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Fraude à execução no novo CPC

Houve alteração digna de nota e que deve ser bem refletida antes de o Senado aprovar a redação final do novo CPC.

5/8/2014

Existem diferenças substanciais entre o texto do projeto do novo CPC aprovado pela Câmara em 26/3/14 e o texto do projeto do Senado Federal, em 2010.

Com relação à fraude de execução, houve alteração digna de nota e que deve ser bem refletida antes de o Senado aprovar a redação final do novo CPC. O tema a que aqui nos referimos é objeto da emenda 89, apresentada pelo senador Mozarildo Cavalcanti em 11/6/14.

Em ambos os projetos, existe o consenso de reconhecer a presunção absoluta de fraude à execução se realizada alienação ou oneração de bens quando há averbação da existência da ação, da hipoteca judiciária ou de ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude. Desse modo, a fraude pode ser reconhecida, inclusive, antes da citação ou da penhora, desde que exista registro público do gravame judicial ou do ajuizamento da ação capaz de reduzir o devedor à insolvência, em qualquer das hipóteses.

A principal divergência entre os projetos – e esta é o objeto de nossa preocupação – ocorre na hipótese em que não há registro e concerne à atribuição do ônus de provar a boa ou a má-fé do terceiro adquirente.

O posicionamento adotado pelo STJ, na súmula 375, é o de que “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”. Referida súmula foi baseada em precedentes que, na falta de registro, imputam ao credor o ônus de provar a má-fé do terceiro adquirente, demonstrando que este tinha ciência da ação em curso.

A despeito da súmula citada, o entendimento do STJ permanece em aberto, uma vez que está afetado, como processo representativo de controvérsia repetitiva, o REsp 956.943, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, nos moldes do art. 543-C do CPC, no qual se propõe, inclusive, a revisão da parte final do referido enunciado sumular.

Em artigo doutrinário a ministra Nancy Andrighi (em co-autoria com Daniel Bittencourt Guariento) defende que só se pode considerar objetivamente de boa-fé, o terceiro que adota mínimas cautelas para a segurança jurídica da sua aquisição (Fraude de execução: O Enunciado 375 da Súmula/STJ e o Projeto do novo Código de Processo Civil. In: Arruda Alvim e outros (Coords.) Execução civil e temas afins – do CPC/1973 ao novo CPC. São Paulo: RT, 2014, p. 354 a 364).

De acordo com a teoria da distribuição dinâmica – acolhida no art. 380, § 1º do projeto aprovado pela Câmara –, o ônus da prova deve recair sobre quem tiver melhores condições de produzi-la, conforme as circunstâncias fáticas de cada caso. E, na imensa maioria das situações, é o terceiro adquirente quem reúne melhores condições para provar que agiu de boa-fé, e não o credor, que tem extrema dificuldade em provar a má-fé desse terceiro. Prova maior desse fato é que não houve reconhecimento da fraude de execução em nenhum dos 21 acórdãos que deram origem à súmula 375.

Aliás, em pesquisa empírica realizada com base em mais de 130 precedentes do STJ, já se apurou que a atribuição do ônus ao credor faz com que a fraude seja reconhecida em menos de 8% dos casos (cf. Rodolfo da Costa Manso Real Amadeo, A Relevância do Elemento Subjetivo na Fraude de Execução, Tese (Doutorado), Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, pp. 220 e ss.).

Os fundamentos que justificam a aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova se encontram nos princípios constitucionais da isonomia (arts. 5º, caput, da CF), do devido processo legal (art. 5º, XIV, da CF), e do acesso à justiça (art. 5º XXXV, da CF). Ressalta-se que, os textos do projeto do novo CPC explicitam a necessidade de observância dos princípios constitucionais no processo. Assim, na parte geral, existem disposições claras de princípios constitucionais processuais, que ampliam a valorização do dever de cooperação das partes, da boa-fé processual, da isonomia, da formação de contraditório anterior à decisão judicial, entre outros.

