordinário que veicula a questão constitucional permanecerá pendente de julgamento, a impedir a formação da coisa julgada4. Nessa ordem de ideias, é razoável conceber que se o tema constitucional for de duvidosa repercussão geral, mas não foi escolhido em três ou quatro semestres, será presumidamente destituído de repercussão geral.

A declaração da inexistência de repercussão geral para esse caso, porém, não deve afastar a possibilidade de o STF, em casos futuros, reconhecer a repercussão geral sobre o tema. A propósito, o art. 543-A, §5º, do CPC estabelece a possibilidade de haver a revisão do posicionamento sobre a repercussão geral, a ser realizada na forma estabelecida no Regimento Interno do STF. Na prática, porém, não há previsão normativa. Daí a necessidade de editarem-se regras para o fim de permitir que haja novo exame da matéria dando vida à repercussão geral – talvez até mesmo prevendo a liberdade na reapreciação do tema em futuros recursos extraordinários.

b) o número de casos a serem escolhidos

Em seu texto, o Ministro Barroso faz uma ponderação fundamental ao tema: o STF não deve reconhecer mais repercussões gerais do que tem capacidade de julgar em um ano. Com efeito, de nada adianta reconhecer 62 casos de repercussão geral em média – como tem ocorrido até o momento -, quando a capacidade média de julgamento do Plenário é de apenas 27. A tendência, evidentemente, é de ampliar os casos não julgados, criando um estoque de inviável solução adequada no curto, médio ou longo prazo.

A proposta apresentada sugere limitar o julgamento das repercussões gerais a um número de 20 ao ano (dez por semestre). A quantidade apresentada decorre de dois fatores: (i) o número de Ministros da Corte que recebem distribuição de processos; e (ii) a média de julgamentos de casos de repercussão geral. Prestigiam-se, assim, a igualdade na distribuição e a capacidade de trabalho do STF.

Como a atividade do STF não se desenvolve exclusivamente para o julgamento de recursos extraordinários e seus derivados, seria tecnicamente mais preciso fixar o número de casos de repercussão geral a serem selecionados a partir do conhecimento do número total de casos da Corte e de sua adequada capacidade de trabalho. Não se mostra infensa a críticas a ideia de isolar a análise da repercussão geral, para conceder-lhe tratamento específico, enquanto se avolumam outras espécies de processo, como habeas corpus e reclamação, que, se não administradas adequadamente, em breve período de tempo podem reduzir a capacidade do Tribunal para o julgamento das questões de repercussão geral.

Nessa linha, seria preferível criar um modelo a partir da realidade geral da Corte, para que, com isso, venha a ser possível identificar o número ideal de casos a serem julgados. No entanto, como alguns assuntos referentes à competência da Corte e sua organização são de delicada (e demorada) discussão, afigura-se razoável procurar nos dados estatísticos do STF um norte para buscar solucionar o problema dos excessivos casos de repercussão geral.

Ainda nesse ponto, talvez seja mais apropriado não estabelecer um sistema rígido de autolimitação de casos. Ao contrário, o número de processos a ser julgado deveria ser definido a cada sessão semestral voltada à discussão dos casos que apresentam repercussão geral. Com isso, semestralmente, o próprio STF examinaria sua capacidade de julgar para o ano seguinte. A vantagem desse modelo flexível seria permitir ao STF acompanhar as mudanças que eventualmente ampliem o tempo para o julgamento de recursos extraordinários com repercussão geral.

Considerado esse dado, seria possível ao STF estabelecer, por exemplo, o julgamento de 15 ou 20 casos de repercussão geral para o segundo semestre de 2015, se a pauta do plenário assim permitir, dada a alteração da competência para a apreciação das ações penais originárias. A intenção é alargar, quando possível e necessário, o número de casos a serem apreciados pelo STF, embora eventualmente possa prejudicar a regra da distribuição isonômica entre os Ministros da Corte.

Essa regra da igualdade, embora interessante, não se revela essencial para o tema. É perfeitamente possível levar a efeito os procedimentos propostos, ainda que um ou outro Ministro seja incumbido de relatar mais de um processo com repercussão geral. Nesse caso, pode-se compensar a distribuição com outras espécies de processo (ADI ou ADC, por exemplo).

c) Calendário

Por fim, quanto ao calendário previamente estabelecido, a providência é de inegável mérito. A fixação de datas para a sustentação oral e julgamento – inclusive a ordem na própria sessão – são importantes para trazer previsibilidade de tempo à solução da questão.

