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Não vale aprovar um novo CPC sem a supressão do efeito suspensivo automático da apelação

A busca por um (pseudo) consenso político para aprovação do projeto não pode servir de escusa para que a versão Câmara do novo CPC mutile a reforma mais esperada dos últimos anos.

19/11/2013

Não é lógico obrigar o vencedor da ação em 1ª instância a esperar o tempo do duplo grau de jurisdição, quando o juiz já declarou a existência do direito postulado. Parece, em outras palavras, “que a sentença deveria ter, em regra, executividade imediata”, mesmo que em caráter provisório (art.475-O, do CPC).

Afinal, em um sistema de Justiça civil que se deseja (e se projeta) efetivo, a sentença não pode ter o mesmo efeito de um parecer; o 1º grau não pode ser mera instância de passagem; e o juiz monocrático não pode ser responsável, simplesmente, por decidir quem vai recorrer de sua decisão (quando não ambos).

Exatamente por isso a expectativa legislativa em vista do novo CPC era a de supressão da suspensão automática (ex lege) dos efeitos da sentença apelável, nos moldes do recurso ordinário da Justiça do Trabalho (art. 899 da CLT), e da apelação nos processos regidos pela lei de locações (art. 58, V, da lei 8.245/91), lei de Ação Civil Pública (art. 14 da lei 7.347/85) e Juizados Especiais Cíveis, Federais e da Fazenda Pública (art. 43, da lei 9.099/95). Deveria caber ao juiz, por decisão fundamentada e recorrível, a concessão do efeito suspensivo ao recurso, nos casos de risco de dano grave pela possibilidade de início da execução provisória.

Contrariando, contudo,

(i) a tendência nacional e internacional a respeito da temática;

(ii) a proposta do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil) gestada desde a década de 1990;

(iii) a sugestão da Comissão de Juristas nomeada para a elaboração do anteprojeto do CPC (art. 908);

(iv) o próprio projeto aprovado no Senado Federal (art. 949); e

(v) o coro quase que uniforme da doutrina especializada no assunto;

inexplicavelmente o projeto do Novo CPC, na versão aprovada pela Câmara (Relatório Deputado Paulo Teixeira – PT/SP – art. 1025), manteve a regra do CPC atual (art. 520, caput), que, como regra geral, torna automaticamente sem efeito a sentença de 1º grau sujeita a recurso de apelação.

Basicamente, os defensores da suspensão automática dos efeitos da sentença apelável apegam-se a três argumentos para justificar a manutenção da regra atual do CPC:

a) risco de injustiça, em razão dos irreversíveis prejuízos sofridos pelo recorrente/executado amparado pelo provimento do recurso de apelação no Tribunal;

b) incerteza, na medida em que execuções provisórias se iniciariam sem o referendo do duplo grau de jurisdição; e

c) insegurança jurídica, diante do fato de o número de recursos providos pelos Tribunais ser expressivo.

As assertivas não se sustentam, tampouco tem respaldo em dados empíricos.

Não há irreparáveis prejuízos ao executado/apelante tutelado pela decisão do Tribunal. A ausência de efeito suspensivo da apelação possibilitará, apenas, a execução provisória do julgado, com todos os condicionamentos a ela inerentes (responsabilidade objetiva do exequente, prestação de caução para fins de levantamento em dinheiro e prática de atos de expropriação, restabelecimento das partes ao status quo ante no caso de provimento do recurso, etc.), os quais preservam, suficientemente, o apelante/executado (vide art. 475-O do CPC e art. 534 do Projeto/Câmara). Ademais, sempre existe a possibilidade de se obter, em casos de risco de dano, o efeito suspensivo da apelação perante o próprio juiz da causa ou Tribunal (agravo, cautelar, etc.).

Como não há, também, incerteza pela ausência de referendo da sentença pelo duplo grau de jurisdição. Não se subtrai do jurisdicionado a oportunidade de recurso ao segundo grau (que conforme hoje é consenso, não é regra absoluta). Apenas não se admite que, durante o processamento e julgamento desse recurso, seja o tutelado pela sentença de primeiro grau a vítima do tempo-processo.

Por fim, é falsa a afirmação de que o número de apelações providas pelos Tribunais é elevado, o que afasta a tese de insegurança jurídica e acaba com a justificativa lógica para a manutenção do efeito suspensivo automático da apelação.

As tabelas abaixo são representativas das apelações julgadas nos últimos 12 meses pelas duas principais Seções Cíveis do Tribunal de Justiça do Estado de SP (Público e Privado), que pela dimensão de sua movimentação judiciária no cenário nacional, pode perfeitamente ser utilizado como parâmetro para estudo.

