O Senado Federal acabou de aprovar a PEC 18/13, que prevê a perda automática de mandato de parlamentares condenados por crimes contra a administração pública ou por improbidade administrativa. Essa Proposta de Emenda Constitucional foi encaminhada à Câmara dos Deputados, na qual seguirá os trâmites regimentais, devendo sua apreciação final ainda demorar.
Considerando-se a controvérsia doutrinária em torno da matéria, essa PEC constitui inegável avanço. No entanto, penso ser insuficiente para atender ao princípio da moralidade que deve inspirar o exercício do mandato eletivo, pois os crimes contra a Administração Pública e de improbidade administrativa não são os únicos infamantes, e cujo reconhecimento judicial deve determinar a perda do mandato como efeito automático da condenação. No meu entender, as normas constitucionais ora vigentes ensejam abrangência maior do que aquela prevista pela PEC 18/13. Salvo melhor juízo, a interpretação apropriada o demonstra. Tentarei demonstrá-lo a seguir.
De Celso, um dos maiores juristas romanos, herdamos o ensinamento segundo o qual conhecer as leis não se resume a considerar suas palavras, mas exige indagar sobre sua força e poder. Dos romanos herdamos também a regra de que não se devem presumir palavras inúteis na lei, cabendo ao intérprete, no limite do possível, atribuir algum efeito às expressões que, à primeira vista, possam aparentar inutilidade. Outro princípio interpretativo que também haurimos da mesma fonte e que apresenta inafastável aplicação no campo do direito constitucional, é o da unidade do corpo normativo, a significar que as normas constitucionais devem ser interpretadas de modo integrado e não isoladamente, a fim de solucionar as antinomias e as contradições aparentes, de modo a evitar, sempre no limite do possível, soluções não condizentes com a finalidade da norma e inadequadas ao sistema, as quais, muitas vezes, desaguam em resultados absurdos.
Apesar desse norte seguro, quer parecer que, em recente julgamento, a maioria do STF, ao declinar em favor do Poder Legislativo de sua competência relativa à imposição da perda ou suspensão de mandatos eletivos, fazendo-o com fundamento na dicção do inciso VI do art. 55 da CF, não interpretou a Carta Magna de acordo com os princípios acima, pois deu força a uma disposição constitucional isolada, desconsiderando a interpretação sistemática e também a teleológica, fundamentais ao correto entendimento da Constituição. Em verdade, a interpretação das normas constitucionais atinentes à perda do mandato eletivo deve levar em conta não apenas o inciso VI do artigo 55 (“Perderá o mandato o Deputado ou Senador que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado”), como seu inciso IV (“Perderá o mandato o Deputado ou Senador que perder ou tiver suspensos os direitos políticos”), ambos combinados com o art. 15, inciso III. (“É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos”).
Se, em decorrência do disposto no aludido inciso III do art. 15, os direitos políticos só podem ser perdidos ou suspensos como corolário de condenação criminal transitada em julgado, segue-se, necessariamente, que o art. 55 prevê duas hipóteses de perda ou suspensão do mandato eletivo, uma obrigatória (inciso IV) e outra facultativa (inciso VI). Embora ambas decorram de prévia condenação criminal transitada em julgado, consubstanciam situações jurídicas diversas e produzem distintos efeitos. Se a condenação judicial implicar, necessariamente, perda dos direitos políticos, verificar-se-á, obrigatoriamente, a perda do mandato eletivo, como decorrência da norma do art. 55, IV, da CF, uma vez que é lógica e juridicamente inconcebível que alguém, despido de seus direitos políticos, possa exercer atividade política. Não é necessário ser jurista para compreendê-lo, o senso comum é suficiente. Observe-se que, por força do parágrafo 3° do art. 55, a perda do mandato eletivo, nesse caso, deverá ser meramente declarada pela Mesa da Casa a que pertencer o parlamentar.
