Migalhas de Peso

O projeto de Código Comercial e os mafiosos americanos

Os brasileiros, que já são suficientemente pobres, jogarão na fogueira bilhões de reais que poderiam ser utilizados de forma muito mais proveitosa para o atendimento das verdadeiras necessidades do país.

9/6/2014

Em famosos filmes americanos antigos, que tiveram como tema a máfia americana da primeira metade do século passado, eram muito comuns cenas nas quais chefes mafiosos demonstrando a sua proverbial empáfia, acendiam os seus charutos com a ajuda de notas de cem dólares que viam queimar impávidos. Cédula queimada, dinheiro perdido.

É precisamente isto que os brasileiros farão a partir do momento em que for promulgado e entrar em vigor o atual projeto de Código Comercial (toc, toc, toc), que tem origem em um grupo fechado de pessoas a partir do seu autor original. Esse malfadado projeto anda assombrando as salas e corredores do Congresso Nacional, além de nós outros, um significativo rol de juristas lúcidos, que contra ele têm se manifestado neste prestigioso “Migalhas” e em diversos outros órgãos da imprensa. Os brasileiros, que já são suficientemente pobres, jogarão na fogueira bilhões de reais que poderiam ser utilizados de forma muito mais proveitosa para o atendimento das verdadeiras necessidades do país.

Ainda que muitas manifestações tenham sido feitas contra o tal projeto, parece que elas não têm surtido qualquer efeito, já tendo sido gasto muito tempo e dinheiro na constituição de comissões para debatê-lo em inúmeras entidades (e outras comissões continuam sendo formadas). Muitos recursos têm sido gastos em viagens e reuniões. Muito tempo dos operadores do direito poderiam ter sido dirigidos para a discussão de outros temas jurídicos relevantes – e mesmo alguns dos que constam do projeto – mas sem o viés determinado pelo seu criador.

O referido grupo de autores que desde cedo foram contrários ao projeto ainda não tinham em suas mãos um elemento tão importante como o estudo feito pela Professora Luciana Yeung do INSPER, recentemente dado à luz e que já tem merecido a apreciação de alguns setores (Vide Migalhas de 29.5.14). Desde que esse trabalho foi apresentado ele vem reforçar do ponto de vista financeiro as razões pelas quais o projeto em tela deve ser inteiramente rejeitado. Quem desejar que critique a metodologia e os números divulgados mas ainda que apenas em parte o quadro seja verdadeiro, ele continua tão assustador quando “O Grito”.

Não é necessário reproduzir os dados ali encontrados, que se desdobram em inúmeras situações dentro das quais haverá custos financeiros extremamente elevados se o projeto de Código Comercial vier a entrar em vigor nos termos da estrutura jurídica de sua concepção. Em todo o caso, vamos a alguns destaques.

1) Período de adaptação e custos correspondentes

Sabe-se que toda sociedade necessita de um período de adaptação aos efeitos de uma nova lei. O tempo necessário para tanto é incerto e a autora declara que a noção de que ele seria correspondente a dez anos não tem base real e científica. A base comparativa feita por ela em relação à lei de recuperação de empresas e de falências deve ser tomada apenas como uma referência meramente aproximativa. Isto porque (o que é reconhecido expressamente) não somente o projeto apresenta uma quantidade muito maior de dispositivos, como também porque ele se espalha por uma gama muito mais significativa de institutos que receberão modificações de menor ou de maior extensão e profundidade, conforme o caso.

Acresce um problema relevante. Enquanto em países como a Alemanha o início da vigência de uma lei pode chegar a três anos, no Brasil costuma-se estabelecê-lo em apenas 120 dias (art. 201 da Lei de Recuperação de Empresas e Falências). Esse prazo é muito curto para que a comunidade jurídica possa se assenhorear dos novos problemas jurídicos que surgirão e começar a pensar nas soluções a serem adotadas. A doutrina entrará muitas vezes em choque e a jurisprudência evoluirá erroneamente tal como faz a mariposa em volta da lâmpada, até cair morta no chão.