PRIVADO 01

JULHO A DEZEMBRO DE 2012

JANEIRO A JUNHO DE 2013

Resultado do julgamento

APELAÇÕES

(colegiadas + monocráticas)

PERCENTUAL

APELAÇÕES (colegiadas + monocráticas)

PERCENTUAL

Deram provimento

4.980 + 93

17%

5.824 + 72

17,5%

Deram provimento parcial

5.404 + 31

18,3%

6.119 + 45

18,5%

Negaram provimento

19.057 + 236

64,7%

21.010 + 276

64%

TOTAL

29.801

100%

33.346

100%

PRIVADO 02

JULHO A DEZEMBRO DE 2012

JANEIRO A JUNHO DE 2013

Resultado do julgamento

APELAÇÕES

(colegiadas + monocráticas)

PERCENTUAL

APELAÇÕES (colegiadas + monocráticas)

PERCENTUAL

Deram provimento

6.961 + 253

22,1%

7.014 + 454

21,4%

Deram provimento parcial

6.820 + 252

21,8%

7.306 + 317

22%

Negaram provimento

17.827 + 466

56,1%

18.778 + 931

56,6%

TOTAL

32.579

100%

34.800

100%

PRIVADO 03

JULHO A DEZEMBRO DE 2012

JANEIRO A JUNHO DE 2013

Resultado do julgamento

APELAÇÕES (colegiadas + monocráticas)

PERCENTUAL

APELAÇÕES (colegiadas + monocráticas)

PERCENTUAL

Deram provimento

4.965 + 96

18,5%

5.071 + 98

19%

Deram provimento parcial

5.617 + 49

20,8%

5.473 + 40

20,3%

Negaram provimento

16.286 + 344

60,7%

16.040 + 426

60,7%

TOTAL

27.357

100%

27.148

100%

PÚBLICO

JULHO A DEZEMBRO DE 2012

JANEIRO A JUNHO DE 2013

Resultado do julgamento

APELAÇÕES (colegiadas + monocráticas)

PERCENTUAL

APELAÇÕES (colegiadas + monocráticas)

PERCENTUAL

Deram provimento

10.838 + 2.918

15,2%

22.368 + 2.157

21%

Deram provimento parcial

10.025 + 834

12%

17.482 + 925

15,7%

Negaram provimento

59.248 + 6.678

72,8%

67.763 + 6.107

63,3%

TOTAL

90.541

100%

116.802

100%

Observe-se das tabelas que nas seções cíveis do TJSP, o número de apelações integralmente providas gira em torno de 15,2% a 22,1%, representativo, portanto, de 18,7% (média ponderada) do total julgado (com destaque para a Seção de Direito Público, com percentual de reforma no 2º semestre de 2012 em 15%). Note-se que o número de provimentos parciais das apelações (geralmente para alterar valores indenizatórios por danos morais, índices de juros, correção e seus termos iniciais) ocorre entre 12% a 22% das apelações julgadas, o que corresponde, em uma média ponderada, a aproximados 17% do total. Fácil concluir, portanto, que do total de apelações julgadas no 2º semestre/2012 e 1º semestre/2013, 65% delas – com picos de 72,8% no 2º semestre de 2012 na Seção de Direito Público - são improvidas, sendo que as outras 17% (média) sofrem alterações pontuais (provimentos parciais).

Não faz o mínimo sentido, por isso, que 82% das partes beneficiadas pela sentença de primeiro grau (recursos improvidos ou providos parcialmente) – ou mesmo os 65% em uma análise menos otimista dos dados (só as apelações improvidas) -, tenham subtraído o direito de executar provisoriamente a sentença, sob o inexplicável argumento de que é necessário preservar a segurança jurídica dos 18% (recursos providos) – 30% (recursos providos e parcialmente providos) -, das partes que obtém êxito nas apelações interpostas. A regra geral deve, sempre, privilegiar e promover a tutela da maioria, não da minoria excepcionalmente tutelada pela 2ª instância (já adequadamente protegidas pelas regras que informam a execução provisória).

A busca por um (pseudo) consenso político para aprovação do projeto não pode servir de escusa para que a versão Câmara do novo CPC mutile a reforma mais esperada dos últimos anos; aquela que permitirá ao titular do direito já reconhecido em primeiro grau antecipar medidas executivas na pendência da apelação; que inibirá, naturalmente, a prática recursal protelatória de quem lucra com o tempo-justiça (especialmente as instituições financeiras).

Espera-se, então, que na fase sucessiva do tramitar do projeto (retorno ao Senado), os Senhores legisladores ouçam a voz da academia e tenham bom senso e coragem suficientes para restabelecer a regra da auto-executoriedade da sentença de 1º grau (prevista em todas as versões anteriores do projeto), extinguindo a regra da suspensividade automática da sentença apelável supreendentemente lançada na versão Câmara do projeto. Se o que queremos é um novo CPC que, realmente, possa contribuir para a efetividade da Justiça, essa é, sem dúvida alguma, uma reforma irrenunciável e que vale, por si só, tanto ou mais do que todo o novo diploma.

_______________

* Fernando da Fonseca Gajardoni é Professor Doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da USP – Ribeirão Preto, Doutor e Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP, e juiz de Direito no Estado de SP.

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