1 – O processo, o relógio, o drama.
É de impressionar o paradoxo que se estabelece entre o processo e o tempo. Tais quais faces opostas de uma mesma moeda, parecem jamais se justapor, em que pese integrem uma só realidade.
O tempo e o processo mantêm entre si relacionamento de tensão perene, como que eterna e reciprocamente insuficientes. Vivem como cônjuges divorciados que habitam o mesmo lar.
Tempo e processo definitivamente hoje parecem não se bastar.
O que aos leigos parecem horas, dias, meses, aos que têm o direito como mister são meros segundos, tamanha a distrofia que a letargia forense provoca no conceito de tempo. Pouco tempo, em termos processuais, equivale a poucos anos.
As frações de tempo que se apresentam tão extensas aos leigos afiguram-se, para os que lidam com o direito, brevíssimos lapsos cronológicos. Corrosivos lapsos temporais, diga-se, dado que (i) ou fazem agigantar o litígio, (ii) ou fazem fenecer a esperança de obtenção de uma solução.
A dramaticidade do cenário forense atualmente experimentado tornou o tempo uma quimera do mundo jurídico. A volúpia com que se almeja uma providência liminar não raro sobrepõe-se à expectativa pela decisão final. Ao jurisdicionado de hoje mais seduz o oportunismo temporal ínsito às liminares do que a concreção de uma quase intangível decisão definitiva. Parece-nos que nunca foi tão contumaz como é hoje a substituição de litigantes vivos por espólios, talvez o maior signo de insuficiência do processo como mecanismo de pacificação social (mormente se a contraparte for a Fazenda Pública).
Está-se diante, é claro, de cenário de razoabilidade zero.
Em suma, tudo urge em juízo.
Neste passo, a abreviação do tempo de tramitação processual vem atuando como a força motriz das reformas processuais. Figuras como o art. 285-A do CPC (o chamado "julgamento antecipadíssimo da lide"), o julgamento monocrático dos recursos pelo relator e a repercussão geral como requisito de admissibilidade dos recursos extraordinários exprimem com bastante robustez qual o vetor que vêm conduzindo as alterações da legislação processual civil brasileira.
Dentre estas modificações recentes pelas quais passou o CPC, destacamos a que nos parece mais bela, mais relevante, conquanto não percebamos, ainda, amplitude em sua aplicação: a inserção do § 4º no art. 515 do CPC.
Predito dispositivo legal atua como autêntica "norma de inclusão", no sentido de permitir a correção, pelo próprio Tribunal e sem a morosa remessa ao primeiro grau de jurisdição para tanto, de nulidades sanáveis verificadas nos recursos. Em que pese esteja inserta em artigo do CPC que diga respeito à apelação, doutrina abalizada (como se verá adiante) sustenta a idéia de que se trata de norma regente dos recursos como um todo, e nos parece absolutamente escorreita tal convicção.
A beleza desta norma reside no seu espírito de flexibilização de alguns imotivados rigores formais verificados nos recursos. E, como cediço, os recursos têm experimentado cada vez maiores restrições formais em sua tramitação, até mesmo como uma equivocada tentativa de contenção do volume de impugnações recursais que ascendem aos tribunais. Fatores absolutamente contornáveis como a complementação de peças facultativas em agravos de instrumento, eventuais imprecisões no preenchimento de guias de recolhimento de despesas recursais e até mesmo questionamentos acerca da legibilidade do carimbo de protocolo aposto aos recursos (como se o jurisdicionado pudesse controlar os matizes das tintas empregadas pelo Judiciário nas chancelas de protocolo de peças) vêm assumindo foros de muralhas obstativas do trâmite dos recursos.
Nota-se, ainda, certa exacerbação da aferição formal dos recursos comparativamente ao trâmite processual de primeiro grau: no âmbito do recursos, temos sentido que a jurisprudência não é dada a facultar às partes correções de problemas formais, o que compõe um evidente descompasso com o próprio espírito de nosso CPC, que admite até mesmo a correção formal da mais relevante peça processual, mediante emenda da petição inicial.
E, convenhamos, ao surgimento de cada óbice de cunho formal, o jurisdicionado vê-se compelido a insurgir-se mediante a interposição de recursos, e assim fomenta-se a roda vida do congestionamento judicial, com o que se alonga o tempo dos processos.
