Em artigo publicado neste Migalhas (dia 9/06/14), o professor Haroldo Verçosa repercute os resultados de um estudo que procurou estimar o impacto econômico do projeto de Código Comercial, atualmente em trâmite no Congresso Nacional.
Após tomar o estudo como fundamento de suas opiniões, o professor conclama aos que eventualmente discordem da metodologia utilizada a apresentar suas razões.
Fico satisfeito em descobrir que o professor passou a se interessar por pesquisa empírica em direito, campo de estudos recém desembarcado no Brasil. Fico igualmente satisfeito em notar a sua compreensível preocupação em descobrir se o estudo padeceria de algum defeito de ordem metodológica.
De fato, o estudo apresenta deficiências metodológicas sérias e veicula informações que aparentam ser técnicas, mas que na verdade não resultaram de uma reflexão cuidadosa. Tais deficiências podem acabar contribuindo para a desinformação do público, o que acredito não tenha sido o objetivo dos autores do estudo, nem daqueles que inadvertidamente divulgaram seus resultados.
Por tal razão, aproveito o espaço cedido pelo Migalhas para atender ao pedido do professor, bem como às mensagens que recebi ao longo dos últimos dias por conta de um artigo publicado recentemente no Valor, e explicar em maior detalhe alguns dos problemas metodológicos desse estudo.
Espero que os esclarecimentos sejam capazes de dirimir as dúvidas e de contribuir para o fortalecimento da pesquisa empírica em nossa comunidade jurídica.
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O estudo se propõe a calcular os custos de litígio do projeto, definido como os custos incorridos por conta das ações judiciais geradas em decorrência da edição de uma nova lei. Para fazer o cálculo, os pesquisadores tomam a lei de falências como referência e afirmam que a quantidade de processos com base nessa lei vem subindo nos últimos nove anos em decorrência da dificuldade dos tribunais interpretarem o novo diploma.
Partindo dessa premissa, o estudo calcula o impacto do projeto através de uma regra de três: se a lei de falências tem 201 artigos e gerou 2.740 processos por ano, um projeto de 1.102 artigos gerará 15.043, somente em segundo e terceiro graus. Em seguida, outra regra de três é aplicada para estimar a quantidade de processos em primeiro grau, utilizando informações do CNJ. O estudo afirma que esses dados não seriam estimações, o que é errado, pois a conta não considera o tipo de processo gerado pelas leis, nem as unidades federativas que a pesquisa abrange. Finalmente, utiliza-se um preço médio por processo tirado de outro estudo, para chegar a um custo total do projeto de mais de R$ 136 milhões.
A proposta de estabelecer uma relação de causalidade linear entre os custos de um projeto e a sua quantidade de artigos soa estranha. Não parece razoável calcular o impacto de uma lei considerado apenas quantos dispositivos ela tem e assumindo que qualquer artigo, independentemente do seu conteúdo, geraria um custo estimado de R$ 124 mil.
Como explicado no artigo do Valor, essa generalização leva a conclusões sem sentido, como, por exemplo, a de que projetos com disposições contraditórias entre si produziriam impactos iguais, desde que apresentem o mesmo número de artigos; ou que a revogação da lei das S/A através de um único artigo de lei custaria ao país R$ 124 mil; ou, ainda, que seria possível reduzir o impacto econômico de um projeto de lei apenas renumerando seus artigos como incisos.
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Mas ainda que assumíssemos essa suposição, ela valeria apenas para os custos de litígio e não para os possíveis benefícios que poderiam ser gerados pela aplicação da lei.
Espera-se de um estudo de impacto econômico ponderações sobre a relação entre os custos e os benefícios da lei projetada, para verificarmos se o resultado final será favorável ou não para sociedade. Não se pode conceber uma pesquisa de impacto econômico, que levante apenas custos e não apresente considerações sobre os potenciais ganhos da lei.
Mas foi isso o que acabou sendo feito.
Pegue-se o exemplo da lei de falências. A conta do custo de litígio chegaria ao valor de R$ 33,88 milhões. Admitindo que esse valor seja verdadeiro (o que não acredito), ainda assim a lei foi bem recebida pela comunidade jurídica e suponho que ninguém seja hoje favorável ao retorno da concordata apenas porque o número de recuperações judiciais aumentou. Seria, portanto, razoável ao menos considerar a hipótese de que os benefícios gerados pela nova lei de falências tenham superado os custos de sua implementação.
