Até o advento da lei 12.694/12 não havia no ordenamento jurídico brasileiro a definição legal do que pode ser entendido como "organização criminosa", muito embora tal termo já aparecesse na legislação penal e processual penal.
Em virtude de tal lacuna, costumava-se utilizar a definição dada pela Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo, que passou a integrar o ordenamento jurídico brasileiro com o advento do decreto 5.015/04. De acordo com o artigo da 2-a da referida convenção, "grupo criminoso organizado" é aquele estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente como o propósito de cometer uma ou mais infrações graves, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal, em julgamento de habeas corpus impetrado por membros da Igreja Renascer em Cristo, acusados pela prática do delito tipificado no art. 1º, inciso VII, da lei 9.613/98 (lavagem de dinheiro), decidiu que a utilização da definição dada pela Convenção de Palermo violaria o princípio da legalidade, ante a inexistência de lei em sentido formal e material definindo o que deve ser entendido como organização criminosa. Realmente, não se pode olvidar que tal Convenção foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro por simples decreto...
Assim, de acordo com o Supremo Tribunal Federal a conduta de "organização criminosa" seria atípica, uma vez que não existiria a previsão de tal delito na legislação penal brasileira.
Em vista de tal fato, em 24 de julho de 2012 foi publicada a lei 12.693, dispondo sobre o processo e o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organizações criminosas.
Tal lei conceituava organização criminosa em seu artigo 2º como sendo:
"a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional"
Como se pode verificar, o legislador pátrio se inspirou na Convenção de Palermo para elaborar tal conceito, não havendo grandes diferenças entre este e a definição constante naquela.
Em 02 de agosto do corrente ano foi publicada a lei 12.850/13, definindo organização criminosa e dispondo sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado.
A novel lei conceitua a organização criminosa em seu art. 1º, §1º como sendo:
"a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional".
Importante ressaltar que, enquanto a lei 12.694/12 exige para a caracterização da organização criminosa a associação de três ou mais pessoas e a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam iguais ou superiores a quatro anos, a lei 12.850/13 exige a associação de quatro ou mais pessoas e a prática de infrações penais com pena máxima superior a quatro anos. Tal mudança é significativa.
A par de tais mudanças, a atual lei mantém a redação da anterior no que tange aos crimes de caráter transnacional (ou seja, independentemente da pena a eles cominada), inovando, contudo, ao incluir os atos de terrorismo que assim forem definidos pelas normas de direito internacional.
Conforme destaca Pacelli, muito embora a lei 12.850/13 não faça qualquer referência à eventual revogação parcial da lei 12.694/12, notadamente no que respeita ao conceito de organização criminosa, não se pode admitir a superposição de conceitos em tema de tamanha magnitude. Tal situação, ao nosso ver, deve ser solucionada a luz dos critérios utilizados para a superação do conflito aparente de normas, especialmente, o critério cronológico. Assim, deve-se entender que a lei 12.850/13 revogou, no que tange ao conceito em apreço, a lei 12.694/12, devendo ser utilizado, portanto, a definição naquela prevista.
Ressalte-se, ainda, que a lei 12.850/13 tipifica as condutas de promover, constituir, financiar ou integrar (pessoalmente ou por interposta pessoa) organização criminosa, assim como os comportamentos de impedir ou de qualquer forma embaraçar investigação penal que envolva organização criminosa, punindo tais ações com a mesma pena, ou seja, reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa.
Prevê a lei 12.850/13 a chamada "colaboração premiada", dispondo em seu artigo 4º que:
"O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:
I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas;
II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa;
III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa;
IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa;
V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada".
Tal hipótese de redução de pena ou perdão judicial não chega a ser novidade no ordenamento jurídico brasileiro, todavia, o §2º do artigo em apreço traz inovação que, a princípio, se afigura como inconstitucional, senão veja-se:
"§2º. Considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal)"
De acordo com o referido parágrafo, o delegado de polícia poderia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, representar ao juiz pela concessão do perdão judicial ao colaborador.
Tal possibilidade resta clara ao se analisar o conteúdo do §6º que dispõe que:
"o juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor".
Assim, de acordo com o texto legal, poderia o delegado de polícia formalizar o acordo de colaboração com o investigado e seu defensor, exigindo-se para tal apenas a "manifestação do Ministério Público".
Ocorre que, em contradição com o constante em seus parágrafos, o caput do art. 4º faz referência expressa à necessidade do requerimento das partes para a concessão do perdão judicial ou redução da pena aplicada ao agente colaborador e, como é sabido, a autoridade policial não é parte processual...
Ainda, havendo manifestação contrária pelo Ministério Público, poderá o delegado de polícia, ainda assim, formalizar o acordo de colaboração? Admitindo-se possível tal situação, como deverá o juiz proceder? Deverá homologar um acordo com o qual não concorda o titular da ação penal?
Ora, não se pode olvidar que o Ministério Público é o exclusivo legitimado a promover a ação penal pública, somente cabendo a este tanto o oferecimento de denúncia quanto o requerimento de arquivamento do inquérito policial.