Se, como asseveramos acima, a maioria das recentes reformas processuais vem na esteira da restrição de acesso ao Judiciário como modo de aceleração, o § 4º do art. 515 do CPC comporta-se em sentido absolutamente diverso: trata-se de norma que, diante das medidas que franqueia aos órgãos jurisdicionais recursais, está a permitir a supressão de óbices plenamente sanáveis sem que (i) ocorra a fortiori a conversão em diligência do julgamento para a remessa ao primeiro grau de jurisdição a fim de haver a correção da tal nulidade sanável e, também, (ii) prevenindo-se a interposição de mais e mais recursos em face de decisões arrimadas em critérios mera e excessivamente formais (legibilidade de cópias e de carimbos sem que se permita sua substituição, etc.).
Na medida em que permite a "descomplicação" do trâmite recursal, permitindo o contorno ou a correção de alguns problemas de ordem formal que sejam sanáveis, o dito § 4º do art. 515 do CPC evidentemente atua como elemento racionalizador do tempo processual sem atuar como fonte de restrição de acesso ao Judiciário.
É por tais razões que manifestamos firmemente nosso posicionamento no sentido de que a norma em apreço deve ser apreendida como regra fomentadora do princípio do aproveitamento dos atos processuais, no sentido de se extrair do processo o maior grau possível de utilidade, evitando-se o incremento de atividade jurisdicional de cunho meramente procedimental.
A se permitir sem preconceitos que nulidades sanáveis sejam debeladas pelo próprio órgão recursal, ganha-se tempo processual, ganha-se em termos de utilidade processual, racionaliza-se a duração do processo expiando-se o lamentavelmente iterativo “cale a boca” dos decretos de inadmissão de recursos por nulidades totalmente corrigíveis.
2 - A razão de ser do dispositivo legal
Em 2006, com a entrada em vigor da lei 11.276/06, modificaram-se, por acréscimo ou por mera alteração, as redações dos arts. 504, 506, 515 e 518 do CPC, respeitantes aos recursos cíveis, especialmente à apelação (no caso dos arts. 515 e 518).
Na específica hipótese do art. 515 do CPC, à sua redação acresceu-se o § 4º, que determinou a possibilidade de o tribunal, por ocasião do julgamento da apelação, conhecer de nulidades sanáveis, determinando seu saneamento mediante renovação ou realização do ato processual, a isso se seguindo, quando possível, o prosseguimento do julgamento da apelação.1
A ratio essendi dessa inovação legislativa tem a ver com o objetivo de se "conferir eficiência à tramitação dos feitos e evitar a morosidade" que hoje em dia caracteriza a atividade jurisdicional. Para a reforma da Justiça, "faz-se necessária a alteração do sistema processual brasileiro com o escopo de conferir racionalidade e celeridade ao serviço de prestação jurisdicional, sem, contudo, ferir o direito ao contraditório e à ampla defesa" (é nosso o destaque).2
O que se pretende, inegavelmente, é que possa o tribunal, identificando a ocorrência de vício processual sanável em grau recursal, desenvolver atividade jurisdicional corretiva desse vício, sem que seja necessária a determinação de retorno dos autos à instância monocrática para tal finalidade. A celeridade e a economia processuais são, à evidência, as balizas dessa inovação processual.
Neste passo, parece-nos, por tudo quanto exposto acima, que se operou sensível atenuação da parte final do parágrafo único do art. 560 ("ordenando a remessa dos autos ao juiz, a fim de ser sanado o vício") pelo § 4º do art. 515, ambos do CPC: no primeiro, dispõe-se ser necessária a remessa dos autos à instância monocrática com a finalidade de sanação de vícios identificados pelo tribunal, o que é absolutamente dispensável atualmente, justamente por conta do disciplinado no § 4º do precitado art. 515, autorizador de tal correção no trâmite perante o próprio tribunal.
Não nos parece mais ser absoluta, portanto, a necessidade de remessa dos autos ao primeiro grau sempre que se converter o julgamento em diligência, como ocorria tradicionalmente.
3 - A interpretação do art. 515, § 4º, do CPC
Volvendo nosso foco de atenção para a aplicabilidade do dispositivo legal em apreço, algumas ponderações merecem ser lançadas, de modo que se possa delimitar a esfera de abrangência da norma em questão.
