Zélio Maia Da Rocha*
Nesse contexto já tivemos a propositura de várias ações diretas de inconstitucionalidade contra a emenda, da quais se destacam a de n° 3395-6 que teve deferimento de liminar pelo Excelentíssimo Sr. Ministro Cezar Peluso e a ADIn 3367 (que questionava o Conselho Nacional de Justiça) sendo esta julgada improcedente, ou seja considerando a emenda, nesse particular, constitucional. Evidentemente, quando se fala em Constituição, sempre se fala em política, razão pela qual é impossível fazer qualquer análise puramente jurídica, o que exige em qualquer interpretação constitucional sua contextualização no campo político.
Primeira crítica que se deve fazer à emenda é quanto ao seu sistema de numeração dos artigos. Veja que a técnica legislativa adotada na Emenda n° 45 cometeu o mesmo erro observado em outras alterações da Constituição, o que aumentou sobremaneira o Texto Magno brasileiro, fazendo inserir parágrafos, incisos e artigos novos sem renumerar os seguintes; tratou-se de promover a renumeração “interna da Constituição”, utilizando a esdrúxula numeração seguida de uma letra do alfabeto. Na atual reforma, tivemos a inserção dos arts. 103-A, 103-B, 111-A e 130-A. Tal técnica, aliás, é determinada pela Lei Complementar n° 95/98, com as alterações introduzidas pela Lei Complementar n° 107/2001.
O que essa forma de numeração deixa transparecer é que o legislador procura dar a falsa impressão de que a nossa constituição não é extensa, promovendo o seu inchaço interno que poderá levar a uma futura explosão de credibilidade.
Não se pode concordar com isso, pois o Brasil já tem leis demais; os operadores do Direito não conseguem manter uma atualização constante, tampouco o cidadão comum, que é o destinatário último das normas jurídicas criadas. Essa forma brasileira de numeração dos textos normativos apenas mostra o descalabro que é o sistema legislativo pátrio, revelando a instabilidade política, econômica e social de nosso país. As alterações se dão diariamente, o que provoca inquestionável insegurança nessas áreas.
Outra questão que ressai da emenda 45/2004 se refere ao âmbito das modificações: apesar de ter recebido o título de “reforma do Judiciário”, promoveu alterações substanciais em institutos constitucionais que merecem detida reflexão, não só pela extensão das mudanças como pelo seu conteúdo. Afirmo categoricamente que estamos, na realidade, não frente a uma reforma do judiciário, mas sim de uma verdadeira reforma dos direitos fundamentais, onde a reestruturação eventualmente promovida pela emenda buscou apenas alcançar a plena efetividade do princípio constitucional da prestação jurisdicional.
Defendo, aliás, com veemência, que, dada a extensão das alterações, o Congresso Nacional está a usurpar a competência do poder constituinte fundador.
Qual a diferença entre todas essas modificações (estamos hoje com 53 emendas – devem ser consideradas as 6 emendas de revisão) e aquelas promovidas a partir da Emenda Constitucional n° 1, de 1969? Nenhuma (não estou falando do ambiente político). Nas duas situações, houve tantas alterações do texto da Constituição que é possível discutir se o Congresso Nacional estaria exercitando sua função de poder constituído ou de verdadeiro poder constituinte fundador, quando, na realidade, estaria elaborando uma nova Constituição sem a devida legitimidade, o que implicaria falar em uma Constituição outorgada, e não popular, cujo pressuposto é uma legítima assembléia constituinte.
A atual Constituição é, de longe, a que mais mudanças sofreu. A segunda mais submetida a emendas foi a de 1967, que teve apenas 27 emendas — isso em 21 anos de vigência —, e que atravessou um regime de exceção, após o qual se retornou ao regime democrático, inclusive com a edição da Emenda n. 26/85, que convocou a Assembléia Nacional Constituinte; tal fato, em tese, proporcionou maior volume de alterações.
Não se pode perder de vista que a Constituição deve manter uma unidade política, social e técnico-jurídica. A atual Carta, com suas sucessivas alterações, já não guarda qualquer unidade; apresenta, aliás, inclusive, conflitos evidentes em razão de mal elaboradas emendas constitucionais. Um exemplo é o que fez o legislador reformador com o art. 77, por intermédio da Emenda Constitucional n. 16/97: alterou-se o caput do art. 77: a data das eleições em primeiro turno foi transferida de 3 de outubro para o primeiro domingo desse mês, e o segundo turno passou de vinte dias após o resultado do primeiro turno para o último domingo de outubro. A mudança foi razoável, pois um dia fixo da semana evita, por exemplo, o conflito da data da eleição com questões de ordem religiosa — aqueles que preservam o sábado, e.g., para dedicar-se à sua fé. O problema dessa emenda é não ter promovido a devida alteração do disposto no § 3º do mesmo artigo, que manteve a afirmação de que “... far-se-á nova eleição em até vinte dias após a proclamação do resultado, ...”. Ora, nesse caso, o constituinte reformador nem sequer se deu ao trabalho de proceder a uma leitura do texto nos pontos relacionados ao artigo alterado, o que, como se disse anteriormente, quebra o princípio da unidade constitucional.
A tarefa de interpretar uma Constituição com modificações tais que não guardem unidade entre seus preceitos tende a provocar grande instabilidade jurídica e, conseqüentemente, política e social. Afinal, a partir daí, atribui-se ao Judiciário a espinhosa tarefa de verdadeiramente construir o Texto Constitucional.
Nosso legislador, com sua tradição exageradamente positivista, compreende que, somente pelo reconhecimento formal de um preceito normativo é que se alcançará a plenitude democrática (é o que eu chamo de princípio da estrita constitucionalidade, onde só é respeitado aquilo que esteja expressamente na constituição). Não é bem assim: as alterações casuísticas militam exatamente em sentido contrário, pois somente o Judiciário terá condições de promover a denominada harmonização dos preceitos constitucionais (conhecida pela doutrina como concordância prática), na condição de intérprete derradeiro da Constituição.
Isso acarreta um efeito oposto ao desejado pela reforma, que é a agilidade do Judiciário, ao menos em um primeiro momento, já que os questionamentos que podem ser gerados por uma emenda exageradamente detalhista provocarão uma temporária instabilidade jurídica, até mesmo no que concerne à aplicação ou não dos preceitos normativos constitucionais originados da emenda, em razão da alegação de violação ou não das denominadas cláusulas pétreas.
Isso é constatado hoje onde se sabe que, passados mais de oito meses a reforma do judiciário ainda não aconteceu uma vez que não houve qualquer regulamentação o que frustra, com essa paralisia reformadora, todas as expectativas criadas na mente daqueles únicos interessados em que a reforma do judiciário dê certo, que é o cidadão-jurisdicionado.
Todo o resto são questões de menor expressão, pois, a morosidade da justiça apresenta-se como desestímulo maior para acreditar que esse país dará certo.
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*Procurador do Distrito Federal, advogado, Professor de Direito Constitucional, Conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção do Distrito Federal, Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-DF, Conselheiro do Conselho Deliberativo – CONDEL – do Programa de Proteção às Vítimas, Testemunhas e Familiares – PROVITA/DF, autor da obra “A reforma do Poder Judiciário – Uma avaliação jurídica e política”.
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