Dessa forma, conforme bem leciona Pacelli afigura-se:
"(...) absolutamente inconstitucional a instituição de capacidade postulatória e de legitimação ativa do delegado de polícia para encerrar qualquer modalidade de persecução penal, e, menos ainda, para dar ensejo à redução ou substituição de pena e à extinção da punibilidade pelo cumprimento do acordo de colaboração. Se o sistema processual penal brasileiro sequer admite que a autoridade policial determine o arquivamento de inquérito policial, como seria possível admitir, agora, a capacidade de atuação da referida autoridade para o fim de:
a) Extinguir a persecução penal em relação a determinado agente, sem a consequente legitimação para promover a responsabilidade penal dos demais(delatados), na medida em que cabe apenas ao parquet o oferecimento de denúncia;
b) Viabilizar a imposição de pena a determinado agente, reduzida ou com a substituição por restritivas de direito, condicionando previamente a sentença judicial;
c) Promover a extinção da punibilidade do fato, em relação a apenas um de seus autores ou partícipes, nos casos de perdão judicial".
Reforçando seu posicionamento, continua o aludido autor asseverando que:
"Não se há de aceitar mesmo a legitimação ativa declinada na lei 12.850/13, também por que:
a) O acordo de colaboração premiada tem inegável natureza processual, a ser homologado por decisão judicial, que somente tem lugar a partir da manifestação daqueles que tenham legitimidade ativa para o processo judicial;
b) O fato de poder ser realizado antes do processo propriamente dito, isto é, antes do oferecimento da acusação, não descaracteriza sua natureza processual, na medida em que a decisão judicial sobre o acordo está vinculada e também vincula a sentença definitiva, quando condenatória;
c) A condição de parte processual está vinculada à capacidade e à titularidade para a defesa dos interesses objeto do processo. É dizer, a legitimação ativa está condicionada à possibilidade da ampla tutela dos interesses atribuídos ao titular processual, o que, evidentemente, não é o caso do delegado de polícia, que não pode oferecer denúncia e nem propor suspensão condicional do processo;
d) O acordo de colaboração, tendo previsão em lei e não na Constituição da República, não poderia e não pode impedir o regular exercício da ação penal pública pelo Ministério Público, independentemente de qualquer ajuste feito pelo delegado de polícia e o réu;
e) Para a propositura do acordo de colaboração é necessário um juízo prévio acercada valoração jurídico-penal dos fatos, bem como das respectivas responsabilidades penais, o que, como se sabe, constitui prerrogativa do Ministério Público, segundo o disposto no art. 129, I, CF;
f) A eficácia do acordo de colaboração está vinculada, não só aos resultados úteis previstos em lei, mas também à sentença condenatória contra o colaborador, o que dependerá de ação penal proposta pelo Ministério Público".
Em vista do exposto, duas possibilidades se apresentam: ou se declara a inconstitucionalidade de tais normas, ou se condiciona a formalização do acordo de colaboração pelo delegado de polícia à prévia manifestação positiva do Ministério Público.
Ainda, há que se questionar a moralidade de tal instituto, já que o Estado ao se utilizar da figura do colaborador, "premia" o participante de organização criminosa que "trai" os demais. Neste sentido, leciona Zaffaroni que:
"(...) a impunidade de agentes encobertos e dos chamados ‘arrependidos’ constitui uma séria lesão à eticidade do Estado, ou seja, ao princípio que forma parte essencial do Estado de Direito: (...) o Estado está se valendo da cooperação de um delinquente, comprada ao preço da sua impunidade para ‘fazer justiça’, o que o Direito Penal liberal repugna desde os tempos de Beccaria".
Dispõe a lei 12.850/13 também sobre a "ação controlada", definindo-a em seu art. 8º como o ato de:
"retardar a intervenção policial ou administrativa relativa à ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz à formação de provas e obtenção de informações".
Para que haja tal retardamento necessário se faz, nos termos da lei, prévio comunicado ao juiz competente que, a seu juízo, estabelecerá seus limites e comunicará ao Ministério Público.
Tal possibilidade já se afigurava na lei 9.034/95 (expressamente revogada pela lei em comento), não necessitando, como na novel legislação de autorização judicial, mas apenas prévia comunicação ao juízo.
Esta comunicação deverá ser autuada em apartado, somente tendo acesso aos autos o Juiz, o Ministério Público e o Delegado de Polícia, até que se efetivem as diligências justificadamente retardadas pela autoridade policial, evitando-se, assim, prejuízo para as investigações.
Destaque-se, contudo que, conforme salienta Pacelli que "ao final concluído o ciclo da ação controlada, será lavrado termo circunstanciado no qual se incluirão todos os detalhes da operação, dado que não se pode sequer pensar em procedimentos em segredo no âmbito do Estado de Direito".
