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Biografias: entre o certo e o certo

O ato de biografar não se traduz em interceptar escutas telefônicas, teleobjetivar recintos privados, esconder-se em armários alheios ou qualquer outra forma de corromper.

14/11/2013

Em qualquer dicionário da língua portuguesa, “bio” é termo designativo de vida, assim como “grafar” é termo designativo de escrever. Pelo que biografar é escrever a vida de outrem. Não escrever a própria vida, porque, aí, o termo adequado é autobiografia. Mais precisamente, biografar é conhecer a trajetória de vida de uma terceira pessoa para o fim de divulgação. Vida em isolamento ou do indivíduo consigo mesmo (intimidade é isso); vida em interação com pessoas mais próximas em afeto e confiança (esse o conceito de privacidade); vida com os seres humanos em geral (vida social genérica).

Daqui já se percebe que biografar é atividade que implica pesquisa, estudo, análise, entrevistas, relato metódico ou esquematizado, publicação. Mescla de literatura com historiografia. Atividade intelectual, por consequência, na medida em que exigente de um tipo de elaboração mental que o vulgo bem denomina de queima de pestanas ou emprego de massa cinzenta. A demandar por parte do biógrafo “acesso à informação”, “manifestação do pensamento” e, naturalmente, “expressão da atividade intelectual (...) e de comunicação”. Que são direitos constitucionalmente adjetivados de “Fundamentais” e de pronto qualificados como conteúdos do princípio da “liberdade” (Título II, art. 5º, este pelo seu caput e incisos IV, IX e XIV). Liberdade, acresça-se, que a mesma cabeça do art. 5º da Constituição concede sob o timbre da “inviolabilidade”.

Acontece que assim também sob a marca registrada da fundamentalidade e da inviolabilidade foi que a nossa Constituição conferiu o direito subjetivo à “intimidade”, “vida privada”, “honra” e “imagem” das pessoas (inciso X do mesmíssimo art. 5º). Com o que se tem um confronto de direitos subjetivos que obriga o intérprete a conhecer o modo pelo qual a própria Constituição conciliou as duas categorias de dispositivos. Espécie de opção entre o certo e o certo, no pressuposto de que ela, Constituição, se deseja aplicada em todos os seus dispositivos. Mas aplicada por modo a sacrificar a amplitude desse ou daquele direito que, sem tal redução de conteúdo, terminaria por nulificar a aplicabilidade do outro, ou até de muitos outros. Caso típico da censura prévia ou da antecipada autorização de quem se veja como alvo de empreitada biográfica, pela óbvia razão de que: a) censura prévia é trancafiar numa só masmorra o pensamento, a informação e toda forma de expressão intelectual, científica, artística e de comunicação, na linguagem mesma da Constituição; b) autorização prévia para se deixar biografar é mal disfarçada autobiografia, não por acaso rotulada de “biografia chapa-branca”.

Por esse prisma de análise, penso que a nossa Magna Carta optou pela redução de conteúdo do segundo bloco de direitos (intimidade, vida privada, honra e imagem). Primeiro, porque o dispositivo que assegura a liberdade de manifestação do pensamento: a) só proíbe “o anonimato” e nada mais; b) vem antes do “direito de resposta” e de “indenização por dano material, moral ou à imagem” (incisos IV e V, respectivamente). Depois, porque essa mesma ordem de precedência topográfica favorece o direito de expressão perante, justamente, aquele segundo bloco de direitos (incisos IX e X, respectivamente). Direito de expressão que é de ser desfrutado “independentemente de censura ou licença”. E quanto ao acesso à informação, cuida-se de direito subjetivo tão constitucionalmente protegido que se faz acompanhar do resguardo do “sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional” (parte final do inciso XIV do multicitado art. 5°). Sabido que a informação é o mais idôneo meio de uma consciente comunicação inter-subjetiva e com a totalidade do corpo social.

Há, portanto, uma ponderação diretamente constitucional entre os dois blocos de direitos fundamentais. Ponderação que leva ao entendimento de que biografar, por não ser descrição de nada por acontecer, mas de coisas já acontecidas, é atividade de quem apenas descreve o modo pelo qual o biografado viveu. O que pode alcançar a informação da maneira pela qual ele, biografado, já fez o concreto uso de sua intimidade e vida privada. Noutros termos, o ato de biografar não se traduz em interceptar escutas telefônicas, teleobjetivar recintos privados, esconder-se em armários alheios ou qualquer outra forma de corromper, conspurcar, interromper ou obstruir o direito que assiste à pessoa humana de desfrutar de uma vida íntima e manter relações de natureza privada. Nada disso! Biografar é a descrição do que vem depois desse desfrute, materializado por um modo a que o biógrafo teve acesso. Contudo, se quem se dispõe a elaborar uma biografia descambar para o campo da invencionice, ou então da coleta de dados tão maliciosamente distorcidos a ponto de ofender a honra do biografado, além de causar a este prejuízos de ordem “material, moral ou à imagem”, o que pode ocorrer em termos jurídicos? Bem, o que pode ocorrer não é senão a aplicabilidade das normas constitucionais que falam do direito de resposta e de indenização. Além daquelas que legitimam o código penal a criminalizar condutas caluniosas, difamatórias e injuriosas (que são crimes, exatamente, contra esse valor jurídico-constitucional da honra das pessoas).

Esta a interpretação que me parece conferir o máximo de funcionalidade a um tipo de sistema constitucional, como o nosso, que faz da liberdade de expressão a maior expressão da liberdade.

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* Carlos Ayres Britto, ex-presidente do STF, do CNJ e do TSE, é doutor em Direito Constitucional pela PUC-SP e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.


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