O aniversário de duas décadas do Plano Real, comemorado recentemente, suscitou várias análises. Todos reconhecem sua importância na economia e na vida dos brasileiros. Mas há consequências jurídicas importantíssimas que não têm recebido o devido destaque. Uma delas é no campo do direito administrativo.
Podemos dizer que o Plano Real reinventou o contrato administrativo. Não é exagero. Um dos elementos nucleares de qualquer contrato é o preço. Antes do Real o preço pactuado entre Administração e particular numa licitação era uma mera referência numérica, um detalhe menor. A retribuição pecuniária que o contratado efetivamente receberia era quase aleatória. Dependia da virtude ou da sorte do índice de reajuste conseguir capturar corretamente a inflação futura; do poder público pagar mais ou menos em dia (o que, obviamente, não ocorria); do instante em que o privado conseguiria contratar os insumos necessários.
O valor do contrato não refletia em nada o preço efetivo do bem, serviço ou obra correspondente ao seu objeto. Por um lado, porque o preço vencedor da licitação necessariamente continha embutido um seguro (nunca suficiente) contra a inflação futura (que ninguém sabia bem qual seria). Por outro lado porque parte substancial da remuneração não vinha da medição do quanto executado, mas do valor recebido a título de reajuste, em fatura complementar ou em ação judicial. Responsabilidade fiscal, então, era quase uma contradição em termos. O bom gestor fiscal era aquele que procrastinava ao máximo o pagamento de suas obrigações, impingindo um “desconto compulsório” ao fornecedor. Agindo assim, podia contratar ilimitadamente, pois orçamento, empenho e liquidação de despesa eram meros documentos contábeis sem maiores consequências.
Nas grandes empresas do setor de infraestrutura, por exemplo, o departamento financeiro era dezenas de vezes mais importante que o setor de engenharia ou o de orçamentação e logística. As empresas faziam mais engenharia financeira do que engenharia civil.
Com a estabilização monetária trazida pelo Real, o preço passou a se aproximar de sua função: sinalizar o valor de uma mercadoria, bem, obra, serviço. Com isso, tornou-se possível uma série de fatos que frequentam hoje o dia a dia dos contratos administrativos. Cito apenas alguns.
A cláusula de reajuste segue importante, mas assumiu um papel secundário em relação a outros aspectos como, por exemplo, o planejamento da execução do objeto. Com todos os exageros e abuso praticados no tema pelos órgãos de controle (tema para um outro artigo), passou a ser possível à Administração dispor de bancos de dados públicos de preços de insumos, bem como se fazer o controle de economicidade de custos unitários. As boas empresas passaram a se ocupar em buscar produtividade com soluções inovadoras e investimentos em tecnologia. Ou buscar ganhos de escala e escopo na contratação com seus fornecedores. Pagar a destempo deixou de ser um bom negócio, reduzindo – ainda que, infelizmente, não eliminando – a prática do atraso deliberado no pagamento de faturas.
Um grande desafio cultural e institucional no Brasil é fazer o contrato administrativo respeitado e honrado. Algo quase acaciano, mas que muitas vezes soa exótico. Como parece por aqui ser um tanto excêntrico acreditar que o preço resultante de uma licitação pública reflita a mensuração correta do valor de mercado para o objeto de que necessita a Administração. Para uma e outra coisa é fundamental confiar na moeda. O Plano Real nos deu esta possibilidade, mesmo que o perigo da inflação siga rondando. E, com isso, transformou o contrato administrativo de uma pantomima num instituto potencialmente fiável. Ao menos enquanto o Judiciário permitir.
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