O problema é que o estudo analisa apenas os supostos custos e não se propõe sequer a considerar a possibilidade do projeto gerar algum benefício. Ao fixar a premissa de que nenhum dos 1.102 artigos do projeto de Código Comercial produziria sequer um centavo de ganho, o estudo dá a impressão de ter sido planejado para produzir um resultado negativo.
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O estudo também se equivoca ao supor que a nova lei de falências teria causado um aumento no volume de processos e que esse aumento seria generalizável para outros projetos de lei.
Os dados da Serasa Experian mostram que o volume de processos de falências em primeira instância caiu depois da nova lei, descendo de patamares superiores a 1500 pedidos por mês para aproximadamente duzentos.
Os dados mostram, além disso, que a soma dos pedidos de falência e concordata entre 1997 e 2005 (de 174.308) é substancialmente maior (quase seis vezes mais) do que a soma dos pedidos de falência e recuperação ingressados entre 2005 e 2013 (de 30.040).
O gráfico ilustrando a queda nos pedidos de falência não poderia ser mais eloqüente.
A queda nas ações de falência pode ser explicada pela introdução do piso de quarenta salários-mínimos (art. 94 da lei) como requisito obrigatório para o ingresso de um requerimento desse tipo, dispositivo que barrou a entrada de pedidos espúrios e financeiramente irrelevantes.
Já o aumento nas ações de recuperação pode ser explicado pelo fato do legislador ter deliberadamente intencionado oferecer aos empresários um remédio jurisdicional para socorrê-los em épocas de crise. Com a crise de 2008, era, portanto, esperado que eles corressem aos tribunais para pedir ajuda, ocasionando um aumento nos pedidos de recuperação.
De qualquer forma, tendo em vista que a nova lei de falências provocou uma significativa redução na quantidade de processos, a tentativa de associar um imaginado aumento de ações a todo e qualquer projeto de lei em matéria comercial fica comprometida.
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Mas se os dados públicos são tão claros, de onde surgiu a ideia de que a nova lei de falências teria dado causa a um aumento na quantidade de ações?
Ao que parece, o estudo incorre em um erro elementar: ele desconsidera o volume de processos antes do advento da nova lei.
Regra básica para uma avaliação de impacto legislativo é, sempre que possível, comparar a situação anterior à vigência da lei com a situação posterior. É por meio da confrontação entre um cenário em que a lei não era vigente com outro no qual a lei vigorava, que se pode tentar estimar o impacto da mudança legislativa.
No estudo aqui discutido, o objetivo era avaliar como a entrada em vigor da nova lei de falências (variável explicativa) teria afetado o volume de processos (variável de interesse), o que poderia ser feito através de uma simples comparação entre a quantidade de processos antes e depois de 2005.
O problema é que o estudo desconsiderou a situação anterior à vigência da lei e calculou apenas a variação do volume de processos a partir do ano de 2005, período em que a nova lei já havia impedido o ingresso de todas as falências irrelevantes.
Não por outra razão, os autores chegam à conclusão equivocada de que a quantidade de ações teria aumentado, quando, na verdade, a lei está associada a uma drástica redução no volume de processos.
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Mas quais seriam, então, as explicações para a variação na quantidade de ações depois da vigência da nova lei?
Há algumas hipóteses formuladas pelos especialistas. Uma delas é a seguinte.
A interpretação da lei de falências foi rapidamente absorvida pelos tribunais (o prazo de 10 anos do estudo é superestimado) e a variação na quantidade de ações pode ser explicada não por dilemas hermenêuticos de uma década, mas pela associação entre os pedidos de recuperação e falência, de um lado, e o desempenho geral da economia brasileira, de outro. Quando a economia vai mal, existe uma tendência de aumento nos pedidos de recuperação e falência; quando a economia vai bem, eles tendem a diminuir.
Uma análise preliminar dos dados (a ser confirmada) parece corroborar essa explicação, ao mostrar um aumento mais acentuado a partir de 2008 e 2009, época da crise, atingindo preferencialmente empresas de pequeno e médio porte, mais sujeitas a conjunturas econômicas desfavoráveis.
Vejam o gráfico abaixo.
Surpreende o fato dessa e de outras possíveis explicações não terem sido sequer considerada pelos autores do estudo (como, por exemplo, a que tem sido chamada de “indústria da recuperação judicial”).
Sem manifestar qualquer preocupação em formular hipóteses concorrentes com a sua, o estudo assume que a variação seria integralmente explicada por dúvidas sobre o sentido da lei e generaliza de forma apressada essa discutível premissa, afirmando que todo projeto geraria as mesmas quantidades de dúvidas hermenêuticas e de processos judiciais.
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Há, por fim, um sério problema de intencionalidade. Sob a justificativa de que o projeto teria artigos demais, o estudo admite ter selecionado intencionalmente para a análise alguns dispositivos que causariam maior custo para o empresariado.
A pergunta é: se os autores já partiram da premissa de que certos artigos gerariam maior custo, qual o propósito do estudo? Se o objetivo era estimar um impacto até então desconhecido, como o estudo pode iniciar sua análise escolhendo alguns artigos que identifica, de antemão, como sendo os mais custosos?
A resposta é que o estudo não procurou estimar um impacto desconhecido. Na realidade, ele assumiu o pressuposto de que o resultado da lei projetada seria negativo e, em desacordo com os ditames básicos da pesquisa quantitativa, não tentou por um só momento invalidar essa hipótese, procurando apenas construir argumentos para comprová-la.
Essa arbitrariedade na fixação das conclusões se manifesta mais adiante em outras escolhas, como por exemplo no cálculo dos custos.
Pegue-se o caso das companhias abertas. O estudo calcula o custo do projeto sobre as empresas de capital aberto como uma função da mudança no market cap das empresas listadas no IBRX, antes e depois da possível entrada em vigor do novo Código Comercial. Essa mudança no market cap é, por sua vez, calculada a partir de uma redução no índice preço/lucro do mercado. Assume-se que essa redução no preço/lucro seria uma fração (ou "coeficiente de multiplicação", conforme consta do estudo) do desvio padrão do mesmo preço/lucro.
No entanto, o fato de assumir valores arbitrários para esse "coeficiente" torna toda a conta arbitrária. Não foi possível encontrar no estudo razões econômicas nem estatísticas para a escolha dos valores, que expressam uma opção subjetiva dos autores e que, portanto, espelham não um dado objetivo, mas a preferência individual deles.
Por exemplo, um jurista que tenha se posicionado veementemente contra o projeto poderia arbitrar um coeficiente ainda maior de, digamos, 1,2, chegando a um impacto negativo de mais de R$ 109 bilhões. Já outro jurista favorável ao projeto poderia atribuir um coeficiente de -0,66, chegando a um impacto positivo de R$ 68 bilhões.
O que esses números acrescentam ao debate? Em uma palavra: nada.
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Concluindo, para não reduzirmos a pesquisa empírica a uma variante das velhas contendas dogmáticas, na qual as pilhas de citações doutrinárias serão substituídas por amontoados de números sem significado, os pesquisadores engajados nesse tipo de trabalho precisam abraçar uma postura de desprendimento, marcada pela desconfiança sobre suas próprias intuições.
As pesquisas empíricas foram criadas para testar hipóteses e não para confirmar intuições. Por tal razão, o erro do estudo foi dogmatizar as intuições de seus autores, reduzindo o que deveria ser uma hipótese de trabalho a uma verdade apriorística não questionada. Uma postura que, a despeito da forma matemática, em nada difere da velha retórica acadêmica, baseada na seleção intencional de citações doutrinárias e soluções jurisprudenciais favoráveis à tese sustentada.
Espero que esses comentários tenham servido para alertar os autores do estudo, bem como os professores que o divulgaram, a respeito dos equívocos metodológicos cometidos. Minha intenção, acima de tudo, é elevar o nível do debate e contribuir para que a Jurimetria, a análise econômica do direito e as demais variantes da pesquisa empírica no Brasil se desenvolvam infensas aos subjetivismos dos já desgastados embates da doutrina tradicional.
Encerro por ora meus comentários sobre esse assunto, mas fico à disposição dos autores do estudo e dos professores que o repercutiram para avançar na discussão.
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