Além disso, o projeto do novo CPC, tanto na versão do Senado como na versão da Câmara (arts. 733 e art. 790, respectivamente), alinha-se ao vetor de atribuir maior efetividade à execução, reforçando a necessidade de punição do executado, que se furta do cumprimento de seus deveres processuais (já prevista nos artigos 600 e 601 do CPC). Assim, considera atentatória à dignidade da justiça a conduta comissiva ou omissiva do executado, que frauda a execução; se opõe maliciosamente à execução, empregando ardis e meios artificiosos; dificulta ou embaraça a realização da penhora; resiste injustificadamente às ordens judiciais; intimado, não indica ao juiz quais são e onde estão os bens sujeitos à penhora e seus respectivos valores, podendo o juiz fixar multa ao executado em montante não superior a vinte por cento do valor atualizado do débito em execução, a qual será revertida em proveito do exequente, exigível na própria execução, sem prejuízo de outras sanções de natureza processual ou material.

Diferentemente do art. 600, do CPC, o projeto deixa claro que tanto as condutas comissivas quanto as omissivas do executado podem representar atentado à dignidade de justiça. Além disso, o projeto da Câmara repete como atentatórias, as condutas que dificultam ou embaraçam a realização da penhora, que inclui a conduta de não indicar quais são os bens sujeitos a penhora e a sua localização.

Ao tratar especificamente da fraude, o parágrafo único do art. 749 do projeto do Senado prevê que: não havendo registro, o terceiro adquirente tem o ônus da prova de que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem”.

O dispositivo exige diligências mínimas que comprovem a boa-fé do adquirente, levando em consideração os casos em que deve haver o registro. Assim, na ausência de registro, prevê a atribuição do ônus da prova ao terceiro, impondo que ele prove sua condição de boa-fé.

O terceiro tem plena condição de demonstrar que agiu de boa-fé, sendo bastante razoável exigir que apresente as certidões obtidas junto aos cartórios de distribuição, do local do bem e do domicílio do alienante. (cf. Humberto Theodoro Júnior. Curso de Direito Processual Civil, 48ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2013, v. 2, n. 736-a. (A aplicação da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova à fraude de execução), p. 200 e 201).

Se, ao tempo da alienação ou oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência, na imensa maioria das vezes tal ação estará em curso no domicílio do devedor ou no foro da situação do bem, de modo que o terceiro adquirente tem condições de saber da existência dessas ações por meio de simples busca nos distribuidores forenses. Ao assim agir, o terceiro fica de posse de provas documentais para demonstrar que agiu de boa-fé, que adotou as cautelas necessárias.

Para William Santos Ferreira (O ônus da prova na fraude à execução. In: Alberto Camiña Moreira e outros (Coords.). Panorana atual das tutelas individual e coletiva. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 767) é necessário que o estudo da fraude à execução não esteja divorciado “da preocupação em se fechar as portas para atitudes que construam (com boa ou má-fé subjetivas) obstáculos para a demonstração da fraude à execução; por exemplo, se considerar correta, normal a liberação de certidões em alienações ou onerações, seja por parte do alienante ou do adquirente (ou de ambos!), isto representará para o exequente a imposição de um ônus probatório inconcebível, impondo-lhe uma inadmissível prova diabólica (art. 5º, LV, CF c/c art. 333, parágrafo único, CPC adequadamente interpretado) que ignora os fatores de publicidade e notoriedade das demandas quando em curso em comarcas ou seções judiciárias onde estão o bem ou o domicílio do alienante”.

Além disso, a apresentação das referidas certidões, além de ser cautela de praxe desde há tempos imemoriais, está expressamente prevista o art. 1º, §§ 2º e 3º, da lei 7.433/85 e é obrigatória em vários Estados da Federação no ato da lavratura de escrituras públicas relativas a imóveis, devendo ficar arquivadas junto ao respectivo Cartório, no original ou em cópias autenticadas.

Para Araken de Assis (Manual da Execução. 16ª ed. São Paulo: RT, 2013, nota 48.3, p. 318): "É uma questão de fato, portanto, e cujo ônus toca ao exequente, presumindo-se a boa-fé do adquirente. Não basta a circunstância objetiva de que a alienação ocorreu no curso do processo. Tudo dependerá das circunstâncias do caso concreto. Por exemplo, a aquisição de imóvel situado na mesma comarca em que tramita a execução, dispensando o comprador na escritura, contra os usos do comércio jurídico, as certidões negativas, principalmente a do distribuidor, constitui indício seguro de má-fé. O adquirente que não observa as cautelas usuais para não prejudicar terceiros há de arcar com as consequências da sua omissão. É bem de ver que essa orientação excessivamente protetora do adquirente, exigindo a má-fé, decorrente da efetiva ciência da pendência da demanda, leva a soluções iníquas. Do terceiro de boa-fé espera-se que tome as providências usuais das pessoas honestas e cautelosas, ou seja, providencie as certidões. Esta é a diligência adequada na espécie".

Por outro lado, o projeto da Câmara, no § 2º do art. 808, leva em consideração apenas os bens que não estão sujeitos a registro, estabelecendo que: “No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor”.

A grande incongruência do referido § 2º do art. 808 está em não fazer qualquer previsão, no caso de bens sujeitos a registro, sobre a necessidade de o terceiro adquirente agir com o mínimo de diligência, verificando a existência de processos envolvendo o vendedor, no seu domicílio e no local do bem. Para que haja a boa-fé do terceiro adquirente, mesmo na ausência de registro, deve ele demonstrar que agiu com o mínimo de cautela. Nesse ponto, merece ser acolhida a Emenda n.º 89, que faz prevalecer a redação do Projeto do Senado referindo-se simplesmente à inexistência de registro e não ao bem estar ou não sujeito a ele.

O § 4º do art. 808 torna obrigatória, antes do reconhecimento da fraude, a intimação do terceiro adquirente para, se quiser, opor embargos de terceiro, no prazo de quinze dias.

De acordo com enunciado aprovado no III Encontro do Fórum Permanente de Processualistas Civis, realizado em abril de 2014, no Rio de Janeiro: “191. (art. 808, § 4°; art. 690 caput, parágrafo único) O prazo de quinze dias para opor embargos de terceiro, disposto no § 4º do art. 808, é aplicável exclusivamente aos casos de declaração de fraude à execução; os demais casos de embargos de terceiro são regidos pelo prazo do caput do art. 690. Grupo: Execução” (RePro 233, julho-2014). Salientamos que, enquanto não for reconhecida a fraude corre-se o risco do bem ser penhorado, inclusive por credores do terceiro. Assim, entendemos que a obrigatoriedade da intimação do terceiro adquirente deveria ser imposta após o reconhecimento da fraude.

Por fim, registramos que o projeto da Câmara, no art. 137, prevê que a alienação ou oneração de bens após o acolhimento do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, havida em fraude de execução, será considerada ineficaz.

Diferentemente do § 3º do art. 808, deixa expressa a possibilidade de ser reconhecida fraude a partir da citação da própria sociedade cuja personalidade se pretende desconsiderar.

Ressaltamos que, aprovado o novo CPC, a redação do art. 137 abre uma brecha, porque o sócio vislumbrando o risco do redirecionamento poderá dilapidar seu patrimônio, antes da decisão judicial acolhendo a desconsideração.

Assim, entendemos que a redação do art. 137 deve ser harmonizada com a do § 3º do art. 808 e, a fraude de execução deve ser considerada a partir da instauração obrigatória do incidente de desconsideração e da citação da pessoa – do sócio ou administrador, na desconsideração convencional; ou da sociedade, no caso da desconsideração inversa – para participar do incidente.

______________

* Rita Dias Nolasco é doutora em Direito pela PUC/SP. Professora do COGEAE/PUC-SP na Especialização de Direito Processual Civil. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Secretária-Geral Adjunta do IBDP no Estado de SP. Membro do CEAPRO - Centro de Estudos Avançados de Processo. Procuradora da Fazenda Nacional - atualmente em exercício na Divisão de Grandes Devedores. Diretora Substituta Simultânea do Centro de Altos Estudos da PRFN da 3ª Região.

** Rodolfo da Costa Manso Real Amadeo é doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da USP; Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual; do Centro de Estudos Avançados de Processo; do Comitê Brasileiro de Arbitragem, da Associação dos Advogados de São Paulo e do Instituto dos Advogados de São Paulo. Advogado em SP e em Brasília.

*** Gilberto Gomes Bruschi é doutor e mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Professor na graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Coordenador dos cursos pós-graduação lato sensu em Direito Processual Civil e em Direito Processual Civil com ênfase em Processo Empresarial da Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual e do Centro de Estudos Avançados de Processo. Advogado em SP.

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