Sumário1:
1) Introdução
2) Direito Econômico e a Regulação da Economia pelo Estado
3) Lei Geral da Copa
3.1) Princípio Constitucional da Intervenção Penal Mínima e Bem Jurídico Tutelado
4) Conclusão.
1. Introdução
Este estudo aborda ponto fundamental da lei 12.663 de 5 de junho de 2012, que dispõe sobre as medidas a serem adotadas durante a Copa das Confederações FIFA de 2013, a Copa do Mundo FIFA de 2014 e a Jornada Mundial da Juventude de 2013, a serem realizadas no Brasil: o crime de marketing de emboscada por intrusão.
Os eventos guardam grande interesse esportivo, porém sua grandiosidade e internacionalidade acabam por torná-los importantes instrumentos de publicidade, gerando inúmeros interesses comerciais contrapostos e exigindo um reposicionamento dos Estados-sede na relação com as entidades responsáveis por sua organização.
O marketing de emboscada surge em meio a uma guerra publicitária, com um caráter transgressor que implica em uma delicada relação com os ideais da moral e da ética. Sob o ponto de vista econômico, oferece soluções originais, criativas e de custo vantajoso ao não patrocinador oficial dos eventos e, por outro, prejudica a concorrência que tem se integrado ao quadro de patrocinadores oficiais.
Desta delicada relação surgiu no cenário nacional duas modalidades de crime de marketing (artigos 32 e 33, da lei 12.663/12), inseridos na ordem jurídica como norma jurídico-penal de caráter temporário (art. 36, da lei 12.663/12).
De acordo com o seu entendimento original, o marketing de emboscada não possuía conotação negativa dada ao termo atualmente, associada como uma fraude comercial, atividade ilegal ou antiética. O termo era entendido como uma estratégia de marketing legítima. Às vezes, termos como marketing parasita ou marketing de guerrilha também são usados como sinônimos de marketing de emboscada. Esta visão mudou a partir do momento nos quais grandes esportes e eventos culturais passaram a admitir privilegiados patrocinadores, que possuem exclusividade em seus segmentos, proporcionando maiores lucros para os organizadores e melhor exposição das marcas patrocinadoras. Neste cenário surge o conflito entre uma importante estratégia de marketing, tradicional e largamente utilizada, com os interesses de pequenos grupos econômicos; leia-se, dos organizadores e dos patrocinadores oficiais.
Deste mal estar gerado por força deste conflito, sobrepõe-se a posição a favor dos organizadores e dos patrocinadores oficiais, visto tratar-se do grupo com força política e econômica para defender seus interesses junto ao Estado-sede. No Brasil não foi e nem poderia ter sido diferente: editou-se a lei 12.663/12, conhecida como “lei geral da copa”, que disciplina uma série de situações cuja questão de fundo foi permitir que os eventos nela dispostos pudessem ser realizados no País.
2. Direito Econômico e a regulação da economia pelo Estado
O Direito da “Concorrência” nasceu nos EUA a partir da necessidade de regulamentação da concorrência, através do comportamento de seus agentes econômicos no mercado, e também como instrumento de implementação de uma política pública. Decisiva para o reconhecimento desse novo ramo foi a alteração dos objetivos da intervenção estatal na economia, desde suas primeiras medidas puramente corretivas das falhas do mercado ou episódicas para a solução de crises – alteração essa, que se consolidou após a Segunda Guerra Mundial. Nesta época, a ação estatal passou a ser finalista e – ao menos se pretendia – racional, servido-se muitas vezes de instrumentos como o plano para a consecução de suas metas. Estas, mais frequentemente, referiam-se ao crescimento econômico ou desenvolvimento e industrialização no caso dos países do Terceiro Mundo, implicando, assim, alterações estruturais e uma vocação a controle mais amplo da economia nacional.
