Nos termos do artigo 649, IV, do CPC, "são absolutamente impenhoráveis os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal".
À simples leitura do mencionado texto normativo, pode-se dizer que a lei processual civilista protege todas as verbas de natureza alimentar de forma absoluta e ilimitada.
No entanto, conforme será analisado, essa interpretação literal do artigo 649, IV, do CPC, não deve prevalecer.
Isso porque, consoante o ensinamento de Cândido Rangel Dinamarco: "o objetivo central que comanda todas as impenhorabilidades é o de preservar o mínimo patrimonial indispensável à existência decente do obrigado, sem privá-lo de bens sem os quais sua vida se degradaria a níveis insuportáveis (...). (in Instituições de Direito Processual Civil, Malheiros Editores, 2004, p. 340 e 350).
Em outras palavras, não obstante a dicção do artigo 649, IV, do CPC, pode-se afirmar que a intenção da norma não é a de impedir, de forma ilimitada, a constrição judicial de qualquer rendimento que se caracterize como verba alimentar, mas sim a de garantir ao devedor a proteção do mínimo necessário para a manutenção do seu sustento e de sua família.
Entender que qualquer rendimento de natureza alimentar, ainda que de monta considerável, não possa ser penhorado, é o mesmo que proteger de forma exacerbada o devedor em desfavor do próprio credor.
É nesse sentido o entendimento do desembargador Alberto Henrique da 13ª câmara Cível do TJ/MG que, em voto proferido em recurso de agravo de instrumento, registrou que: "[...] a ordem constitucional que confere o direito fundamental ao devedor de lhe garantir um mínimo existencial como corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, também confere ao credor o direito fundamental à efetividade, decorrência do princípio do devido processo legal, também incluindo no rol de direitos fundamentais do indivíduo, pela Carta Constitucional" (Agravo de Instrumento Cv 1.0607.12.003104-4/001, Relator(a): Des.(a) Alberto Henrique , 13ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 1/8/13, publicação da súmula em 9/8/13).
Ainda à análise do voto proferido pelo mencionado desembargador, verifica-se o seu entendimento no sentido de que, na hipótese em que seja provável que o devedor receba consideráveis rendimentos salariais, deve ser permitida a constrição judicial em favor do credor:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO. PENHORA DE SALÁRIO. IMPOSSIBILIDADE. IMPENHORABILIDADE ABSOLUTA E ILIMITADA. Art. 649, IV, CPC. PRECEDENTES DO STJ. Salvo em casos excepcionais em que fique de pronto demonstrada a desnecessidade de aplicação da proteção legal dada ao salário, pode-se admitir alguma flexibilização na natureza absoluta e ilimitada da regra de impenhorabilidade prevista no artigo 649, inciso IV, do Código de Processo Civil, o que não ocorre no presente caso.
[...]
Não se nega que o agravado deve ter um patrimônio mínimo existencial garantido, conforme alhures salientando, mas, por outro lado, não é menos certo que o agravante também tem direito a ver seu crédito satisfeito. Por esta razão, não se pode criar um patrimônio blindado, só pela circunstância de se tratar de verba de natureza alimentar, porquanto o agravante jamais lograria satisfazer seu crédito. (Agravo de Instrumento Cv 1.0607.12.003104-4/001, Relator(a): Des.(a) Alberto Henrique, 13ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 01/08/2013, publicação da súmula em 09/08/2013 – grifou-se).
Nesse mesmo sentido, cabe destacar o voto da ministra Nancy Andrighi proferido no REsp 1.150.738. A ministra defende ser incoerente o entendimento de não se poder penhorar qualquer rendimento de verba alimentar, considerando que a maioria das pessoas paga as suas dívidas com fruto do próprio salário. Veja-se:
(...) contemporaneamente, em decorrência das necessidades sociais e do desenvolvimento tecnológico, o meio usual de pagamento de rendimentos advindos do trabalho se dá por intermédio de conta corrente, o que não descaracteriza, de imediato, sua natureza salarial e alimentar.
Todavia, a constatação acima não leva à conclusão de que impenhorabilidade em conta corrente seja absoluta, porque, se assim fosse, como frisei no julgamento do RMS 25.397/DF, de minha relatoria, DJ 03.11.2008, estar-se-ia protegendo situações absurdas em que, por exemplo, o "(...) trabalhador contraia empréstimos para cobrir seus gastos mensais, indo inclusive além do suprimento de necessidades básicas, de modo a economizar integralmente seu salário, o qual não poderia jamais ser penhorado. Considerando que, de regra, cada um paga suas dívidas justamente com o fruto do próprio trabalho, no extremo estar-se-ia autorizando a maioria das pessoas a simplesmente não quitar suas obrigações". A interpretação mais correta a se atribuir ao art. 649, IV, do CPC, nessas situações, é aquela que se leve em consideração a ratio legis que norteia o dispositivo, qual seja, a proteção da quantia monetária necessária para a subsistência digna do devedor e de sua família.
Em suma, não é razoável que se permita "blindar", de forma absoluta e ilimitada, todos os tipos de rendimentos, ainda que de natureza alimentar, em prejuízo ao credor. O ideal é que sejam analisadas as questões peculiares de cada caso, permitindo-se, quando possível e necessário, a flexibilização da regra da impenhorabilidade disposta no artigo 649, IV, do CPC, para que se possa satisfazer o direito do credor.
____________
* Silvia Ferreira Persechini e Ricardo Victor Gazzi Salum são advogados do escritório Homero Costa Advogados.