Neste passo, uma primeira palavra que merece ser dita respeita ao conceito das nulidades sanáveis a que se refere o primeiro trecho do § 4º do art. 515 do CPC.
Em contida síntese, tem-se que as nulidades processuais são classicamente divididas em sanáveis e insanáveis, conforme seja possível sua convalidação, ou não, no desenvolvimento do processo.
Nesse sentido, pode-se afirmar que há gradação de nulidades processuais, considerando a lei que algumas nulidades processuais são mais nocivas que outras. Desse escalonamento organizacional das nulidades decorre que vícios processuais que sejam, por assim dizer, menos agressivos às formas preestabelecidas no CPC comportam prorrogação, ao passo que vícios que importem violação mais intensa aos ditames do CPC não admitem tal convalidação.
Essa circunstância de existirem nulidades, portanto, de menor e maior gravidade faz com que exista, por conseguinte, um regime próprio de provocação das nulidades: as nulidades ditas relativas (atinentes a normas de direito processual de caráter disponível) têm prazo para sua argüição; d’outro turno, as nulidades consideradas absolutas não se submetem à preclusão, vale dizer, são argüíveis (pelas partes ou pelo juiz) em qualquer tempo e grau de jurisdição, dado que com sua persistência maculam a própria higidez da atividade jurisdicional.
São muitas vezes comuns confusões relativamente ao tema das nulidades; o assunto, a bem da verdade, realmente apresenta-se multifacetado. Há, contudo, um aspecto que não comporta vacilações, especialmente se se pretende atribuir ao § 4º do art. 515 do CPC sua real força: não só as nulidades relativas são sanáveis, bem como não só as nulidades absolutas são insanáveis.
De fato, se há esta natural tendência de se entender expressões "sanável" e "insanável" como simetricamente relacionadas, respectivamente, às nulidades relativas e absolutas, fato é que tal concepção cai por terra diante da constatação de que também nulidades de caráter absoluto são sanáveis.
Tal asserção torna-se mais palatável ao se revisitarem os conceitos de nulidades relativas e absolutas.
As nulidades processuais relativas caracterizam-se por sua origem em normas nas quais prevaleça o interesse das partes litigantes: são, dessarte, normas de direito disponível pelas partes, sendo que sua violação não eiva o processo de modo que se considere viciada a própria atividade jurisdicional.
Em geral, as normas processuais instituintes de nulidades relativas não contêm cominação de nulidade: caso o ato processual seja praticado por outra forma que não aquela prevista pela lei processual, ainda assim será considerado válido, desde que se atinja sua finalidade. A expressão mais acabada dessa realidade vem consignada no art. 244 do CPC.3
A respeito das nulidades relativas, diga-se também que contam com prazo para sua argüição (e às vezes, contam também com forma específica, caso da incompetência relativa, argüível por exceção de incompetência). Caso não haja argüição da nulidade relativa no momento oportuno (prazo de defesa do réu, por exemplo, nas hipóteses de incompetência relativa), se dará a prorrogação da nulidade relativa, id est, haverá sua convalidação, a teor do art. 245, caput, do CPC.4
No que é pertinente às nulidades absolutas, cediço que são as violações de normas processuais de natureza indisponível, relacionadas às partes ou ao próprio órgão jurisdicional. A ocorrência de nulidade absoluta no curso do processo é impassível de preclusão, vale dizer, jamais são convalidáveis as nulidades absolutas, porquanto inexiste prazo preclusivo para que as partes ou para que o órgão jurisdicional promova a suscitação da nulidade absoluta e se dê sua correção.
As nulidades absolutas não se sujeitam a qualquer sorte de prazo preclusivo para que se dê sua argüição, vale dizer, não se convalidam no curso do processo, dado não se submeterem ao regime da preclusão temporal. É o que consta do parágrafo único do art. 2455 e do § 3º do art. 2676, ambos do CPC.
De conformidade com o texto do § 4º do art. 515 do CPC, são passíveis de cognição pelo tribunal as nulidades “sanáveis”.
Pois bem: qual a extensão da expressão nulidades “sanáveis”, de modo que seja possível a atividade saneadora respectiva por parte do tribunal? É o que se aborda a seguir.
4 - Nulidades absolutas são sanáveis?
Não raro associa-se a expressão "nulidades sanáveis" com as nulidades relativas, como se apenas estas admitissem saneamento (correção) no âmbito do processo civil. Nesse sentido clássico de pensamento, as nulidades absolutas seriam consideradas insanáveis.7
Considerando-se tal linha de entendimento, tão-só as nulidades relativas seriam passíveis de atividade judicial de ofício em grau recursal.
A defesa dessa concepção, contudo, geraria grande limitação da esfera de abrangência da norma inserida no § 4º do artigo 515 do CPC, dado que poderiam ser corrigidas (ou consertadas, conforme referência de Wambier, Talamini e Correia de Almeida8) na própria segunda instância (sem necessidade de remessa dos autos ao primeiro grau para saneamento da nulidade) apenas as nulidades relativas.
Aqui, convém registrar de modo bastante demarcado ser este o relevo da adequada conceituação do que vêm a ser "nulidades sanáveis": se a possibilidade existir atividade judicial de ofício em grau recursal no sentido de serem detectadas as nulidades absolutas (relembre-se o teor do § 3º do art. 267 do CPC), não constava do CPC qualquer previsão, anteriormente ao § 4º do art. 515, de possibilidade não só de cognição das nulidades processuais (de ofício as absolutas, por provocação das partes as relativas), mas também de determinação de que no próprio segundo grau de jurisdição desenvolva-se atividade jurisdicional saneadora da nulidade, seja para determinar a realização de ato que não foi praticado em primeiro grau, seja para determinar a repetição de ato que, em que pese tenha sido praticado, não veio ao mundo mediante observância dos preceitos legais processuais.
A confusão que pensamos existir advém do indevido baralhamento do conceito de nulidades sanáveis e insanáveis com o de nulidades convalidáveis e não convalidáveis.
Entendemos que o fato de serem convalidáveis ou não as nulidades tem a ver não com sua sanabilidade, senão com a circunstância de existirem certos vícios processuais que, se não forem suscitados pela parte interessada, passam a ser "não-vícios", porquanto passíveis de prorrogação.
O tempo processual, no que tange às nulidades convalidáveis, assume função curativa e convola vício processual em “não-vício” processual. O exemplo rematado dessa situação advém da própria incompetência relativa, que se não argüida prorroga-se, convolando-se em competente o juízo incompetente territorialmente ou em razão do valor.
A expressão sanabilidade (nulidades sanáveis ou insanáveis), d’outro modo, não se vincula à possibilidade de convalidação ou não convalidação (prorrogação ou não-prorrogação), porém à possibilidade de correção do ato viciado.
Essa possibilidade de correção do ato viciado pode operar-se indistintamente tanto a respeito dos atos absolutamente nulos quando no que se refere aos atos relativamente nulos.
Em confirmação ao que ora se afirma, tome-se como exemplo a seguinte gama de nulidades absolutas que admitem saneamento (são, portanto, sanáveis): ausência de instrumento de mandato (acarretando falta de pressuposto processual de existência, qual seja, capacidade postulatória), insuficiência de recolhimento de preparo recursal, falta de assinatura de petição por advogado, determinação de remessa de recurso à instância superior sem intimação para apresentação de contra-razões (lesão ao princípio do contraditório e da ampla defesa) etc.
Perceba-se que, mesmo lavrando-se rápido rol de hipotéticos vícios processuais de caráter absoluto que podem ocorrer ao longo do processo civil, é perfeitamente admissível seu saneamento, empregando-se tal termo no sentido de ser factível sua correção e prosseguimento do feito.
Nesta toada, vê-se às claras que a expressão "nulidades sanáveis" contida no precitado § 4º do art. 515 do CPC espraia-se às nulidades absolutas e às nulidades relativas, repita-se, indistintamente, isto é, sem que se adstrinja exclusivamente às nulidades relativas.
Nulidades convalidáveis, neste diapasão, são nulidades prorrogáveis (relativas, portanto). Nulidades sanáveis são nulidades corrigíveis, independentemente de seu caráter relativo ou absoluto.
