Presença de pessoa diversa da vítima nos atos administrativos e processuais de competência do juizado especial criminal
Dalton França*
Introdução
O bem jurídico tutelado pelas normas penais incriminadoras do CDC é em regra a relação de consumo, uma relação entre um consumidor e um fornecedor, de sorte que se concebe tal relação na sua dimensão supra-individual, permeada num interesse difuso. O pólo passivo pertence, a um só tempo, ao consumidor individualizado e à coletividade de consumidores. E, visto de regra, o pólo ativo é ocupado pelo fornecedor, também chamado de sujeito ativo qualificado quando se tratar de crime de consumo próprio.
O CDC destinou no Título II especial previsão penal às infrações penais, que estão capitulados entre os artigos 61 a 80.
Segundo Stiglitz: “O Direito Penal do Consumidor insere-se no rol da natural reação social contra a injusta pressão econômica exercida por uma das partes da relação de consumo sobre a outra1.”
O âmago deste artigo não é inflamar uma discussão a respeito da proteção aos direitos difusos previstos no CDC, nem uma avaliação sob a ótica criminal concernente as infrações penais constantes na legislação, muitos menos uma avaliação da lei que criou o juizado especial criminal, mas uma análise crítica, baseada em fatos concretos, quando da presença de pessoa diversa da vítima em diversos atos administrativos e processuais previstos na Lei 9.099/95, crimes de natureza pública incondicionada, infrações penais capituladas no Código de Defesa do Consumidor.
Tal possibilidade é plenamente possível e ocorre de forma sistemática, por exemplo à relação de consumo ser constituída junto a um dos cônjuges, mas o boletim de ocorrência é registrado pelo outro, que posteriormente intimado comparece a fase preliminar no Juizado Especial Criminal.
Natureza das infrações penais previstas no CDC
De forma simplificada, podemos dividir as infrações penais: de natureza privada, pública condicionada a representação e públicas incondicionadas.
Considera-se ainda a aplicação especial da Lei 9.099/95, tendo em vista ainda a ampliação prevista para os crimes de competência da referida Lei, pois a pena máxima foi ampliada para dois anos quando da promulgação da Lei 10.259/2001, que criou os Juizados Especiais Federais Criminais.
As infrações penais previstas no Código de Defesa do Consumidor estão sujeitas ao procedimento especial da Lei dos Juizados Especiais Criminais.
Por conseguinte, a ação penal é movida por denúncia do Ministério Público que não se prende à interferência ou à iniciativa de quem quer que seja, não admitindo, portanto, representação, por ser sua iniciativa exclusiva do Ministério Público.
Do procedimento previsto na Lei 9.099 / 1995
O consumidor lesado em seus direitos, apesar da possibilidade de procurar assegurar, ou compor, a indenização dos danos, inclusive morais, perante o Juizado Especial Cível, concomitantemente, tem ainda alternativa de levar ao conhecimento da Autoridade Policial a prática de uma conduta delitiva por parte do fornecedor, por conseguinte dar ensejo a um procedimento criminal, que se inicia nas Delegacias de Polícia, mediante preenchimento do “termo circunstanciado”, podendo o Boletim de Ocorrência fazer-lhe as vezes2, mas que, no entanto, não prescinde de um mínimo de substancialidade, já que, tal qual o inquérito, tem como função servir para formação da “opnio delicti." Após intimação do Autor do Fato, que assina o Termo de Comparecimento, dá seguimento à fase preliminar.
Preliminarmente, é imperativo firmar que a circunstância em análise deriva da regra que se inicia no artigo 61, a qual adverte constituir crime contra as relações de consumo, além dos preceitos especificados no CDC, as condutas tipificadas tanto no Código Penal como na legislação especial.
A Lei adota uma série de princípios destinados a orientar e atingir os fim último da nova política jurídica que encampa uma prestação jurisdicional célere e desburocratizada. A nova lei orienta-se no tocante aos juizados criminais, consoante a redação do artigo 62, pelos princípios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade.
O pensamento doutrinário que a composição civil dos danos nas infrações penais de menor potencial ofensivo deverá sempre ser tentada, ainda que se trate de crime cuja ação penal seja pública incondicionada, ressalvando-se apenas a hipótese da inexistência de vítima determinada, tendo em vista que esta afirmação defluiu da própria redação do art. 74, parágrafo único e do art. 76, ambos da Lei 9.099/95, nos casos das infrações penais capituladas no Código de Defesa do Consumidor, ao contrário, a homologação do acordo civil nenhum efeito terá sobre a ação penal.
