Migalhas de Peso

A imaginação e o Direito Penal

A imaginação das pessoas possui grande relevância para o direito penal, desde que externadas e configuradoras de situações que impliquem violação a um bem jurídico.

27/7/2014

No ano de 2012, um policial militar do BOPE (Batalhão de Operações Especiais do Rio de Janeiro) foi absolvido sumariamente, no procedimento especial do Tribunal do Júri, em razão de ter matado uma pessoa em legítima defesa putativa, ou seja, imaginária.

In casu, no transcorrer da operação em um morro, na cidade do Rio de Janeiro, um policial da tropa de elite da polícia militar se deparou com a vítima, que estava empunhando uma furadeira – a fim de utilizá-la em sua residência. Ato contínuo, o policial, acreditando ser a furadeira uma submetralhadora (pelas condições visuais desfavoráveis no momento da operação), atirou no cidadão que a empunhava, que não resistiu aos ferimentos e veio a falecer.

Sendo assim, o policial foi denunciado pelo crime de homicídio (insta observar que, em casos de crime de homicídio praticados por policiais militares contra “pessoas comuns”, a justiça comum será a competente, jamais a militar).

Pelo conjunto probatório colhido nos autos, o suposto autor do crime foi absolvido sumariamente, com base no artigo 415, IV, do Código de Processo Penal1: O juiz, fundamentadamente, absolverá desde logo o acusado, quando: IV - demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime.

Prima facie, tem-se que o artigo 20, §1º, do Código Penal, estabelece que: O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei. § 1º - É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.

Desta forma, torna-se imperiosa a análise plenamente subjetiva do acusado. Ainda que tarefa de imensa dificuldade e deveras trabalhosa, deve o aplicador do direito buscar atingir o centro volitivo do agente, no sentido de aferir sua real intenção e assim determinar se houve um erro plenamente justificável (escusável) em sua conduta.

Isso porque, no referido artigo 20, §1º, CP, verifica-se a previsão das conhecidas descriminantes putativas, que nada mais são do que um erro do agente, que supõe uma situação que se de fato existisse, tornaria sua ação lícita, protegida por nosso ordenamento.

Evidente, portanto, a árdua tarefa do magistrado, que precisa extrair dos elementos colhidos nos autos a clara evidência de que o agente só poderia agir da maneira como agiu. É preciso decifrar a imaginação do acusado, a ponto de concluir que, de fato, qualquer pessoa na posição do suposto autor, agiria da mesma forma.

O certo é que o cérebro tem suas regras e cria suas imagens de acordo com a realidade que lhe é apresentada e as constrói segundo a catalogação pré-existente do objeto, levando-se em consideração uma série de fatores externos. A visão que se cria pode ser falsa no tocante à identificação do objeto, porém, pelo estímulo do momento e pelas circunstâncias, faz ver a existência de algo verdadeiro e que reclama uma ação imediata.

De outro lado, caso conclua que o erro não foi justificável (o que significa que o homo medius, naquela específica situação, atuaria de forma diversa – erro inescusável), poderá condenar o agente por crime culposo, evidentemente desde que haja expressa previsão legal para tanto (no caso pesquisado, poder-se-ia condenar por homicídio culposo, mas jamais doloso, tendo em vista que o artigo 20, §1º, CP, expressamente exclui o dolo).

Além do mais, não se pode perder de vista que essa análise é feita antes do acusado se ver submetido a julgamento pelo tribunal do júri. Como sabido, o procedimento do júri é escalonado e se inicia com a fase do juízo de formação de culpa (judicium accusationis), a qual perdura até o momento em que o magistrado analisa todo o conjunto probatório formado, oportunidade em que decidirá se há elementos suficientes que autorizem o julgamento do réu pelo júri (pronúncia); se ausentes os indícios suficientes de autoria ou de materialidade delitiva, fator impeditivo para julgamento pelo júri (impronúncia); se o crime praticado, em verdade, não é de competência do tribunal do júri – ao invés do homicídio, comprova-se tratar de lesão corporal seguida de morte –desclassificação) ou, por fim, verifica as hipóteses do artigo 415, CPP (absolvição sumária).

No caso sub studio, é possível inferir que suposto autor agia em uma tensa operação policial, em morro perigoso do Rio de Janeiro, sob condições de dificuldade extrema de atuação (visão, locomoção etc) e se deparou com uma pessoa empunhando uma furadeira, cujo formato é bastante parecido com o de uma submetralhadora, arma extremamente ágil e eficaz.

Portanto, vislumbra-se acertada a decisão do magistrado em primeiro grau, tendo em vista que o agente errou – sua imaginação o fez acreditar na existência de uma ameaça real e extremamente perigosa à sua vida e a de seus colegas. Logo, por circunstâncias plenamente justificáveis, acreditou agir em legítima defesa e, por força de expresso mandamento penal, a absolvição em virtude da descriminante putativa (legítima defesa putativa) é medida de rigor.

Não se pode afirmar, por outro lado, que a família da vítima estará totalmente desamparada pelo Direito. Muito pelo contrário. É sabido que a responsabilidade civil do Estado é objetiva. Ou seja, todas as vezes em que o Estado causar dano a alguém, por meio de seus agentes, ficará obrigado a repará-lo, sem a perquirição de culpa (artigo 37, §6º, CF: as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.)

Ora, atuando a polícia militar como longa manus do Estado para garantir a segurança, configura-se como hipótese indenizatória pelo Estado, no caso de eventual dano causado.

Ante todo o exposto, denota-se que a imaginação das pessoas possui grande relevância para o direito penal, desde que externadas e configuradoras de situações que impliquem violação a um bem jurídico. Deste modo, cabe ao intérprete uma verdadeira ginástica interpretativa, a fim de alcançar a real intenção imaginária do agente, para que se possa atingir o fim previsto na lei penal.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de Justiça aposentado, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.











* Antonelli Antonio Moreira Secanho, advogado, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação lato sensu em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.

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