5 - A aplicação do art. 515, § 4º, a outros recursos cíveis além da apelação
Conforme já observado por comentaristas das reformas estabelecidas pela lei 11.276/06, a inserção de um § 4º ao art. 515 do CPC no sentido de se permitir a correção de nulidades sanáveis em grau recursal deve ser entendida como extensível a todos os recursos cíveis, dado tratar-se de uma regra geral dos recursos.
O fato, como observa Cássio Scarpinella Bueno, é que, a despeito de constar no texto do art. 515, § 4º, que, "cumprida a diligência (correção da nulidade sanável), sempre que possível prosseguirá o julgamento da apelação"9, deve tal dispositivo de lei ter sua vigência ampliada para todas as demais atividades recursais, especialmente porque sua razão de ser (permitir a atividade judicante saneadora de nulidades sanáveis em grau recursal, em homenagem à celeridade da jurisdição) assim o exige e porque os demais recursos, além da apelação, igualmente compõem relevante manancial de hipóteses em que vícios de ordem procedimental podem ser conhecidos de ofício, e sanados pelo magistrado, permitindo-se o julgamento do recurso em seqüência.10
Como exemplo de outra disposição que, em que pese figurar exclusivamente no Capítulo III do Título X do CPC (destinado ao recurso de apelação, a princípio), é regra geral dos recursos, mencione-se a norma contida no art. 519 do CPC, determinante do relevamento da pena de deserção em caso de demonstração de justo motivo para tanto.
A demonstração, pelo recorrente, de justo motivo impeditivo do recolhimento de valores necessários ao processamento do recurso11 perfaz regra subsumível aos demais recursos cíveis, a despeito de constar expressamente como disposição típica do recurso de apelação.
6 - O prosseguimento do julgamento, quando possível
Em trecho final de sua redação, consta do § 4º do art. 515 do CPC que, "cumprida a diligência, sempre que possível prosseguirá o julgamento da apelação”.
Já registrada nossa convicção de que a regra sob comento aplica-se aos demais recursos cíveis e não exclusivamente à apelação, cumpre-nos avaliar qual a amplitude desta locução “sempre que possível" como condição para o prosseguimento do julgamento do recurso.
A nosso ver, o legislador utilizou-se da expressão "sempre que possível” como condição para o seguimento do julgamento recursal porque, por exemplo, pode ocorrer de, uma vez identificada a nulidade sanável, não se desincumbir a parte da realização ou renovação do ato de modo a corrigi-la. Nesta hipótese, ainda que tenha existido identificação de ofício de nulidade sanável e ainda que tenha o tribunal instado a parte à sua correção, não será possível o seguimento do julgamento recursal.
À guisa de exemplo, tome-se a situação da parte que, provocada a complementar o depósito do valor de preparo (CPC, art. 511), não o faz: estar-se-ia, aqui, diante de hipótese clara de impossibilidade de seguimento do julgamento da apelação.
Há que se observar, ainda, que a locução "sempre que possível" deve-se ao fato de que a nulidade sanável referida no § 4º do art. 515 do CPC pode ter sua correção empreendida de ofício pelo magistrado ou pode depender de ato da parte.
Podendo dar-se a supressão da nulidade sanável de ofício, evidentemente se segue o julgamento recursal após sua realização. É o que ocorre, por exemplo, quando o tribunal, tendo recebido o recurso de apelação sem contra-razões, afere que não a subida dos autos deu-se sem a necessária intimação da parte recorrida para contra-razões: a simples intimação, por iniciativa do tribunal, da parte recorrida para que responda ao recurso acarretará a correção da nulidade sanável.
De se contemplar, ainda, a possibilidade de a nulidade identificada pelo tribunal quando do julgamento recursal exigir a prática de atos processuais de competência exclusiva do primeiro grau de jurisdição.
Ad exemplum, imagine-se a hipótese de haver o tribunal, quando do julgamento da apelação, identificado que não houve intimação escorreita de litisconsorte acerca da sentença que lhe foi desfavorável: há evidente nulidade (na medida em que o litisconsorte não foi intimado da sentença), cuja correção (a intimação da sentença) e atos processuais seguintes devem ser praticados em primeiro grau de jurisdição, dada sua competência funcional para tanto (primeiro juízo de admissibilidade de eventual apelação interposta por este litisconsorte). Suprida a nulidade sanável em questão (o que deve ocorrer necessariamente em primeiro grau de jurisdição, por conta da competência exclusiva deste para o recebimento da apelação), os autos tornam ao tribunal para prosseguimento da apelação.
