Migalhas de Peso

Norberto Bobbio e a experiência da vida

Celso Lafer produz o primeiro fruto de sua nova condição de professor emérito: o livro "Norberto Bobbio: Trajetória e Obra", que estava devendo há muito tempo.

4/9/2013

Celso Lafer produz o primeiro fruto de sua nova condição de professor emérito: o livro que estava devendo há muito tempo, Norberto Bobbio: Trajetória e Obra (Editora Perspectiva, São Paulo, 2013). Orelha de Fernando Henrique Cardoso.

Fruto dourado, maduro e suculento, produzido com rigor, responsabilidade e aquela disciplina de raciocínio própria do autor em seus textos e em seus cursos. Mas produzido, antes de tudo, com muito amor, aquele amor acendrado, de caráter filial, que liga para sempre o discípulo ao mestre da vida inteira.

Mais de 30 anos de estudo, reflexão e dedicação integral, de convivência estreita, íntima, com o texto e a pessoa do mestre, competindo e integrando-se com outras influências capitais, como Antonio Candido, Miguel Reale e Hannah Arendt, abraçados naquela mesma "luta amorosa pela comunicação" de que fala Karl Jaspers.

Livro carinhoso. O carinho tem sua inteligência própria, quando bem conduzido. Apura a sensibilidade, e a sensibilidade acurada sutiliza a inteligência.

Ao mesmo tempo em que reconstitui a trajetória e a obra de Norberto Bobbio, Celso Lafer traça o perfil autêntico daquele discípulo fiel acompanhando o mestre passo a passo. O discípulo fiel não é o duplo ou o sósia do mestre. É aquele que descobre e molda sua personalidade própria na troca dialética de ideias e maneiras de sentir com o preceptor, num jogo de integração com este; a mesma palavra nunca soa idêntica para quem fala e quem ouve. A afinidade profunda com o mestre não suprime a independência nem a originalidade do discípulo, como se vê muito na história da arte, por exemplo. A palavra “influência” muitas vezes deve ser lida como "confluência".

Na verdade, bem considerado, o personagem que adotamos como modelo não é o ponto de chegada, o ponto final de nossa formação, mas seu ponto de partida para aprendermos a andar com as próprias pernas e a encontrar nosso caminho. “Queres seguir-me? Segue-te”, dizia lapidarmente Nietzsche. Na história de Jesus e seus apóstolos, o Mestre era um só, mas seus discípulos são vários e variados em seus destinos e em seus estilos inconfundíveis.

De onde se segue que não se pode interpretar o entusiasmo do autor como excesso de “reverência”, ou “deferência” dedicadas ao pensador italiano, como faz certo crítico da Folha de S.Paulo, na resenha de sua lavra (Ilustrada, 24/8/13). Nenhuma daquelas duas palavras se aplica ao texto resenhado. “Reverência” quer dizer respeito profundo; “deferência”, quase o mesmo, atitude de respeito e consideração para com um superior. Trata-se de atitudes ou comportamentos externos, de efeito demonstrativo, nem sempre sinceros ou autênticos, semelhantes ao “cordiais saudações” convencionados nos fechos de cartas.

Desde a Grécia, desde Platão, a vinculação profunda que une o discípulo ao mestre, de natureza ideológica, afetiva e biográfica, com o caráter de formação da pessoa como homem e cidadão, algo comparado à Paidéia, os ideais da cultura grega, repele designações frias, acadêmicas e convencionais como as usadas naquele artigo. Fale-se em afinidade eletiva, em vinculação de pessoas, comunhão de valores e ideias, aliança de espíritos, imantação carismática, menos em “reverência” ou “deferência”, palavras pálidas, exangues e sem perfil.

De Norberto Bobbio aquilo que, talvez, se pudesse dizer de forma geral para caracterizar seu perfil, seria um pressuposto nada acadêmico, nada formal, e pré-científico: a experiência da vida. Toda sua longa e diversificada reflexão sobre o direito, a política, a vida pública assenta na base da experiência da vida pessoal e histórica. E não só da história feita, passada, como da história presente, da atualidade mais palpitante, e ainda da história futura, por fazer.

Porque a experiência da vida não se constitui somente de memória, mas é também atenção exacerbada ao presente e antecipação do que poderá vir. Ela estabelece o nexo de continuidade da vida no curso do tempo. Experiência da vida é memória, atualização e previsão ao mesmo tempo.

A experiência da vida foi durante muito tempo a maneira radical de saber a que se ater, e sobrevive ainda assim nas inteligências superiores, como a pedra de toque da inteligência.

Adverte Julián Marías que “a experiência da vida é um saber superior, que pode colocar-se ao lado dos mais altos e radicais.” Mesmo assim, não sabemos bem o que fazer com ela, nem no que consiste. Mas um seu elemento é certo: não se trata de mera experiência pontual de coisas, e sim da “vida”, experiência da vida como sistema, no qual as coisas se encaixam.

