A ação penal 470, que ficou popularmente conhecida como "mensalão", encontra-se em fase final de julgamento e o Supremo Tribunal Federal passa a analisar a possibilidade de oposição de embargos infringentes no caso.
Antes de mais nada, é necessário situarmos alguns conceitos referentes a este debate: o que são embargos infringentes?
Os embargos infringentes constituem um recurso privativo da defesa, conforme definido no parágrafo único do artigo 609 do CPP. A princípio, são oponíveis contra decisão de 2ª instância, não unânime (ou seja, em que haja divergência entre os votos) e desfavorável ao réu.
O recurso é cabível quando a divergência de votos versar sobre matéria de mérito, visando à prevalência do voto vencido. Na matéria debatida, o embargante deverá restringir suas alegações à matéria objeto da divergência, ou seja, jamais poderá inovar e pleitear algo fora do que foi decidido no voto vencido.
E qual a relação dos embargos infringentes com a AP 470?
A AP 470 foi ajuizada em face de ex-integrantes dos Poderes Executivo e Legislativo Federais, e em razão do cargo que os réus então ocupavam, o processo tramita originariamente no STF, por se tratar de hipótese de prerrogativa de foro. Ocorre que há regras específicas acerca do procedimento aplicável às ações de competência originária dos tribunais. Quando se trata dos tribunais superiores - STJ e STF - este procedimento é definido pela lei 8.038/90 e pelos respectivos regimentos internos.
Quanto aos embargos infringentes, o regimento interno do STF prevê seu cabimento no caso de ações penais que sejam de sua competência originária, e que tenham sido julgadas procedentes por decisão não unânime. Já a lei 8.038/90 nada traz a respeito deste recurso.
Pois bem. Alguns dos réus foram condenados na AP 470 com votações não unânimes, abrindo a possibilidade de oposição de embargos infringentes, o que dividiu opiniões: parte dos juristas entende que não seriam cabíveis tais embargos, pois como este recurso somente encontra previsão no regimento interno do STF, e a lei 8.038/90 não tratou da matéria, haveria que se interpretar a lei 8.038/90 teria revogado o regimento interno, por ser norma posterior, e principalmente por ter sido elaborada já na vigência da CF de 1988, diferentemente do ocorrido com o regimento.
Outra parte dos juristas sustenta que não haveria qualquer vedação à oposição dos embargos neste caso, já que não existe qualquer previsão em contrário, e, aliás, a própria lei 8.038/90 faz mais de uma menção ao regimento interno: o artigo 2º da lei afirma que a instrução processual da ação penal de competência originária será feita, no que for aplicável, na forma do regimento interno, e o artigo 12 determina que o julgamento destas ações será "na forma determinada pelo regimento interno", o que força à conclusão de que o regimento interno do STF não se encontra, de maneira alguma, revogado.
E não seria demais acrescentar a estes argumentos outro bastante basilar da lei processual penal: o artigo 3º do CPP autoriza a interpretação extensiva e analógica da lei processual penal. Em outras palavras: à falta de previsão legal expressa em contrário, nada impediria considerar que os embargos infringentes são, sim, cabíveis, como ocorre com as decisões colegiadas de 2ª instância de votação divergente a que fazem referência o parágrafo único do artigo 609 do CPP.
Mas os argumentos a respeito das formalidades legais são inesgotáveis e podem ser rebatidos infinitamente pelos dois lados. E é por isso que, em se tratando de normas de Direito Processual Penal é sempre necessário orientar-se por sua missão maior, que é garantir a defesa do acusado perante o Estado: ora, se existe controvérsia a respeito da revogação ou não dos embargos infringentes, deve ser adotada a interpretação mais favorável ao réu.
Então, para além de discussões de hermenêutica entre regimentos internos e legislações procedimentais, há sempre que se colocar as garantias processuais asseguradas no texto constitucional. Se as regras de foro especial ferem o princípio republicano, que se discuta sua manutenção. Mas que não se extirpe um direito que tem por base exatamente a falibilidade humana: o direito ao reexame das decisões judiciais se funda na possibilidade de o magistrado falhar – situação a qual nem mesmo os ministros da mais alta corte do Poder Judiciário estão imunes, ainda que se alegue que o fato de ser julgado por este colegiado é mais que suficiente para um julgamento justo.
Ora, se há tanta convicção a respeito da justiça neste julgamento, qual o receio de aceitar uma eventual rediscussão de seu mérito?
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* Roberto Podval é advogado do escritório Podval, Antun, Indalecio Advogados, e Maíra Zapater é advogada e professora universitária.