Em suma, a locução "sempre que possível" justifica-se pela circunstância de ser meramente potencial a supressão da nulidade sanável diretamente em segunda instância, seja porque a parte não logrou cumprir a determinação judicial de realização ou renovação do ato, seja porque o próprio tribunal não constitui o foro adequado para a atividade corretiva da nulidade sanável.
7 – Reflexo do § 4º do art. 515 do CPC nas custas recursais
Antes do vigor da Lei 11.276/06 (de que deriva o § 4º do art. 515), apenas era autorizada a complementação de preparo recursal, vedado o seu pagamento integral em momento distinto do da interposição. Em outras palavras, caso não houvesse ocorrido o pagamento do preparo (e aqui não se está cogitando de pagamento insuficiente), não se afigurava possível fazê-lo em outro momento, dado que o art. 511, § 2º, do CPC autoriza apenas a complementação do preparo “insuficiente”.
Com o advento do art. 515, § 4º, do CPC, em que se permite a correção de nulidades sanáveis em grau recursal, entendemos que custas recursais em sentido amplo (sejam custas de preparo, sejam custas de porte de remessa e retorno) não recolhidas não poderão mais obstar o processamento dos recursos de plano (dever-se-á conceder à parte faculdade para corrigir o problema das custas).
Deveras, considerando-se que eventual não pagamento de custas recursais compõe nulidade sanável, poderá o tribunal, em vez de simplesmente determinar o não seguimento do recurso, instar a parte recorrente a juntar aos autos as guias comprobatórias de recolhimento das custas em questão. Para se evitar tumulto processual, pensamos que tal possibilidade deve limitar-se a uma vez. Analogamente, se é possível a emenda da inicial (a principal peça do feito), por que não seria lícito fazê-lo relativamente à peça recursal?
Cabe, contudo, uma indagação: se o § 4º do art. 515 do CPC perfaz norma direcionada à atividade jurisdicional de segundo grau, como lidar com a ausência de pagamento das custas recursais em primeiro grau de jurisdição, quando da interposição do recurso de apelação, por exemplo?
O presente questionamento justifica-se pelo fato de que, antes mesmo de subirem os autos da apelação ao órgão ad quem, poderá ocorrer a inadmissão do recurso por falta de preparo na instância monocrática, o que objetaria a abertura da competência recursal do tribunal de modo que este lançasse mão do art. 515, § 4º, do CPC.
A respeito desta questão, vislumbramos na norma sub examine (CPC, art. 515, § 4º) autêntica nova diretriz a respeito do tema "custas recursais": a interpretação sistêmica deste dispositivo tem o condão de tornar menos rigorosos aspectos como as custas recursais. De fato, se o próprio tribunal poderá determinar, de ofício, o saneamento de nulidades sanáveis, é de se concluir, a fortiori, que poderá fazê-lo também a instância singular.12
Ainda no que atinente ao preparo, outra circunstância de iterativa ocorrência no cotidiano forense terá de ter seu enfoque modificado: referimo-nos às hipóteses em que, tendo a parte requerido, quando da interposição do recurso, os benefícios da assistência judiciária gratuita, indefere-se tal pleito e julga-se deserto o recurso.13
De nossa parte, entendemos incorreta tal orientação decisória: caso o pedido de gratuidade seja deduzido no bojo do próprio recurso, e o órgão jurisdicional haja por bem indeferi-lo, deverá ser concedida à parte oportunidade para o pagamento das custas recursais, dado que, como dito, o tema “custas” sempre se revela nulidade passível de correção, tanto mais após a entrada em vigor do § 4º do art. 515 do CPC.
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1 “Art. 515. A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada.
§ 1º (...)
§2º (...)
§ 3º (...)
§4º Constatando a ocorrência de nulidade sanável, o tribunal poderá determinar a realização ou renovação do ato processual, intimadas as partes; cumprida a diligência, sempre que possível prosseguirá o julgamento da apelação.”