No que toca à infiltração de agentes, a lei 12.850/13 busca "resolver" questões debatidas ante a falta de previsão do procedimento a ser realizado para o ato (tanto na lei 9.034/95, quanto na lei 11.343/06), dispondo, em seu artigo 10, que:
"Art. 10. A infiltração de agentes de polícia em tarefas de investigação, representada pelo delegado de polícia ou requerida pelo Ministério Público, após manifestação técnica do delegado de polícia quando solicitada no curso de inquérito policial, será precedida de circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial, que estabelecerá seus limites.
§ 1º Na hipótese de representação do delegado de polícia, o juiz competente, antes de decidir, ouvirá o Ministério Público.
§ 2º Será admitida a infiltração se houver indícios de infração penal de que trata o art. 1o e se a prova não puder ser produzida por outros meios disponíveis.
§ 3º A infiltração será autorizada pelo prazo de até 6 (seis) meses, sem prejuízo de eventuais renovações, desde que comprovada sua necessidade".
O texto legal parece levar à conclusão que a infiltração deve ser medida excepcional, somente podendo ser levada à efeito quanto a prova do fato não puder ser obtida por outros meios disponíveis. A autoridade judiciária deverá, então, demonstrar em sua decisão a referida impossibilidade para só então deferir a realização da medida.
Ainda, somente agente públicos poderão ser infiltrados, não sendo possível a utilização de membros da própria organização para a realização de atos investigatórios, como se revela, aliás, óbvio.
Esclarece, ainda o parágrafo único do artigo 13 da lei em comento que "não é punível, no âmbito da infiltração, a prática de crime pelo agente infiltrado no curso da investigação, quando inexigível conduta diversa". Ou seja, cria a lei causa legal de exclusão da culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa do agente que, no desempenho de seu mister venha a, de alguma forma, contribuir para a prática de crimes.
Não se fala, por certo, do próprio crime de integrar organização criminosa, mas de eventuais delitos que o agente venha a praticar quando "infiltrado", tanto para obter provas acerca da organização, quanto também para proteger não comprometer o seu “disfarce” perante os demais membros.
Neste ponto, cabe ressaltar que a inexigibilidade de conduta diversa diz respeito a um comportamento ilícito que não poderia ser evitado pelo agente ante a situação fática, sendo que, no caso do infiltrado, a lei lhe impõe (!), como comportamento devido, a participação em delitos, desde que este atue de forma proporcional aos fins da investigação.
Com a lucidez que lhe é peculiar, questiona Pacelli:
"(..) qual conduta é exigível do agente policial? A organização exige que ele atue para a prática de delitos, enquanto o Estado dele espera um comportamento heróico, de neutralidade em relação ao crime. Mas, apenas quando possível, veja-se bem! Quando ele, por dever de ofício (na organização, é claro), tiver que executar algum ato na cadeia das condutas configuradoras de crimes, estará previamente exculpado.
O infiltrado, portanto, tem dois deveres originários opostos: o de atuar em favor dos delitos e o de colher elementos que demonstrem a prática de tais crimes. Mas, pode surgir outro dever, agora derivado: o de executar, em algum nível, o delito, quando entãonão haverá contraposição de deveres: tanto a organização criminosa quanto o Estado esperam dele semelhante comportamento!
Há que ter cuidado na luta contra a violência, pois o terror pode estar dos dois lados".
Permite ainda a lei 12.850/13 o acesso a dados sem autorização judicial, prevendo em seu artigo 15 que:
Art. 15. O delegado de polícia e o Ministério Público terão acesso, independentemente de autorização judicial, apenas aos dados cadastrais do investigado que informem exclusivamente a qualificação pessoal, a filiação e o endereço mantidos pela Justiça Eleitoral, empresas telefônicas, instituições financeiras, provedores de internet e administradoras de cartão de crédito.
Perceba-se que somente será permitido o acesso a dados cadastrais que digam respeito à qualificação pessoal, filiação e endereço do investigado, sendo que, com relação aos demais, necessário se faz prévia autorização judicial.
Estas breves considerações, evidentemente, não esgotam as questões que podem ser suscitadas ante a lei 12.850/13, nem mesmo aprofundam a discussão dos temas abordados, sendo apenas uma análise superficial da lei feita à guisa de conhecimento.
Não obstante, pode-se afirmar ao final deste pequeno texto que se a lei é positiva em alguns pontos (por exemplo, na tipificação adequada de organização criminosa), traz disposições passíveis de críticas, como a colaboração premiada e a infiltração de agentes, demandando uma cuidadosa interpretação por parte dos operadores do direito, já que, em um Estado Democrático de Direito há interesses mais relevantes do que a simples apuração de uma infração penal, por mais grave que ela possa parecer.
Referências bibliográficas:
BRASIL, Lei 12.850/13.
PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal – 17a. edição – Comentários ao CPP – 5a. edição – Lei 12.850/13. In: https://eugeniopacelli.com.br/atualizacoes/curso-de processo-penal-17a-edicao-comentarios-ao-cpp-5a-edicao-lei-12-85013-2/. Acesso em 16 de setembro de 2013.
ZAFFARONI. Eugenio Raul. Crime organizado: uma categoria frustrada. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro: Revan, ano 1, v. 1, 1996.
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