Francisco deixou saudades. Destaco um ponto por ele abordado, sobre o casamento monogâmico. É necessário um preâmbulo. O judaísmo do Deus-Pai (Javé) nasceu em tribos patriarcais e poligâmicas. A poligamia era natural e a separação também; a da mulher de marido ferido na genitália (incapaz de fecundar) ou impotente mesmo inteiro; a do homem de mulher infiel ou por simples insatisfação (repúdio de esposa ou concubina). No cristianismo das primeiras fontes, pregado pelo Deus-Filho (Cristo) nada encontramos condenando a poligamia, comum na cultura em que nasceu e viveu. De passagem, é estranhíssimo o ocultamento da vida privada de Jesus. Sabemos dos avós, pais e irmãos, mas pouco sobre ele.
A frase de Mateus 19:6 é interpretação posterior da Igreja já romanizada; visava a conter atos de repúdio das mulheres. Jesus não propôs igrejas e hierarquias; pregava o iminente fim do mundo e a chegada do Reino dos Céus na Terra. "Em verdade vos digo que não passará essa geração sem que todas essas coisas aconteçam" (Mateus 24:34). O fim dos tempos chegara. Para que estruturas religiosas permanentes? Vigiai, dizia o pregador apocalíptico aos seus contemporâneos na Judeia (Mateus 24:42). Segundo o Velho Testamento, com o assentimento de Javé (o Deus-Pai) Salomão teve 700 esposas e 300 concubinas (1 Reis 11:3 e 2 Samuel 5:13), ele próprio filho de Betsabá com Davi, que mandara matar Urias, o marido dela, ordenando que o pusessem na frente de uma batalha da qual se ausentou. O Deuteronômio 21:15-16 regula a divisão da herança entre filhos de várias mães. O Levítico 18:18 proibia tomar a irmã de quem já fosse esposa para lhe opor como rival. O Talmude aconselha, por motivos práticos, o limite de quatro esposas, no que foi seguido por Maomé (preocupado com a situação dos órfãos e viúvas desamparadas. Ele era órfão e casou-se uma só vez). A esposa de um judeu falecido, sem filhos, obrigava o irmão, mesmo tendo família, a tomá-la como esposa e a engravidá-la.
Os judeus e os cristãos (quase todos judeus no 1º século d.C.) foram obrigados a adotar a monogamia pelos romanos, cuja lei civil vigia em todo o império, inadmitindo o casamento poligâmico por razões econômicas e político-administrativas. A lei romana dava autoridade ao pater familiae e à mulher o comando da casa, cabendo-lhe velar pelo fogo sagrado do lar. Os romanos criaram o patriarcado monogâmico, adotado em todo o Império. Santo Agostinho testemunhou: "Agora, em nosso tempo, e de acordo com o 'costume romano' não é mais permitido tomar uma outra esposa" (dos bens do matrimônio – vol. 16). Os judeus até o século 11 d.C. eram poligâmicos, pelo menos os "askenasis". Quem proibiu a poligamia entre eles, jamais obrigatória, foi o rabino Gershon. Os sefarditas foram além. Judeus ricos em terras islâmicas, principalmente na Espanha, praticavam a poligamia, pois a convivência entre os credos era pacífica. A Igreja Católica Apostólica Romana, numa época em que o Império sofria com a anarquia, inclusive nos costumes, e o assédio dos bárbaros, declarou o casamento monogâmico como sacramento, para reforçar a lei civil e, em alguns lugares, para substituí-la, daí o casamento religioso e os famosos "batistérios", a substituir os registros civis de nascimento dos romanos, em processo de desorganização.
A sexualidade e a reprodução, de um lado, e a criação dos filhos e a família são fatos biológicos e sociais, depois regrados pelas leis e preceitos religiosos, com variações na história. Valentiano I no século 4 d.C. autorizou os cristãos a terem até duas esposas. Carlos Magno, o Imperador do 1º Sacro Império Romano Germânico (após a queda de Roma), praticava a poligamia. Muitos Papas eram casados. Martinho Lutero confessou não poder proibir um homem de ter mais de uma esposa, isso não contradizia as escrituras.
Esse preâmbulo mostra que o matrimônio é uma categoria sociológica sensível ao evolver das civilizações, passa longe de ser um dogma religioso. Houve um tempo em que os padres casavam-se. O casamento monogâmico indissolúvel é um anacronismo da Igreja Católica, visto nos países protestantes do Norte europeu, mais desenvolvidos, como atrasado, quase medieval. O que a Igreja por conveniência inventou pode, mediante exegese, desinventar ou atenuar. Padres não podem casar-se, mulheres não podem reger os fiéis, divorciados não podem comungar. Esses homens vestidos de preto com votos de uma castidade que acaba desviada para coisas lúgubres espelham um mundo que já passou. Francisco, vestido de branco, é uma lufada de ar na cristandade. A sua lucidez e imensa simpatia gritam que o fenômeno religioso e a fé são feitos de coisas essenciais e acidentais. Essencial é a relação íntima com Jesus, a teologia do amor e o mecanismo da salvação. O resto é acidental e comporta mudanças. Todo o apoio a Francisco contra a fria Cúria Romana. Rezem pelo Papa. Ele merece.
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* Sacha Calmon é advogado do escritório Sacha Calmon - Misabel Derzi Consultores e Advogados.