"Há algo de podre no reino da Dinamarca."
Com esta frase que se tornou célebre, Hamlet (o príncipe), na peça homônima de Shakespeare, imortalizou um sinônimo para a traição, em especial para a deturpação, o desvirtuamento, a deformação que se opera no âmbito das relações de poder ou das instituições de Estado.
É o que ocorre, presentemente, com o projeto de lei orgânica da Procuradoria Geral do Estado de SP, gestado a portas fechadas pelo procurador-Geral do Estado e encaminhado pelo governador Geraldo Alckmin à Assembleia Legislativa no final de julho último, onde tramita desde agosto em regime de prioridade.
O malsinado projeto prevê a flexibilização da atividade de controle jurídico da Procuradoria Geral do Estado de SP sobre as licitações e ainda assenta como de livre-designação todos os postos de trabalho das consultorias jurídicas junto às Secretarias de Estado e autarquias.
Não bastasse o poder conferido ao procurador-Geral do Estado para eximir a instituição de examinar licitações, ainda poderá ele remanejar de postos de trabalho, a qualquer tempo e sem qualquer motivação, os profissionais que atuam nos setores responsáveis pela análise jurídica das licitações, contratos e convênios, fragilizando enormemente sua posição.
O que dizer também de um projeto que ainda prevê a livre-designação pelo procurador-Geral do Estado de postos de trabalho existentes em unidades internas da Procuradoria-Geral do Estado, como também e, estrategicamente, a que cuida dos processos administrativos disciplinares dos servidores e autoridades da administração estadual? Ou que prevê a transformação de unidades estabelecidas de trabalho em funções de confiança ou mesmo a subtração deliberada de vagas, e não só de algumas, mas de até 25% do total, nos concursos internos de remoção?
Vamos reproduzir, dentro da Procuradoria-Geral do Estado, órgão técnico por excelência, mais cargos em comissão do que os 39 ministérios que tanto se critica alhures.
A Constituição de 1988 concebe as Procuradorias Gerais dos Estados, em seu artigo 132, como instituições de Estado, integradas por procuradores concursados e organizados em carreira, compondo uma das chamadas funções essenciais à Justiça.
Sua missão é exercer a representação judicial e a consultoria jurídica dos entes federados. É aparato de Estado fundamental que zela pelo patrimônio e interesse públicos, responsável por garantir a legalidade dos atos e negócios na administração pública. Afinal, quem melhor que o Procurador do Estado, que é o advogado do Estado, para orientar o administrador público sobre a legalidade de sua atuação?
Mas apesar desse perfil constitucional e no momento em que a cobrança pela lisura e eficiência do Estado levou às grandes manifestações de junho, o encaminhamento desse projeto de lei orgânica da Procuradoria-Geral do Estado de SP à Assembleia Legislativa parece indicar descaso para com a Constituição e que pouco se compreendeu das reivindicações populares.
Isto porque nenhuma das proposições acima referidas e que integram o projeto de lei orgânica da Procuradoria Geral do Estado de SP (PLC 25/13) honram a Constituição, como tampouco honram as vozes ainda bem claras das ruas.
Flexibilizar o controle das licitações e fragilizar a posição de quem é incumbido de analisá-las em nada contribui para a preservação da res publica, que tanto motivou os manifestantes.
Ao contrário, constitui-se em deturpação que transforma a instituição que sempre foi e deve ser de Estado em órgão a serviço ou a reboque do governo, em qualquer tempo, em qualquer época.
Afinal, nunca é demais lembrar: a advocacia pública é advocacia de Estado, da coisa pública, não advocacia do governo.
Até porque arrefecer o controle jurídico sobre as licitações, contratos e convênios, bem como enfraquecer a posição dos advogados públicos que devem realizar esse controle pode ser tudo, menos forma de prestigiar a legalidade.
Na verdade, o que se extrai do conjunto de proposições constantes do projeto de lei orgânica da Procuradoria Geral do Estado (PLC 25/13) é a tentativa de garantir a politização do órgão ou, em outras palavras, de assegurar sua submissão ao poder político de ocasião.
E submeter o controle de legalidade à ação política, toda a consultoria técnica aos interesses do nomeado pelo governador, é a negação da própria razão de existir da advocacia pública, função essencial à democracia republicana.
Como é cediço, no âmbito da malversação de verbas, remediar é quase tão inatingível, que prevenir não é a melhor, senão a única solução.
Que os parlamentares de São Paulo se apercebam do risco que o projeto representa para a Procuradoria-Geral do Estado, que tanto auxiliaram a formatar com leis que, até o momento, preservam sua função institucional.
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*Márcia Semer é presidente da Apesp - Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo