Com a recente entrada em vigor da lei 12.965, de 23 de abril de 2014, mais conhecida como o “Marco Civil da Internet”, um dos pontos que deverão ser objeto de regulamentação será a chamada “neutralidade de rede”, princípio que obriga as operadoras de telecom que ofertam serviços de conexão à Internet a conferir tratamento isonômico aos pacotes de dados que trafegam em suas redes, independentemente do conteúdo, aplicação, serviço, dispositivo, origem e destino, de modo a manter a Internet como uma plataforma livre e aberta.1
De acordo com a nova Lei, a discriminação ou degradação de tráfego somente será permitida em hipóteses muito específicas, quando decorrer de (i) requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e (ii) priorização de serviços de emergência. São exatamente essas exceções que serão objeto da regulamentação, que contará com a participação do Comitê Gestor da Internet (CGI) e da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).2
Conforme se pode observar nos debates atualmente travados nos Estados Unidos e Europa sobre o tema, há dúvidas em relação a qual o modelo regulatório mais adequado para preservar a Internet como uma plataforma aberta, sem interferências de governos e empresas, evitando-se, ao mesmo tempo, regulações rígidas e excessivamente intervencionistas, que iriam de encontro ao ambiente desregulado que marcou o desenvolvimento da Internet ao longo do tempo.
Para a melhor compreensão do que está em jogo no debate regulatório, é imperioso destacar, primeiramente, que o sucesso da Internet decorre de sua arquitetura original baseada no modelo de desenho fim-a-fim (end-to-end ou E2E), o qual pressupõe que a inteligência das redes está localizada em suas extremidades (edges), isto é, nos computadores dos usuários finais, e não em seu centro (core). É exatamente essa arquitetura que possibilita o desenvolvimento de novas aplicações a custos baixíssimos e seu acesso por todos os usuários conectados à Internet, sem qualquer interferência dos diversos hosts e roteadores localizados no centro da rede. Estes, por sua vez, se limitam a transportar os pacotes de dados entre as diversas pontas. Vale dizer que o fluxo das informações que trafegam na rede ocorre sob o regime denominado “melhores esforços” (best-effort), ou seja, sem garantias de que serão entregues, ou mesmo que serão entregues sem atraso, não havendo, portanto, a possibilidade de priorização do tráfego.3
Foram essas características que tornaram a Internet uma plataforma aberta à inovação e à liberdade de expressão, servindo como ambiente descentralizado para interações sociais, culturais e políticas, possibilitando o surgimento de aplicações inovadoras como Google, Facebook, Twitter, eBay, Youtube, Skype, dentre várias outras, amplamente acessadas e valorizadas pelos usuários. Afinal, os custos para inovar em aplicações são baixíssimos, bastando um computador conectado à Internet e a criatividade de seu usuário, o que explica o fato de que boa parte dessas aplicações foi desenvolvida em garagens ou dormitórios de universidades. Essa ausência de barreiras à entrada em mercados de aplicações de Internet acaba, inclusive, atraindo investidores dispostos a financiar o desenvolvimento novas aplicações, pois sabem que fatores externos não impedirão sua disseminação entre os possíveis usuários.
O debate em torno da neutralidade de rede só teve lugar a partir do momento em que novas tecnologias passaram a possibilitar que os provedores de conexão visualizassem as aplicações que trafegam em suas redes, sendo, portanto, capazes de controlar o que os usuários acessam, desviando, assim, do modelo de desenho fim-a-fim que caracterizava a arquitetura original da Internet.4
Esse controle pode servir a propósitos legítimos de gerenciamento de tráfego visando uma alocação mais eficiente dos recursos da rede, cada vez mais escassa considerando não apenas o aumento crescente dos usuários de Internet, mas também o surgimento de aplicações que consomem grande volume de banda larga, tais como vídeo sob demanda (VoD), voz sob protocolo (VoIP), jogos eletrônicos, compartilhamentos de arquivos peer-to-peer, dentre outras.