Se assim é, a que hipótese se refere o inciso VI do mesmo art. 55 (“Perderá o mandato o deputado ou senador que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado”)? Penso tratar-se, necessariamente, de hipótese distinta daquela prevista no inciso IV, à luz da regra segundo a qual não se presumem palavras inúteis na lei ou na Constituição. Logo, se a hipótese de perda ou suspensão do mandato prevista no inciso IV se fundamenta na perda ou na suspensão dos direitos políticos, deduz-se que a norma do inciso VI deve dizer respeito a hipótese de condenação criminal em que não ocorra perda ou suspensão dos direitos políticos.
A confirmação da possibilidade de condenações judiciais que não impliquem perda ou suspensão dos direitos políticos, e, portanto, perda automática do mandato eletivo, encontra-se nas alíneas “a” e “b” do art. 92, I, do Código Penal. Com efeito, não ocorre essa perda nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública, no caso de pena privativa de liberdade por tempo inferior a um ano; e, nos demais casos, quando se tratar de pena privativa de liberdade por tempo não superior a quatro anos. Entre estes, a título de exemplo, poderíamos citar os crimes de lesão corporal culposa, de incêndio, de inundação e de desabamento culposos, de omissão de notificação de doença, de fornecimento culposo de medicamento em desacordo com receita médica, todos previstos no Código Penal, cujas penas são inferiores a quatro anos. Poderíamos invocar, igualmente, as contravenções de vias de fato e de omitir cautela na guarda ou condução de animais. Percebe-se facilmente que tanto as contravenções como os crimes acima mencionados são de menor potencial ofensivo, e a condenação por qualquer deles não ofende direta e fundamente a ética parlamentar, ao contrário daqueles a que a lei atribui como consequência necessária a perda do mandato eletivo, a ser decretada pelo juiz na condenação.
A invocação do art. 92 do Código Penal não significa que se esteja a interpretar a Constituição a partir de uma norma infraconstitucional. Trata-se, isso sim, de buscar a confirmação do resultado da interpretação, pois, na verdade, a norma infraconstitucional hígida consubstancia um desdobramento normativo do texto constitucional, que nele deve considerar-se implícito. Do contrário, tal norma não seria constitucional e, desse modo, teria que ser eliminada do sistema jurídico-normativo.
Por outro lado, se toda a condenação criminal implicasse suspensão dos direitos políticos, não se compreenderia a necessidade do inciso VI do art. 55, porquanto a hipótese estaria coberta pela norma do inciso IV, isto porque, como já dito, é lógica e juridicamente inconcebível a suspensão dos direitos políticos com simultânea manutenção do mandato eletivo. De fato, se toda e qualquer condenação criminal acarretasse automática suspensão dos direitos políticos (e, por consequência, do mandato eletivo), bastaria a norma do inciso IV do art. 55, sendo inútil o inciso VI. Ou vice-versa. Com efeito, para que o inciso IV, se o inc. VI implicasse sempre a suspensão daqueles direitos? Se não é dado ao intérprete presumir inutilidade da norma jurídica, seja ela de estatura constitucional ou infraconstitucional, há que se dar eficácia a ambas as disposições referidas.
Conclui-se, portanto, que, na perda do mandato eletivo em decorrência da suspensão dos direitos políticos (naturalmente como efeito da sentença condenatória criminal), caberá à Mesa da Casa respectiva apenas declará-la, tal como estabelece a CF no art. 55, inciso IV, par. 2°, e que, na hipótese de condenação criminal transitada em julgado (naturalmente sem decretação da perda ou suspensão dos direitos políticos e sem imposição de pena privativa de liberdade), competirá ao Parlamento decidir se impõe ou não a perda ou a suspensão do mandato eletivo, de acordo com o juízo de valor de natureza ético-política que vier a ser formado pela Casa Legislativa a que pertencer o Deputado ou o Senador, levando-se em consideração os respectivos Códigos de Ética Parlamentar. Nesses casos, caber-lhes-á, com exclusividade, decidir se os atos que geraram a condenação judicial são compatíveis ou não com o decoro parlamentar e, no caso positivo, manter a incolumidade do mandato eletivo.
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* Lionel Zaclis é mestre e doutor em Direito e advogado do escritório Barretto Ferreira e Brancher - Sociedade de Advogados.
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