O ministro Celso de Mello dissipou durante 2 horas e 5 minutos todo seu brilho para encerrar a primeira fase da ação penal 470. Brandindo com segurança e agilidade ferina a navalha da lógica formal (A=A) o decano cortou o nó górdio dos embargos infringentes, mas não o desatou, não o desfez racionalmente, como era de esperar de sua fama como jurista. Seu brilho inegável foi o brilhantismo do virtuose, do pianista ou violinista, cujo domínio técnico compensa a falta de inspiração e originalidade. No caso do decano, seu alto grau de conhecimento técnico e sua agilidade de comunicação só serviram para ofuscar a grave falta de maturidade.
Em outras palavras: sua leitura dos textos legais não poderia ser melhor e mais coerente. Inspirado no formalismo da lógica foi exemplar. O problema é que a lógica formal limita-se a dizer o óbvio (A=A). Não é progressiva, não acrescenta nada de novo. O que faltou no seu longo discurso, além da brevidade, foi outro fator, aquela centelha de inspiração do intérprete que não se satisfaz com a mera e aborrecida leitura dos textos legais, sem vislumbrar por trás do texto legal outra leitura mais essencial, que é a leitura do mundo. O grande educador Paulo Freire, tão caluniado, ensinou, cunhando frase imortal, que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”. E que é a leitura do mundo a fonte de sentido que ilumina a leitura da palavra. Ou seja: no mundo nada é estanque, tudo está ligado com tudo. Não basta ver a árvore ignorando a floresta. É esta que explica cada uma das árvores de que ela se compõe.
Não tem sentido citar a lei, o regimento, a jurisprudência, a doutrina, cotejando seus dizeres, sem regredir ao contexto no qual nasceu o fato, com seus antecedentes e suas consequências, em suma, o horizonte do mundo, o âmbito no qual cresce e aparece o homem e tudo o mais que o cerca. Por isso também, a lógica formal, que é abstrata e redutiva, abstraindo e isolando as coisas do mundo, não serve ao direito. A lógica que melhor acompanha o percurso sinuoso e imprevisível da realidade e que melhor serve ao direito, é a lógica holística (do grego "holikós", total, universal), que vai do todo para a parte, à qual faz alusão o ministro emérito do STF, Ayres Britto.
Pois é no bojo do mundo, neste vasto mundo em que vivemos, que se constitui e radica a opinião pública, da qual alguns cautos ministros têm verdadeiro pavor. A opinião pública não se confunde com o chamado "clamor das ruas", ocasional e efêmero, sem a menor estabilidade. A opinião pública vem a ser o consenso sólido e duradouro da sociedade sobre quem deve mandar, no qual se assenta todo poder político, toda autoridade desde que o mundo é mundo, em qualquer tempo e lugar, entre gregos, troianos, romanos, ingleses e botocudos (Ortega). Com mais razão, nenhuma Constituição moderna, de feitio democrático, pode ser contraposta à opinião pública. Declaram já no pórtico que todo poder emana do povo e em seu nome será exercido.
Por decisão colegiada, tomada por maioria, no dia 18 de setembro de 2013, o Supremo Tribunal Federal optou por aceitar os embargos infringentes oferecidos por um grupo de réus condenados na ação criminal 470, o mensalão. Os embargos infringentes quebram a unidade decisória do Supremo, equivalendo ao duplo grau de jurisdição a partir de agora admitido por aquela alta Corte. E o duplo grau de jurisdição importa em reconhecer que o Supremo perdeu sua capacidade de decisão em última instância, ou seja, sua própria soberania. Suas sentenças condenatórias podem, de agora em diante, ser revistas pelo próprio colegiado que as decretou. Portanto, já não constituem decisões em última, e sim em penúltima instância. Para ser de última instância, a decisão teria que ser também definitiva, sem admitir sua modificação virtual no futuro. Definitiva e irreformável. Ao reconhecer que suas decisões podem ser revistas por ele mesmo, o Supremo perdeu a soberania, e nivelou-se aos tribunais ordinários disseminados em todo o país. Na verdade, o Supremo cometeu suicídio institucional, sem volta possível.
O duplo grau de jurisdição infiltrando-se no Supremo fulmina de morte sua soberania, que é o direito de decisão em última instância. Suprime de vez a razão de ser do Supremo, que tem este nome por ser a instância mais alta, a mais elevada da decisão jurisdicional, acima da qual não existe nenhuma outra. E ao Supremo não é dado alçar-se sobre si mesmo, para corrigir-se, porquanto, ao se pronunciar, ele diz a última palavra acerca da questão em curso. Alçar-se acima de si mesmo seria desde logo reconhecer-se como penúltima e não a última instância.
Roma locuta, causa finita, Roma falou, a questão morreu. É neste vetusto princípio que se apóia a ação do Supremo. Também, em estilo mais moderno, poderíamos lembrar aquele point of no return que se diz do foguete que sobe acima da ação da gravidade e por isso se livra de voltar para a Terra. As decisões do Supremo, por serem últimas, definitivas e irreformáveis, guardam a mesma característica dos foguetes espaciais, estão impedidas de retornar ao plano inferior.
A consequência política que se coloca com o fim do Supremo, é que sem este não há justiça firme, segura e estável. E sem as garantias da justiça não é possível a existência da democracia. That is the question.
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* Gilberto de Mello Kujawski é procurador de Justiça aposentado, escritor e jornalista.