2 Estas são algumas das assertivas constantes da exposição de motivos n. 182 do Ministério da Justiça, relativa ao Projeto de Lei n. 4.724/2004, que gerou a Lei 11.276/06, conforme consulta realizada no endereço eletrônico <_https3a_ www2.camara.gov.br="" proposicoes="">, consultando-se a “Apresentação do Projeto de Lei pelo Poder Executivo”. Acesso em 19 de novembro de 2008.
3 “Quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade.”
4 “Art. 245. A nulidade dos atos deve ser alegada na primeira oportunidade em que couber à parte falar nos autos, sob pena de preclusão.”
5 “Art. 245. (...)
Parágrafo único. Não se aplica esta disposição ás nulidades que o juiz deva decretar de ofício, nem prevalece a preclusão, provando a parte legítimo impedimento.”
6 “Art. 267. (...)
§ 3º O juiz conhecerá de ofício, em qualquer tempo e grau de jurisdição, enquanto não proferida a sentença de mérito, da matéria constante dos ns. IV, V e VI; todavia, o réu que a não alegar, na primeira oportunidade em que lhe caiba falar nos autos, responderá pelas custas de retardamento.”
7 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil, 2º v., 20ª ed., Ed. Saraiva, São Paulo, 1999, p. 65. Para o insigne processualista, discorrendo sobre os vícios dos atos processuais, “absolutamente nulos são aqueles atos que não observam requisitos que a lei considera indispensáveis ao bom andamento da função jurisdicional (Liebman). Ressentem-se de vício insanável, pelo que o próprio juiz deve de ofício declarar a sua nulidade, salvo quando a lei autorize a possibilidade de sua convalidação”. “Relativamente nulos são aqueles atos cuja nulidade, sem embargo do vício que os torna inidôneos ao fim visado, somente pode ser declarada por provocação do interessado. Ressentem-se de vício sanável, ou seja, de vício que se desfaz pela superveniência de uma condição que os revalide (Liebman, Bonumá). Assim, a própria falta de argüição do vício pelo interessado, em tempo hábil, revalida o ato”. “Em regra, os vícios dos atos processuais são sanáveis, donde, em regra, as nulidades serem relativas” (op. cit., p. 65).
8 WAMBIER, Luiz Rodrigues, ALMEIDA, Flávio Renato Correia de, TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil, v. 1, 8ª ed., Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2007, p. 189.
9Nossos parênteses.
10BUENO, Cássio Scarpinella. A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil v.2, Ed. Saraiva, São Paulo, 2006, p. 23.
11Seja a que título for: preparo no caso das apelações, custas de interposição no caso de recursos extraordinários, porte de remessa e retorno.
12Neste sentido, confira-se opinião de FREIRE, Rodrigo da Cunha Lima. Ausência de preparo e o novo § 4º do art. 515 do CPC: “técnica a serviço da efetividade”, Revista de Processo n. 137, Ed. Revista dos Tribunais p. 92 e ss.
13O cenário admite ilustração consoante a seguinte decisão: “PROCESSUAL CIVIL. ACÓRDÃO. NULIDADE NÃO CONFIGURADA. ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. POSTULAÇÃO TARDIA, FEITA CONCOMITANTEMENTE COM A APELAÇÃO. PROPÓSITO IDENTIFICADO DE SE ESQUIVAR DA SUCUMBÊNCIA. ABERTURA DE PRAZO PARA PREPARO INCONSISTENTE. INCIDÊNCIA DA REGRA DO ART. 511 DO CPC.
I. Não se configura nulidade quando o acórdão estadual, como aqui aconteceu, enfrenta as questões essenciais fundamentadamente, apenas com conclusão contrária ao interesse da parte.
II. O pedido de gratuidade formulado tardiamente, concomitantemente com a interposição da apelação, não tem o condão de, acaso indeferido, postergar o momento do preparo, que é cogente e expressamente definido pela regra do art. 511 do CPC.
III. Deserção da apelação corretamente aplicada.
IV. Inexistência de circunstância especial, a demandar solução diversa.
V. Recurso especial não conhecido” (STJ, REsp. n. 434.784, rel. Min. Aldir Passarinho Junior, DJ de 16.02.2004).
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* Rogerio Licastro Torres de Mello, do escritório Licastro Sociedade de Advogados.