2) Efeitos quanto à sociedade estrangeira

As novas exigências feitas pelo projeto em relação ao funcionamento de sociedades estrangeiras no Brasil apresentaram um impacto estimado entre 5 e 6 bilhões de dólares! Haja cédulas para queimar: seriam aproximadamente 50 a 60 milhões de cédulas de cem dólares na fogueira. Uma coisinha de nada, como se verifica. Do jeito que está o recado dado aos capitalistas alienígenas é “go home” ou “do not come”. E, claro, o Brasil não precisa nem do capital financeiro e nem do capital intelectual que venha de fora. Somos autônomos.

3) O aumento da insegurança jurídica

Em seu precioso estudo a autora foca questões relacionadas à função social da empresa e do contrato, destacando o verdadeiro circo de horror que pode tomar de assalto os tribunais brasileiros a partir da permissão dada ao Ministério Público para pleitear a anulação de negócio jurídico já concluído com base no descumprimento da função social do contrato.

Isto não pode ser considerado meramente aumento da insegurança jurídica, mas sim a perda total da mesma segurança, que deveria cercar de forma intrínseca o exercício da atividade econômica, pretensamente objeto de tratamento pelo triste projeto.

Aliás, este autor tem questionado frequentemente o estabelecimento do parâmetro da função social para o fim do balizamento da validade e da regularidade da atividade econômica, tal como já escreveu em diversos textos. Aqueles em que mais se aprofundou relativamente neste tema são: “O Código Civil e a Crise do Contrato” e o vol. 4 de sua coleção de Direito Comercial, quando tratou dos fundamentos da teoria geral do contrato.

A força com que o legislador procura incluir a função social no âmbito da atividade empresarial tem se mostrado uma moda deletéria, com um efeito profundamente negativo, sob o falso pretexto do estabelecimento da igualdade e da justiça. Trata-se de uma visão paupérrima e ideológica da atividade empresarial, demonstradora de que seus defensores vivem em um século (ou milênio) de trevas e que jamais aprenderam a riqueza do capitalismo não selvagem e que jamais leram (ou se leram não entenderam) obras essenciais como é o caso da “Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo” de Max Weber. A ignorância voluntária deveria ser punida com a pena de morte ou, no mínimo, o desterro. Há endereços muito adequado para o cumprimento de pena dessa natureza, não somente a Coreia do Norte.

O trabalho sob exame também aborda o aumento da insegurança jurídica em relação à concorrência desleal, campo em que impavidamente invade a seara de micro sistemas apropriadamente voltados para tal quadro jurídico e econômico.

O abuso do sócio da sociedade empresária; o descumprimento do dever de boa-fé; a proteção do contratante economicamente mais fraco nas relações contratuais assimétricas; a regulação da forma da produção de provas no processo; e outros pontos do projeto também são objeto da pesquisa da Dra. Luciana Yeung que apontam para outros efeitos patrimoniais negativos de elevada significação nos termos das propostas do projeto de Código Comercial.

Depois de ler todo o texto de que se trata, o sentimento que resulta é o de completo desalento quando se pensa que todos os males nele apresentados e outros que por ventura não tenham sido percebidos poderão se tornar uma amarga realidade para o empresário nacional e para a sociedade brasileira como um todo, que pagarão tal conta.

Como operadores do direito, certamente os escritórios de advocacia serão altamente beneficiados se esse projeto vier à luz. A pesquisa em apreço mostra que um dos elementos componentes desse custo negativo será, precisamente, a necessidade que os empresários terão de recorrer a assistência jurídica de qualidade e pagar por ela. Mas nós não podemos agir como o médico que torce pelo aparecimento de uma nova e grave epidemia para poder encher os seus bolsos. Isto seria verdadeiramente vergonhoso.

Diante de todo o exposto, digam o pai do projeto, o Ministro da Justiça, os parlamentares que o encamparam e outros participantes desse jogo se pretendem passar à história como os responsáveis pelos efeitos deletérios que ele trará, maiores pelo visto do que qualquer dos desastrados planos econômicos que governantes irresponsáveis jogaram em nossas costas no passado.

Ainda que tais efeitos não sejam imediatos como a explosão de um vulcão, que lança de imediato milhões de toneladas de pedras e lava para o alto, atingindo em seguida as comunidades ao seu redor, mesmo assim não será nada diverso o resultado homeopático de se jogar dinheiro fora na obediência às normas estabelecidas pela pretensa modernização de nossa legislação mercantil.

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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor de Direito Comercial da USP e consultor da banca Mattos Muriel Kestener Advogados.

 

 

 

 

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