No que se refere à sustentação oral, a iniciativa da proposta parte da experiência privilegiada do Ministro Luís Roberto Barroso como um dos mais importantes advogados do STF nos últimos anos e, agora, como Ministro. O fato de haver exercido a advocacia no STF permitiu-lhe constatar que a regra geral prevista no CPC, segundo a qual as sustentações orais tenham lugar logo após a exposição da causa pelo relator, na própria sessão de julgamento (art. 554), limita a contribuição para a formação dos votos, preparados por escrito com muita antecedência e dificilmente alterados na própria sessão.

O contraditório efetivo é mais valorizado quando as partes têm oportunidade de contribuir para a formação do pensamento do julgador. Por isso, ao lado das alegações escritas, a realização de sustentação oral antes ou durante o período de elaboração dos votos escritos terá a grande vantagem de auxiliar na formação da convicção dos Ministros sobre os diversos aspectos que compõem a formação da tese jurídica a ser enfrentada no julgamento e, inclusive, esclarecer dúvidas porventura surgidas durante a sessão.

A definição de datas fixadas para as sessões, porém, poderá trazer algumas complicações práticas. Além de situações imprevisíveis (v.g., o afastamento de algum Ministro por problema de saúde às vésperas do julgamento), que receberão tratamento específico, é preciso desde logo prever situações mais corriqueiras, que podem inviabilizar o julgamento do recurso nas datas estipuladas. A nomeação de novo Ministro após as sustentações orais de determinado caso de repercussão geral é hipótese que deve ser pensada. Outra situação comum é a aposentadoria de um Ministro e a demora na indicação de outro pelo Presidente da República. Ainda que considerada a possibilidade de recursos revestidos de repercussão geral serem distribuídos à cadeira vaga, a dificuldade que aqui se revela é aprovar um calendário que não se sabe se poderá ser cumprido, ante a ausência do próprio relator ainda não nomeado.

4. Conclusão

As propostas elaboradas pelo Ministro Luís Roberto Barroso representam importante passo para permitir a adequada gestão dos processos dirigidos ao STF. Trata-se de sair do lugar comum; de evidenciar as dificuldades no caminho até agora trilhado e revelar que sua manutenção não traz alento à situação do STF. Uma frase de Dostoiévski sintetiza o pensamento sobre as referidas propostas: “É só ver a questão com um olhar plenamente independente, amplo e livre das influências corriqueiras e então, é claro, o meu pensamento não parecerá tão... estranho”5.

Alterações radicais, criativas e realistas dos procedimentos relativos ao reconhecimento da repercussão geral parecem ser a única forma de permitir ao STF desempenhar adequadamente seu papel de guarda da Constituição.

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1 Dentre outros: Araken de Assis, Manual dos recursos, RT, 2008; Arruda Alvim, A EC n. 45 e o instituto da repercussão geral, in Reforma do Poder Judiciário, RT, 2005; Bruno Dantas, Repercussão geral: perspectivas histórica, dogmática e de direito comparado: questões processuais, 2ª ed., RT, 2009; José Miguel Garcia Medina, Luiz Rodrigues Wambier e Teresa Arruda Alvim Wambier, Repercussão geral e súmula vinculante: relevantes novidades trazidas pela EC n. 45/2004, in Reforma do Poder Judiciário, RT, 2005.

2 Pode-se dizer que a visão apresentada é otimista, porque não considera a eventualidade de haver redução na média de julgamentos de casos de repercussão geral.

3 O §5º do art. 543-A dispõe: “Negada a existência da repercussão geral, a decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal”. Da mesma forma, o art. 326 do Regimento Interno do STF preceitua: “Toda decisão de inexistência de repercussão geral é irrecorrível e, valendo para todos os recursos sobre questão idêntica, deve ser comunicada, pelo(a) Relator(a), à Presidência do Tribunal, para os fins do artigo subsequente e do art. 329”. Significa dizer que, de maneira geral, não haverá possibilidade de o recurso extraordinário ascender ao STF para versar sobre tema constitucional cuja repercussão geral tenha sido considerada ausente.

4 Agravado nos casos de recursos extraordinários repetitivos, em que milhares de casos estarão paralisados, à espera do trânsito em julgado.

5 Crime e Castigo.

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* Rodrigo Barioni é doutor e mestre em Direito pela PUC-SP. Professor da Faculdade de Direito da PUC-SP. Vice-Presidente do Centro de Estudos Avançados de Processo e sócio de Barioni e Carvalho Advogados.

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