No entanto, esse controle também pode ser utilizado pelos provedores de conexão para bloquear pacotes de dados, filtrar o tráfego e priorizar determinadas aplicações em detrimento de outras, seja porque possuem acordos comerciais com os provedores dessas aplicações, seja porque tais aplicações são ofertadas pelo próprio provedor de acesso ou suas afiliadas. Os provedores de conexão também poderiam ter incentivos econômicos para degradar aplicações de VoIP ou de vídeo por concorrerem com seus serviços tradicionais de telefonia fixa e móvel e/ou de TV a cabo, conforme o caso. Esse tipo de controle de tráfego não apenas é prejudicial à livre concorrência, como pode colocar em risco à inovação ao impor custos adicionais ao desenvolvimento de novas aplicações, especialmente se provedores de conexão passassem a cobrar dos provedores de aplicações por acesso priorizado em suas redes, o que poderia levar à criação indesejada de uma via rápida e outra lenta na oferta da banda larga.5
Em suma, os provedores de conexão partiram de um modelo de melhores esforços (best efforts) para um modelo de acesso em camadas, normalmente denominado “qualidade de serviço” (Quality of Service ou QoS), em que determinadas aplicações são priorizadas em detrimento de outras, seja para finalidades legítimas de gerenciamento de rede, ou mesmo para finalidades discriminatórias ilegítimas ou anticoncorrenciais.
Diante desse quadro, a neutralidade de rede nada mais é do que a reafirmação da arquitetura original da Internet, com vistas à preservação da inovação, da liberdade de escolha dos usuários e da livre concorrência. Por outro lado, é certo que, tecnicamente, a neutralidade de rede não pode ser tratada como uma regra absoluta a proibir toda e qualquer prática discriminatória de tráfego, o que impediria uma alocação eficiente dos recursos da rede, com claros prejuízos aos usuários.
O tratamento isonômico a que se refere o texto do Marco Civil deve pressupor que os pacotes de dados possuem diferentes características que devem ser levadas em consideração na regulamentação das exceções à neutralidade de rede. Nesse contexto, a exceção referente à discriminação de tráfego voltada à priorização de serviços de emergência, como as atividades de telemedicina, está em linha com o tratamento prioritário normalmente conferido à saúde e, portanto, não requer maiores considerações. O que pode gerar dúvidas e debates é a outra hipótese legal de exceção à neutralidade, concernente à discriminação decorrente de “requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações”, uma vez que não há definição clara dessa hipótese no texto do Marco Civil.
De qualquer modo, é inegável que esses “requisitos técnicos” devem servir para justificar as técnicas de gerenciamento de tráfego consubstanciadas na oferta de “qualidade de serviço” (QoS), ou de “serviços especializados”, aos usuários que necessitem de certa priorização de tráfego para o acesso de determinadas aplicações sensíveis a atrasos (delay ou latência) e/ou a distorções de sinal (jitter), tais como vídeo sob demanda (VoD), VoIP, jogos eletrônicos, dentre outros.6 Isso não significa que essas técnicas estejam imunes à regra geral de neutralidade. Ao gerir o tráfego na rede, especialmente nos momentos de pico de congestionamento, os provedores de conexão não devem ser autorizados a discriminar entre aplicações ou classes de aplicações similares ou concorrentes. Por outro lado, poderia ser admitida a discriminação entre aplicações e classes de aplicações que não sejam similares, como a priorização do tráfego para dados de vídeo e VoIP em detrimento de dados de e-mail, já que estes, ao contrário daqueles, não são sensíveis a atrasos.7
Desde que essas técnicas de gestão de tráfego não prejudiquem a qualidade mínima dos serviços de banda larga e sejam previamente informadas aos usuários, conforme exige o texto do Marco Civil, não há motivos para proibi-las na regulamentação das exceções à neutralidade de rede.8
Seja como for, é recomendável evitar um modelo regulatório que busque uma definição prévia das práticas discriminatórias que devam ser permitidas e proibidas. É certo que regulações rígidas de tecnologia tendem a ser pouco efetivas, pois correm o risco de tornarem-se rapidamente obsoletas diante do dinamismo dos avanços tecnológicos. Nesse contexto, o ideal seria buscar uma regulação flexível, deixando em aberto situações específicas que sempre poderão ser analisadas ex-post, seja pela Anatel, quando se tratar de práticas de gerenciamento de tráfego, pelos órgãos de defesa do consumidor, quando se tratar de práticas que prejudiquem os consumidores finais, ou mesmo pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, quando eventuais condutas discriminatórias produzirem efeitos negativos sobre a concorrência.
Se por um lado é importante preservar as características que tornaram a Internet uma plataforma aberta à inovação, por outro, não se deve recorrer a uma regulação rígida, insensível aos modelos de negócios que atendam necessidades específicas dos usuários.9 A compreensão dessas premissas é indispensável para que a regulamentação da neutralidade de rede efetivamente promova o bem-estar social e não se torne um entrave ao desenvolvimento técnico, à inclusão digital e às possibilidades de escolha dos usuários de Internet.
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1 Nos termos do art. 9º da Lei n.º 12.965/14: “O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”.
2 Cf. art. 9º, §1º: “A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de:
I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e
II - priorização de serviços de emergência”
3 Sobre a arquitetura original da Internet e sua relação com a inovação na Internet, cf. VAN SCHEWICK, Barbara. Internet Architecture and Innovation, Cambridge, MA: MIT Press, 2010.
4 Vale lembrar que no debate em torno da neutralidade de rede, não se discute o direito dos provedores de conexão de estabelecer modelos de negócios baseados na cobrança por acesso a Internet de acordo com o volume ou velocidade de tráfego de dados.
5 A cobrança por acesso priorizado (pay-to-play) pode impor custos adicionais à inovação em aplicações de Internet e, na medida em que apenas os provedores de aplicações já estabelecidos no mercado teriam condições de suportar tais custos, haveria o risco de criação de uma via rápida, onde esses provedores teriam acesso priorizado, e outra lenta, relegada aos demais provedores que não teriam condições de pagar pelo acesso priorizado, restringindo sua capacidade de competir efetivamente em mercados de aplicações de Internet. O receio é que esse tipo de estratégia transforme a Internet em uma espécie de TV a cabo, onde os provedores de conexão escolheriam as aplicações que usuários poderiam acessar.
6 O Parlamento Europeu, em sua proposta para a regulação da neutralidade de rede na reforma do setor de telecomunicações, propôs a seguinte definição para “serviços especializados”: “qualquer serviço de comunicação eletrônica otimizado para um conteúdo específico, aplicações ou serviços, ou uma combinação destes” que ofereçam funcionalidades que exigem melhor qualidade fim-a-sim e que não seja comercializado ou utilizado como um substituto ao serviço de acesso à internet”. Isso significa que os “serviços especializados” somente poderão ser oferecidos se a capacidade da rede for suficiente para suportá-los em adição ao acesso da internet, e não em seu detrimento.
7 Uma mensagem de e-mail pode demorar alguns minutos para chegar ao destinatário final, sem maiores prejuízos, ao contrário do tráfego de dados de vídeo, cujo atraso ou latência afetaria diretamente a experiência do usuário. Cf. WU, Tim, “Network Neutrality, Broadband Discrimination”, in: Journal of Telecommunications and High Technology Law, Vol. 2, 2003, p. 149, disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=388863 ou https://dx.doi.org/10.2139/ssrn.388863.
8 Essas ponderações estão expressamente previstas no art. 9º, §2º, da Lei n.º 12.965/14, que assim dispõe: “Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no § 1º, o responsável mencionado no caput deve:
I - abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil;
II - agir com proporcionalidade, transparência e isonomia;
III - informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e
IV - oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.” (grifos nossos).
9 Exemplo de modelos de negócios que atendem necessidades específicas dos usuários é a oferta de acesso gratuito a redes sociais, como Facebook e Twitter, especialmente para dispositivos móveis, o que beneficia milhares de pessoas que não possuem condições financeiras para pagar por pacotes de dados suficientes a lhes permitir o acesso a essas aplicações. Desde que a gratuidade esteja aberta a todas as redes sociais, sem arranjos de exclusividade, com determinados provedores, não haveria motivos para proibir esse tipo de prática. Eventuais abusos poderiam ser coibidos ex post pelo CADE ou órgãos de proteção aos consumidores.
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* Paulo Eduardo Lilla é advogado do escritório Lefosse Advogados, Doutor e Mestre em Direito Internacional pela USP e Professor da FGV/EAESP.