Assim, ainda que tenha ocorrido a referida composição obrigatória é a continuidade da audiência preliminar, salvo se for caso de pedido de arquivamento, vigorando, in casu, o princípio da obrigatoriedade ou da legalidade da ação penal que, apesar de efetivamente mitigado pela lei em estudo, não foi excluído de nossa sistemática processual penal, que abraçou o sistema acusatório (ainda que com impurezas) e o da obrigatoriedade da ação penal, reforçado pelo artigo 129 da Constituição Federal.
Por fim, quando do oferecimento da denúncia, há possibilidade de suspensão do processo nos termos do artigo 89 da Lei 9.099/95.
Da presença de pessoa diversa da vítima
Na defesa das empresas um fato que desperta atenção e provoca grandes aflições é a descaracterização dos indícios de autoria e materialidade, por conseguinte a demonstração da não existência de Justa Causa, eis que assim, mesmo que em determinados casos tenha ocorrido a composição dos danos, há continuidade da audiência preliminar.
A própria composição dos danos carece de uma análise profunda do advogado, pois, nem sempre é o melhor caminho, considerando, como dito, a natureza da ação penal em apreço.
Nos casos concretos vivenciados, diversos boletins de ocorrências são registrados por pessoa diversa da vítima e posteriormente, depois de intimadas, comparecem nos atos processuais subseqüentes, que passam desapercebidos, pois só é considerado a natureza da infração penal originária.
Alguns artigos da Lei 9.099/95 mencionam a presença da vítima durante a fase preliminar. Citamos os artigos 69, 70, 72, 73, e o enunciado criminal 32, decorrente do XVI Encontro Nacional do de Coordenadores de Juizados Especiais do Brasil, ocorrido de 24 a 26 de novembro de 2004 - Rio de Janeiro3 que prevê a obrigatoriedade da presença da mesma na audiência de suspensão do processo prevista no artigo 89.
No magistério de Cézar Roberto Bitencourt "devem comparecer o Ministério Público, as partes - autor e vítima - e, se possível, o responsável civil, todos acompanhados por seus advogados", asseverando, ademais, que "a conciliação será conduzida pelo Juiz ou por conciliador.4” (grifo nosso).
Conclusão
É cediço que há obrigatoriedade na intimação da vítima.
Absolutamente impraticável, absurdamente incabível e completamente inaceitável que se admita a presença de pessoa diversa da vítima.
O juizado tem procedimento especial, razão pela qual deve seguir a especificidade de sua regulamentação, assim, não se pode admitir presença de pessoa diversa, eis que ilegítima para representá-la.
A presença pessoal da vítima se faz necessária, ainda que, conforme já argumentado, para fins de reparação de danos.
Assim, somente a própria terá legitimidade para firmar acordos, prestar depoimentos e praticar todos os atos para os quais é intimada.
Nesse sentido, a ausência da vítima possa ser tolerada nos casos de ação pública incondicionada, mas nunca sua representação por meio de outra pessoa.
Aceitar referido disparate é tornar letra morta a lei regulamentadora do Juizado, bem como os enunciados que tornam obrigatória a intimação da vítima para comparecimento.
Desatendida o enunciado 32, haveria que se falar em nulidade?
Seguindo a lógica do sistema das nulidades, em matéria processual penal (artigo 563, do CPP), em razão de sua inobservância, deve vir acompanhada de efetivo prejuízo à defesa, pois, do contrário, não há que se declarar nulo o ato, quando da nulidade não resultar prejuízo para a defesa, ou melhor, qualquer das partes.
À vista dos princípios da finalidade, da instrumentalidade das formas, e da economia processual, além do princípio da pas de nullité sans grief, não há que se falar em nulidade, sem a demonstração do prejuízo efetivo. Senão, por rigorismo processual, entravar-se-á desnecessariamente o prosseguimento do feito e impedir-se-á a célere composição do litígio, ou reparação do dano. A mitigação do rigor formal em prol da finalidade é critério que deve sempre nortear a conduta do hermeneuta.
Não obstante a inexistência de forma e motivos para requerer a nulidade do feito nas ações públicas incondicionadas, cabe destacar que é patente a irregularidade quando do comparecimento de pessoa diversa nos atos processuais do juizado criminal, devendo o feito ser arquivado.
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1Citação José de Barros Filhos, https://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2462
2Marcelo Colombelli Mezzomo, Bacharel em Direito pela UFSM, Juizados Especiais Criminais: aspectos teóricos e práticos de uma nova política criminal
3César Roberto Bitencourt. Juizados Especiais Criminais e Alternativas à Pena de Prisão. 3ª ed. Porto Alegre: LIVRARIA DO ADVOGADO, 1997, p. 22.
4Enunciado 32 - “O Juiz ordenará a intimação da vítima para a audiência de suspensão do processo como forma de facilitar a reparação do dano, nos termos do art. 89, parágrafo 1º da Lei 9.099/95”.
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*Advogado Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal
**Colaboração especial Dra. Tatiana Assali Ladekani, advogada na capital de São Paulo.
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