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"Videocassetada": justa causa para ação de indenização?

Tanto a liberdade de imprensa, quanto a proteção aos direitos da personalidade, configuram direitos constitucionais e, mais que isso, são direitos fundamentais do cidadão.

1/6/2014

Recentemente, o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás condenou a emissora Rede Globo de Televisão a indenizar uma pessoa que aparecia em vídeo, desfilando na passarela e vindo dela cair, no quadro do programa "Domingão do Faustão", conhecido por "Videocassetada". O valor da indenização por danos morais foi fixado em R$ 15 mil reais1.

Deste modo, emerge uma questão interessante e com consequências jurídicas fundamentais e relevantes: até que ponto a liberdade de imprensa e de expressão convive, de maneira harmoniosa, com a proteção aos direitos da personalidade?

Insta consignar que tanto a liberdade de imprensa, quanto a proteção aos direitos da personalidade, configuram direitos constitucionais e, mais que isso, são direitos fundamentais do cidadão. Com efeito, o artigo 5º, em seus incisos IX e X da Constituição Federal, traz as respectivas blindagens a esses direitos. Sendo assim, pode-se afirmar, prima facie, que não há como se destacar uma antinomia entre as regras previstas neste citado artigo 5º, CF. Cabe então ao intérprete a harmonização destas regras fundamentais, para que elas coexistam de maneira equilibrada no ordenamento, até porque não impera nenhuma regra absoluta em nosso sistema.

Quer-se com isso dizer que, neste caso concreto, o magistrado precisa se valer da ponderação de valores, mediante a regra de hermenêutica que se baseia no princípio da razoabilidade e proporcionalidade. Ou seja, o equilíbrio entre a liberdade de imprensa e a proteção aos direitos da personalidade precisa se basear na proporção da manifestação e na razoabilidade da conduta, para que se possa estimar eventual violação ensejadora de dano moral.

De qualquer modo, imperioso destacar que nosso Código Civil, a fim de reforçar o disposto no artigo 5º, inciso X, CF, traz em seu Capítulo II, artigos 11 a 21, os chamados direitos da personalidade, que nada mais são do que uma proteção essencial à pessoa (evidente titular de tais direitos) a fim de garantir-lhe uma existência digna e de protege-la da convivência com terceiros.

Desta feita, destaca-se que os direitos da personalidade possuem características essenciais, a saber: a) indisponibilidade: nem seu próprio titular está autorizado a transferir seu direito da personalidade a outrem; b) imprescritibilidade: não se extingue pelo não-uso, inexistindo, portanto, prazo para seu exercício; c) extrapatrimonialidade: não é possível aferir, objetivamente, o valor de um direito da personalidade, motivo pelo qual não compõe o patrimônio de seu titular; d) impenhorabilidade: impossibilidade de penhora dos direitos da personalidade; e) generalidade: com a simples existência, todas as pessoas adquirem os direitos da personalidade; f) caráter absoluto: são oponíveis contra todos (erga omnes), impondo o dever para toda a sociedade de respeitá-los; g) vitaliciedade: são permanentes e inerentes à pessoa, acompanhando-a até sua morte.

Outrossim, o mesmo estatuto civil, em seu artigo 20, dispõe que salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Por conseguinte, destaca-se o artigo 21, do mesmo diploma legal, que determina que a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

Insta consignar, ainda, que esses artigos fazem com que diversos doutrinadores de grande destaque façam uma diferenciação entre os termos privacidade, vida privada e intimidade, utilizados ora pela CF, ora pelo Código Civil.

Em que pese a diversidade conceitual desses termos, pode-se deduzir que todos compõem uma esfera de proteção do indivíduo. A privacidade parece ser a mais ampla proteção, o limite da esfera protetiva, já que se mostra como uma margem que o indivíduo dispõe para filtrar o que deseja tornar público a todos. Isto é, a pessoa detém um conjunto de informações, imagens, vídeos, atitudes suas que somente a ela cabe decidir se as demais pessoas possam a elas ter acesso. Uma vez acessadas, sem a permissão do titular, tem-se a violação da privacidade.

Já a vida privada compõe a relação do titular com um pequeno grupo de pessoas - normalmente familiar, muito embora nada impeça que sejam amigos próximos também. Já é possível perceber uma maior proteção, vez que se adentra à esfera protetiva da personalidade do titular.

Por fim, tem-se a intimidade, que se configura como o núcleo da esfera de proteção. Pode ser conceituada como o direito de estar só - the right of be alone, proteção consagrada nos EUA para assegurar a peace of mind. Nela, verifica-se um conjunto de informações que apenas seu titular traz consigo.

Não se pode esquecer, todavia, que esses três institutos possuem a proteção de nosso ordenamento jurídico, devendo o intérprete se valer da intensidade da violação (em qual nível da esfera) para determinar a ocorrência de dano.

De qualquer modo, imperioso destacar que os vídeos transmitidos, quase que na totalidade das vezes, não possuem a autorização da pessoa envolvida. Ou seja, a imagem veiculada em rede nacional de um fato que claramente viola o direito da personalidade da pessoa é projetado a toda a sociedade, como um produto de consumo. Trata-se, como se acentua Costa Jr., "de propalação ilegítima, que transfigura o 'eu privado' em 'eu social', sem o consentimento do interessado"2.

Claramente, esta situação enseja indenização por dano moral, vez que configura evidente violação ao direito de imagem do personagem do vídeo.

Não se pode confundir, destarte, a situação em que a pessoa se dirige ao programa para se submeter a piadas ou a situações constrangedoras (ainda nesses casos, há o limite da razoabilidade). Uma vez consentida, a exposição da imagem em nada afeta o interessado, que concorda em participar de um quadro intencionalmente jocoso. Evidentemente, eventuais excessos serão tutelados, já que os direitos da personalidade são indisponíveis. Ou seja, ainda que a pessoa consinta em participar de um programa, ela não abre mão de seu direito da personalidade. Apenas tem-se uma situação acobertada pelo princípio da razoabilidade, que fará incidir as regras protetivas em caso de abuso.

Como bem frisou o relator do caso em apreço, o princípio constitucional da liberdade de imprensa que é intenso, mas não absoluto, deve ser exercitado com consciência e responsabilidade, em respeito a dignidade alheia, para que não resulte em prejuízo a honra.

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1Homem que apareceu em videocassetada do Domingão do Faustão será indenizado.

2Costa Jr., Paulo José. O Direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo: Editora dos Tribunais, 1970, p. 28.

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* Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, com doutorado e pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp - Centro Universitário do Norte Paulista.



* Antonelli Antonio Moreira Secanho é advogado, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação "lato sensu" em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.


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