Mesmo junto a setores que o vislumbravam outrora como protagonista do processo econômico, político e social, o Estado moderno perdeu o charme, passando-se a encarar com ceticismo o seu potencial como instrumento do progresso e da transformação. O discurso deste novo tempo é o da desregulamentação, da privatização e das organizações não-governamentais. No plano da cidadania, desenvolvem-se os direitos ditos difusos, caracterizados pela pluralidade indeterminada de seus titulares e pela indivisibilidade de seu objeto. Neles se inclui a proteção ao meio ambiente, ao consumidor e aos bens e valores históricos, artísticos e paisagísticos. Após a Constituição de 1988 e, sobretudo, ao longo da década de 90, o tamanho e o papel do Estado passaram para o centro do debate institucional. Ao lado da flexibilização de monopólios públicos e a abertura de setores ao capital estrangeiro, criaram-se normas de proteção ao consumidor em geral e de consumidores específicos, como os titulares de planos de saúde, os alunos de escolas particulares e os clientes de instituições financeiras; introduziu-se no país uma política específica de proteção ao meio ambiente; limitativa da ação dos agentes econômicos, e se estruturou um sistema de defesa e manutenção das condições de livre concorrência.
Este modelo do Estado foi incorporado pela Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, que dedicou seu Título VII à ordem econômica e financeira. Em seu artigo 170, informa os princípios aplicáveis a ordem econômica, dentre os quais se insere o da livre concorrência, desdobramento do princípio da livre iniciativa e, para garanti-la, no § 4º do artigo 174, a CF dispôs que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação de mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
Com efeito, esta claro que a opção do Poder Constituinte Originário foi a de estimular o mercado pela livre iniciativa e concorrência, dotando o sistema de mecanismos para prevenção e repressão de atitudes anticoncorrenciais. Por outro lado, adotou o regime de monopólio – esta estatal – para determinadas atividades consideradas estratégicas sob o ponto de vista da soberania nacional.
3. Lei geral da Copa
Entretanto, sobreveio a lei 12.663/12, que encampou exceções ao princípio da livre concorrência e, em especial, ao regime de monopólio estatal, não contemplados pela CF. Não restam dúvidas de que o princípio da soberania restou afastado, parcialmente, para se admitir a total ingerência das entidades organizacionais na edição da Lei, bem como na condução de seu processo legislativo e, quiçá, de sua eventual e futura arguição de inconstitucionalidade junto ao Poder Judiciário. Contudo, não interessa ao presente estudo este debate, pois sua centralidade recai apenas sobre o estudo dos crimes de marketing de emboscada.
De início, faz-se necessário sua leitura a partir do filtro constitucional, com destaque aos princípios relacionados à atividade econômica, de todas as disposições de conteúdo econômico para posterior reflexão dos comandos de caráter penal.
Conforme indicado pelo artigo 11, da Lei:
A União colaborará com os Estados, o DF e os municípios que sediarão os Eventos e com as demais autoridades competentes para assegurar à FIFA e às pessoas por ela indicadas a autorização para, com exclusividade, divulgar suas marcas, distribuir, vender, dar publicidade ou realizar propaganda de produtos e serviços, bem como outras atividades promocionais ou de comércio de rua, nos Locais Oficiais de Competição, nas suas imediações e principais vias de acesso. (sem destaque no original).
A partir da edição da lei, apenas a FIFA e seus patrocinadores oficiais poderão desenvolver atividades promocionais ou de comércio de rua, nos Locais Oficiais de Competição (artigo 2º, inciso XIV, da lei), nas suas imediações e principais vias de acesso, num perímetro máximo de 2 (dois) quilômetros (artigo 11, § 1º, da lei). Com a criação destas áreas de exclusividade, limita-se todo e qualquer caráter concorrencial nestes espaços, de natureza pública, inclusive.
A vedação legal ao marketing por associação se inicia no § 2º, do artigo 11, da lei:
“A delimitação das áreas de exclusividade relacionadas aos Locais Oficiais de Competição não prejudicará as atividades dos estabelecimentos regularmente em funcionamento, desde que sem qualquer forma de associação aos Eventos e observado o disposto no art. 170 da Constituição Federal.” (sem destaque no original).
Posteriormente, nos artigos 32 e 33, passou a criminalizar a referida conduta.
“Marketing de Emboscada por Associação
Art. 32 Divulgar marcas, produtos ou serviços, com o fim de alcançar vantagem econômica ou publicitária, por meio de associação direta ou indireta com os Eventos ou Símbolos Oficiais, sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, induzindo terceiros a acreditar que tais marcas, produtos ou serviços são aprovados, autorizados ou endossados pela FIFA:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano ou multa.
Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem, sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, vincular o uso de Ingressos, convites ou qualquer espécie de autorização de acesso aos Eventos a ações de publicidade ou atividade comerciais, com o intuito de obter vantagem econômica.
Marketing de Emboscada por Intrusão
Art. 33 Expor marcas, negócios, estabelecimentos, produtos, serviços ou praticar atividade promocional, não autorizados pela FIFA ou por pessoa por ela indicada, atraindo de qualquer forma a atenção pública nos locais da ocorrência dos Eventos, com o fim de obter vantagem econômica ou publicitária:
Tais disposições não se sustentam após o teste de constitucionalidade, pois as bases que sustentam a ideologia capitalista – consagrada pela CRFB/88 –, garantindo a coerência e o desenvolvimento do sistema, compõem-se de dois elementos primordiais: a propriedade privada e a livre iniciativa. O primeiro é, de acordo com a ideologia liberal, um desdobramento da liberdade natural do individuo. Esse direito, que inclui a apropriação dos meios de produção, se situa na grande maioria dos sistemas jurídicos dos países capitalistas no plexo dos direitos fundamentais do homem. O outro elemento, a livre iniciativa, traduz, também, o ideal de liberdade econômica, e seu reconhecimento pela ordem jurídica importa assegurar aos indivíduos a livre escolha da atividade que queiram desenvolver para seu sustento, e limitar a atuação do Estado no campo das opções econômicas dos agentes. Ressalvadas as razões de ordem pública que reservam ao Estado a iniciativa econômica e o controle do exercício de certas atividades, há de ser assegurado a todo indivíduo o direito de livremente iniciar a atividade econômica que lhe aprouver. Naqueles limites, os únicos requisitos necessários ao exercício de uma atividade econômica são o talento e o capital, não podendo o Estado vedar o acesso dos indivíduos aos meios de produção e instrumentos de trabalho, tal qual realizado pela lei 12.663/12.
3.1. Princípio Constitucional da Intervenção mínima e bem jurídico tutelado
Ademais, um dos princípios mais importantes do Direito Penal democrático é o da intervenção mínima, consubstanciando-se em “princípio fundamental” pelo artigo 1o, caput, da CF. Tamanha é a drasticidade da interferência do Direito Penal na vida do cidadão e na dinâmica da sociedade que só deve incidir quando houver ofensa grave a bem jurídico relevante, dotado de substância constitucional. Trata-se de imposição do fenômeno da constitucionalização do Direito Penal. Qualquer criminalização de conduta que não objetive tutelar valor constitucional será inconstitucional.
Como cediço, a real intenção do princípio da intervenção mínima é a limitação de um possível arbítrio do legislador, fato este que veio a efetivamente ocorrer no caso em comento, onde os interesses privados - de uma entidade privada e suas patrocinadoras – foram elevados ao status de interesse público justificadores de uma intervenção estatal repressiva.
Ocorre que é absolutamente nítido que as demais formas de controle social – dentre elas citamos o direito administrativo e o próprio direito civil – são suficientemente adequadas para o resguardo dos bens jurídicos privados que se quer proteger, o que revela ser desnecessária a intervenção, prima ratio, do direito penal.
Em outras palavras, a criminalização de condutas só está constitucionalmente legitimada para prevenir e reprimir ameaças de dano ou danos efetivos aos bens jurídicos fundamentais, o que não se faz presente nos estreantes tipos penais em xeque.
Saliente-se que o princípio da intervenção mínima tem como destinatário inicial o próprio legislador, que mais uma vez promíscuo, criminalizou atos carecedores de qualquer relevância para o direito penal, cabendo ao operador do direito e aos órgãos judicantes, em conjunto com o princípio da subsidiariedade, ao analisarem concretamente os casos que lhes forem submetidos, defender a ausência de tipicidade material das condutas.
Indicadas as duas vertentes constitucionais – princípios da livre iniciativa e da intervenção mínima do Direito Penal –, torna-se necessária a análise dos artigos 32 e 33, da lei 12.663/12.
