O presente artigo busca apontar ilegalidades que vêm sendo perpetradas por agentes policiais que, sob alegação de cometimento de crime contra as relações de consumo, mormente aqueles descritos no art. 7º da lei 8.137/90, dão voz de prisão em flagrante delito aos representantes legais de estabelecimentos comerciais que, deste modo, se veem subitamente privados de sua liberdade em decorrência de infrações que, em sua essência, têm condão meramente administrativo.
É o que se passa a discorrer.
Como é cediço, a CF de 1988, em seu no art. 5º, inciso XI, assegura a inviolabilidade da casa do indivíduo e dos pertences nela contidos, não podendo este ser violado salvo por expressa e justificada ordem judicial.
Sucede que o que se vê, cada vez com mais frequência, são comerciantes dos mais diversos ramos de atividade (vestuário; auto peças; brinquedos; eletrônicos) surpreendidos em pleno expediente por “operações policiais” deflagradas de modo aleatório e sem nenhum cunho investigativo, que quase sempre culminam com sua condução à delegacia de polícia onde lhe é dada voz de prisão por suposto crime “contra as relações de consumo” e apreendidas mercadorias que foram encontradas no estoque do estabelecimento, nas “buscas” realizadas com base em “ordens de serviço”.
São operações policiais deflagradas a esmo e sem o mínimo de indício prévio da prática de um crime, ocasionando a privação da liberdade do comerciante, em completo desrespeito à legislação Pátria, eis que dissociadas do imprescindível controle externo pelo Poder Judiciário.
Nesse contexto onde inexistem parâmetros de atuação, ditadas por uma Autoridade Judiciária, muitas vezes os agentes policiais, após adentrarem no estabelecimento sem a devida autorização do dono, se apropriam de documentos fiscais e informações relativas à terceiros, que assim acabam sendo envolvidos na investigações mesmo que não tenham qualquer relação com as mercadorias apreendidas, o que constitui evidente abuso.
Enfim, são condutas como estas que reclamam pronta atuação do Poder Judiciário, sob pena de conferir poderes ilimitados para agentes públicos, em detrimento das garantias constitucionais em vigor.
Em suma, o que importa aqui considerar, além dos abusos e ilegalidades muitas vezes perpetrados contra aquele comerciante ao qual foi dada voz de prisão tão somente pela falsa e genérica alegação de que alguns produtos que comercializa supostamente “não estavam dentro das especificações exigidas pelo Código de Defesa do Consumidor”, é que o disposto no diploma legal invocado (art, 7º, da lei 8.137/90) não autoriza a adoção de tal medida drástica e prematura, eis que ultimada sem a devida comprovação inequívoca dos fatos no bojo de uma investigação prévia que justifique a retirada da pessoa, ainda que por curto período de tempo, do convívio social, até porque, quase sempre, estará se falando de uma infração administrativa e não de um ilícito penal.
De fato, o entendimento de que infrações de natureza administrativa não dão azo à ultimação de prisões em flagrante, sem a devida e necessária comprovação do delito imputado pelos agentes policiais, ganha força na jurisprudência, conforme bem ilustrado no aresto de julgado abaixo transcrito:
“CRIME CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO. ESTABELECIMENTO COMERCIAL QUE EXPÕE Á VENDA PRODUTOS EM CONDIÇÕES IMPRÓPRIAS AO CONSUMO. ART. 7º, INCISO IX, DA LEI 8137/90. INDISPENSABILIDADE DA PERÍCIA PARA COMPROVAÇÃO DA IMPROPRIEDADE DA MERCADORIA PARA CONSUMO. O PRECEITO CONTIDO NO ART. 18, PARÁGRAFO 6º, DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, DEFINE IMPROPRIEDADE DE MERCADORIA PARA CONSUMO. MAS NÃO DEVE TER APLICAÇÃO NA ESFERA PENAL, COMO NORMA INTEGRADORA, APENAS PARA FINS DE PUNIÇÃO ADMINISTRATIVA É QUE SE ADMITE SUA APLICABILIDADE. NA ESFERA PENAL, PARA CARACTERIZAÇÃO DA CONDUTA TÍPICA EM RELAÇÃO AO DELITO EM APURAÇÃO, FAZ-SE INDISPENSÁVEL A DEMONSTRAÇÃO INEQUÍVOCA DA POTENCIALIDADE LESIVA DOS PRODUTOS, O QUE NÃO OCORREU NO PRESENTE CASO. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS DESTA CORTE DE JUSTIÇA. RECURSO PROVIDO.
(AP. nº 2007.050.06758, 5ª Câmara Criminal, rel. Des. Luisa Bottrel – julg. Em 17/07/08).
Nos mesmos moldes o julgado abaixo:
Na esfera penal, para caracterização da conduta típica em relação ao delito em apuração, faz-se necessária a demonstração inequívoca da potencialidade lesiva dos produtos. (...)
Afinal, o caráter repressivo penal deve limitar-se a tutelar condutas de reprovação considerável e, neste caso, não é razoável considerar-se o crime como perfeito, tão somente porque a rotulagem dos produtos estava incompleta. Cabe aqui, perfeitamente, a aplicação do princípio da razoabilidade, em seus desdobramentos relativos á adequação e necessidade, consoante disposto no artigo 5º, LIV, da Carta Maior. (...)”
(Ap. nº 2005.050.03438, 5ª Câmara Criminal, rel. Des. Maria Helena Salcedo – julg. Em 29/11/05).
Ademais, a decretação de prisões em flagrante pela autoridade policial, operadas sob tal justificativa, porém de modo genérico e sem a necessária comprovação da materialidade do delito imputado, afronta a novel legislação que dispõe acerca da matéria, qual seja, a lei 12.830/13, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia e que, em seu art. 2º, parágrafo sexto, estipula que o indiciamento dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias o que, à evidência, não se coaduna com as prisões em flagrante operadas de modo abusivo e açodado, ainda que sob o manto da lei 8.137/90, diploma legal este permeado por uma “ratio” que privilegia a investigação efetiva e não o arbítrio, eis que sancionada em pleno regime democrático.
Nesse contexto, urge que todos os agentes envolvidos, polícia; Judiciário; MP e a OAB, atuem de modo mais efetivo no sentido de coibir abusos contra os cidadãos pois, ao se tolerar tal estado de coisas, restará degenerado o próprio espírito das normas de proteção ao consumidor uma vez que estarão a serviço, apenas e tão somente do arbítrio e autoritarismo, sem espaço no vigente Estado Democrático de Direito.
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