A experiência da vida em Bobbio, vem sintetizada em fórmula das mais singelas possíveis, repetidamente lembrada no curso de sua obra: “o sentido da complexidade das coisas.” Como todas as coisas são muito complexas, o método indicado para examiná-las é a dúvida metódica. Toda verdade é discutível até prova em contrário. Não se trata de relativismo e sim de um imperativo irrevogável de dilatação da consciência. Ou seja, a disposição permanente do diálogo com os conceitos e com os homens, “norteado pelas virtudes laicas da dúvida metódica, da moderação, da tolerância e do respeito pelas idéias dos outros, conduzido pelas armas da crítica, mas sem os ímpetos desqualificadores de um cruzado-missionário” (pp.32-33).

Penso que é em nome da experiência da vida e com base em sua amplitude crescente, que Bobbio rejeita terminantemente todas as limitações, todos os redutivismos doutrinários e as posições extremadas de qualquer tipo. Pela mesma razão não aceita a visão simplista das coisas, seu esquematismo, o dualismo irredutível que leva ao maniqueísmo, a recusa das diferenças e dos matizes, a intolerância e o radicalismo em todas suas formas, que culminam no fanatismo, naquilo que se conhece como a “fascinação dos extremos”.

Em outras palavras, a experiência da vida, na medida em que responde pela dilatação progressiva da consciência, exprime em seu nível mais alto a liberdade de espírito, o pluralismo, e favorece o exercício do pensamento como uma ars combinatória, no “gosto e no instinto das combinações”, como explica Lafer (p. 31).

O próprio Bobbio se classifica como um “iluminista pessimista”. Iluminista por acreditar na luz da razão e na sua possibilidade de reforma da sociedade; pessimista por não alimentar a certeza de que tal possibilidade venha a ser realidade, ou mesmo probabilidade disso.

A experiência da vida constitui um método paradoxal de saber, quase o saber do não saber. Método significa “caminho”. A experiência da vida passa por caminhos e descaminhos, e sua fonte preferencial é quase sempre o erro, aquele erro que não deve ser repetido para que a inteligência possa avançar e atingir algo novo e inédito.

Lafer indica que o símbolo preferido de Bobbio, sua metáfora predileta do enigma da vida e da história é o labirinto. Mas deve-se notar que o labirinto é um símbolo ambivalente. Entra-se no labirinto para se perder e para se encontrar. E só podemos nos encontrar depois de nos perdermos. O labirinto tem saídas, mas estas são desconhecidas e só nós que estamos perdidos podemos encontrá-las.

A metáfora do labirinto se aplica à vida humana em todo seu percurso. Viver é estar perdido no labirinto, porque cada solução que encontramos dá lugar a dois ou mais problemas. A insegurança, o extravio no labirinto, é constitutivo da vida humana. Como diz Ortega: “Nossa vida é afã de ser precisamente porque é, ao mesmo tempo, em sua raiz, radical insegurança.”

De onde se conclui que o “iluminismo cético” no qual Bobbio se inclui, tem perfeita razão de ser. Precisamente, foi a insegurança, ao comprometer os ideais reformadores da razão, que transformou Bobbio num ativista do seu liberalismo político e social, cônscio de que o progresso nada tem de automático e não se concretiza sem esforço.

Exemplo grandioso da ars combinatoria de Bobbio está em seu esforço de conciliação de dois autores que parecem em contradição inconciliável: Hobbes (“guerra de todos contra todos”) e Kant (“Paz Perpétua”). Já foi dito que Bobbio tem o olhar realista de Hobbes e Maquiavel dividido com o coração idealista de Kant. Amante da paz, Bobbio admite o uso da força, desde que autorizada juridicamente pela ONU segundo o critério da “medida”. O problema é que o advento das armas nucleares, implantando a violência absoluta, desarma qualquer proposta de moderação.

Além disso, a ONU vive às voltas com uma trava interna que anula todo seu esforço de mediação, graças à imposição pelas grandes potências, do malsinado direito de veto. Em linguagem futebolística, o direito de veto é uma prepotência semelhante a tirar a bola de campo no meio do jogo.

A supressão do direito de veto é inexcusável para a constituição de um poder supranacional autêntico, diz Marías. As Nações Unidas não têm razão de ser sem a faculdade de tomar medidas contra a vontade de qualquer país sem exceção. Marías escreveu esta frase na década de 70. Hoje, na hora em que o presidente Obama se dispõe a rechaçar as atrocidades praticadas pela Síria, mesmo sem contar com o apoio da ONU, a situação é absurdamente a mesma.

A obra de Bobbio tem o valor de uma intervenção permanente contra a falsidade deste dispositivo injustificável que é o direito de veto pelas cinco maiores potências. E a magnífica exposição do pensamento daquele mestre italiano por Celso Lafer é o alto-falante que estava faltando para que a voz daquele pacifista esclarecido seja ouvido em maior escala. A voz irretorquível da experiência da vida, capaz de desbloquear o labirinto da guerra e da paz.

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* Gilberto de Mello Kujawski é procurador de Justiça aposentado, escritor e jornalista.

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