A afronta ao princípio da intervenção mínima é patente. Não existe bem jurídico-penal constitucional tutelado, apenas um comportamento que possa ser considerado antiético sob o ponto de vista econômico e concorrencial, o que não justifica a sua criminalização. Os valores verdadeiramente protegidos são dos interesses exclusivamente privados da FIFA e de seus patrocinadores oficiais. Não se tutela, sequer, o valor patrimonial, visto que sua eventual lesão ou perigo de lesão são meras presunções e, caso ocorram, o âmbito civil seria adequado e suficiente à sua reparação. Cria-se um precedente perigoso de utilização do Direito Penal única e exclusivamente para resguardar interesses particulares, estranhos aos fins do Direito Penal.
Em que pese a objetividade jurídica tutelada nos crimes em estudo ser a propriedade industrial, sendo a marca suscetível de registro aquela considerada como “sinais distintivos visualmente perceptíveis, não compreendidos nas proibições legais”2, fato é que os símbolos oficiais de titularidade da Fédération Internationale de Football Association (FIFA) são enquadrados em uma das hipóteses de sinais não registráveis como marca3.
Por mais que se faça um exercício teleológico, a única conclusão lógica extraída da lei geral da Copa é que o bem jurídico tutelado são os interesses da FIFA, bastando, para afastar qualquer dúvida, a simples leitura do art. 15 que regula o “incidente de celeridade processual”, onde os atos processuais pertinentes poderão ser realizados nos finais de semana e até mesmo nos horários em que não há expediente forense! Em um país onde o sistema judicial tem como mazela principal a demora, é um contrassenso sem precedentes a exceção criada aos interesses exclusivos da FIFA, para que os processos decorrentes da malsinada lei tramitem mais rapidamente.
Se não há bem jurídico tutelado não há que se falar em tipo penal e conseqüentemente em adequação social, aumentando aí o potencial de inconstitucionalidade da lei.
4. Conclusão
Nada soa mais estranho à soberania de um Estado Democrático de Direito, que tem como norte uma Constituição que prima acima de tudo pelos direitos e garantias fundamentais do homem, dispor de uma lei penal que tutela interesses exclusivos de uma entidade comercial, contra tudo e todos e principalmente contra a Constituição.
No que interessa ao tema, os artigos 32 e 33, da lei 12.663/12 não se mostram conforme o princípio da livre iniciativa. Pelo contrário, é um disparate à lógica capitalista. Tal qual afirmado, o regime de monopólio no Brasil é exclusivamente estatal em situações excepcionalíssimas. O que a lei 12.663/12 inseriu na ordem jurídica infraconstitucional foi um monopólio privado completamente estranho à regulação econômica realizada pela CF. Garantir a livre iniciativa e a livre concorrência é preservar o sistema econômico, inclusive o princípio da isonomia. Em conseqüência tem-se por inconstitucionais os referidos dispositivos criminalizantes.
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1 Colaborador: Eduardo Bronchtein – Acadêmico de Direito do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais – IBMEC-RJ.
2 artigo 122, da Lei n. 9.279, de 14 de maio de 1996
3 artigo 124, inciso I, da Lei n. 9.279, de 14 de maio de 1996
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Referências Bibliográficas
1. Legislação Federal - Lei 12.350, de 20 de dezembro de 2010.
2. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral, 1. 17ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012.
3. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal brasileiro. 7ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
4. SIENA, David Pimentel Barbosa de. Lei Geral da Copa: disposições penais temporárias. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3271, 15 jun. 2012 . Disponível em: clique aqui. Acesso em: 2 abr. 3913.
5.Medeiros,Marcio. Lei Geral da Copa. Disponível em: marciomfelix.wordpress.com/.../lei-geral-da-copa-alguns-pontos- ...
6.Artigo_Silvano_Andrade_do_Bomfim_(Lei_Geral_da_Copa_Soberania_Nacional_e_a_Constituicao).pdf
8. “Marketing de emboscada na África do Sul dá cana”
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* Carlo Huberth Luchione é especialista em Direito Penal Econômico e Pós-Graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra, Portugal (2008). Advogado sócio fundador do escritório Luchione Advogados (1983).
* Felipe Machado Caldeira é mestre em Direito Penal pela UERJ e Pós-Graduado em Direito Penal Econômico e Europeu pelas Universidades de Coimbra, Portugal (2008) e Castilla-La Macha, Espanha e Milão, Itália. Advogado sócio do escritório Luchione Advogados.