As possibilidades da tecnologia digital nos processos de criação de música eletrônica muitas vezes esbarram em questões de direitos autorais.
A nossa legislação de direito autoral (lei 9.610/98) ainda tem um perfil “analógico”, pois muitos dos recursos das tecnologias digitais utilizados nos processos criativos não são por ela reconhecidos, especialmente com relação ao uso de músicas de outras pessoas, tão comum nos dias de hoje.
Além do trabalho de pesquisa musical, os DJs se valem da técnica da mixagem em suas apresentações. Mixar significa misturar, mesclar a música que está tocando com a música que será tocada a seguir da forma mais suave e imperceptível possível, como se fossem uma única música. O processo de mixagem envolve a sincronização do tempo (BPM) e, em alguns casos, a adequação da harmonia da música anterior à da música seguinte.
Com as possibilidades da discotecagem digital, além da mixagem, é possível utilizar efeitos, bem como recortar, modificar e introduzir trechos de outras músicas, samples e instrumentos virtuais nas músicas que estão sendo tocadas ao vivo. Todos esses recursos alteram a música que está sendo tocada com relação à forma como foi gravada.
O remix é uma nova roupagem que se dá à música, por meio da modificação de aspectos do seu arranjo, como, por exemplo, a retirada de alguns instrumentos, a introdução de outros e a repetição ou remoção de determinado trecho. Já o mashup é a criação de uma nova música formada pela junção de outras.
Uma regra fundamental do direito autoral é a de que a utilização de qualquer obra, seja na sua forma original ou com modificações, depende de expressa autorização do autor. No caso da fixação da música em suporte (gravação) ou no processo de sincronização em outra obra (como no audiovisual ou em games, por exemplo), essa regra é conhecida como direito de reprodução.
Por se tratar de uma apresentação ao vivo (que não envolve a fixação, gravação ou sincronização das músicas que estão sendo tocadas), a utilização dos recursos à disposição do DJ durante sua execução, bem como a realização de remixes e mashups ao vivo, não depende de autorização dos titulares de direitos autorais das músicas executadas. Trata-se, aqui, da mesma liberdade que tem um cantor ou banda de fazer a versão que quiser de uma música de outra pessoa durante uma apresentação ao vivo. Portanto, não há necessidade de autorização para o DJ executar suas músicas ao vivo, ainda que tais músicas sejam alteradas durante a sua execução com a utilização dos recursos técnicos de que ele hoje dispõe.
No que se refere à gravação de remixes e mashups por produtores de música eletrônica, independentemente do fato de eles virem ou não a ser comercializados, a situação é diferente daquela dos DJs que os executam ao vivo. Isso porque a gravação envolve a reprodução da música em um determinado suporte, seja ele físico ou digital. Portanto, a autorização dos detentores dos direitos autorais sobre as músicas que serviram de base para os remixes e mashups é de fundamental importância para evitar problemas. Caso os remixes e mashups venham a ser gravados sem autorização, seus criadores poderão sofrer ações judiciais por parte dos detentores dos direitos autorais sobre as músicas neles utilizadas.
Uma questão importante diz respeito à utilização de trechos de outras músicas na produção de música eletrônica. Nessa situação, aplica-se a regra geral, já mencionada, de que a autorização é necessária para qualquer utilização de obras de terceiros.
Entretanto, a Lei 9.610/98 estabelece algumas limitações aos direitos autorais, que são as hipóteses em que o uso de uma obra é livre, sem necessidade de autorização dos seus titulares. Uma dessas hipóteses é a “reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza”, desde que “a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores” (art. 46, inciso VIII).
Isso significa que a lei permite a reprodução de pequenos trechos de músicas na elaboração de uma música nova. A questão é saber o que se entende por “pequeno trecho”, uma vez que a lei não traz essa explicação, cabendo interpretá-la com base no bom senso. Obviamente, a reprodução de cinquenta por cento de uma obra não caracterizaria um “pequeno trecho”. Apesar de a quantificação não ser a melhor forma de interpretar a extensão desse conceito, uma reprodução de, por exemplo, cinco por cento da obra poderia ser caracterizada como “pequeno trecho”, se não vier a causar prejuízo aos detentores dos direitos autorais sobre as músicas reproduzidas.
Dessa forma, é importante saber o tamanho da obra reproduzida para que se possa verificar se a reprodução pode ou não ser caracterizada como “pequeno trecho”, de forma a ser utilizada sem necessidade de autorização. Se a música tem três minutos, é bastante plausível o entendimento de que a utilização de alguns segundos dessa música caracterizaria um “pequeno trecho” nos termos da lei.
Paralelamente ao direito de reprodução, há o direito de execução pública, que garante aos titulares dos direitos autorais o recebimento pela música executada em locais de frequência coletiva, desde que filiados a uma associação de gestão coletiva musical. Segundo a Lei 9.610/98, os pagamentos são devidos pelos estabelecimentos em que a música é executada e são recolhidos pelo ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), para repasse aos titulares de direitos autorais por intermédio das associações às quais estão filiados.
No caso da música eletrônica, é importante verificar a autoria das músicas tocadas em clubes e casas noturnas para saber se há ou não necessidade de pagamento ao ECAD. Se as músicas são de autoria do próprio DJ (que as gravou previamente para sua apresentação ou fez sua performance improvisando e criando as músicas ao vivo, por meio do processo conhecido como live PA), não há que se falar em recolhimento de direitos autorais dos clubes e casas noturnas pelo ECAD.
Por outro lado, é devido o recolhimento por parte do ECAD, se o DJ executa músicas que não são de sua autoria e desde que tais músicas tenham sido previamente gravadas e lançadas no mercado sob um ISRC (International Standard Recording Code ou Código Internacional de Normatização de Gravações), que é um código-padrão internacional de gravação e funciona como um identificador básico das gravações fonográficas, obtido por meio de solicitação à associação à qual o titular dos direitos autorais é filiado.
Devido às variáveis nos processos de criação e execução de música eletrônica, a questão do recolhimento pela execução pública por parte do ECAD ainda é bastante discutível, sendo necessário um aprofundamento do debate em torno do assunto para que não haja dúvidas sobre os possíveis caminhos relativos à execução pública de música eletrônica.
É também importante que todos estejam atentos à dinâmica dos processos criativos de música eletrônica, para que não haja violação de direitos autorais de outras pessoas na criação de uma música nova.
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* Guilherme Carboni é mestre e doutor em Direito pela USP. Pós-doutor em Comunicação pela ECA-USP e advogado de Direitos Autorais no escritório Cesnik, Quintino e Salinas Advogados.