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A revisão contratual no código civil: A função social do contrato e sua gênese constitucional

Matéria ainda bastante controvertida no âmbito da jurisprudência e doutrina pátria é a questão atinente à revisão contratual, mormente em se tratando de relações regidas pela legislação residual, ou seja, pelo Código Civil

18/11/2005


A revisão contratual no Código Civil: A função social do contrato e sua gênese constitucional


Lucas Martins Magalhães da Rocha*


Matéria ainda bastante controvertida no âmbito da jurisprudência e doutrina pátria é a questão atinente à revisão contratual, mormente em se tratando de relações regidas pela legislação residual, ou seja, pelo Código Civil.


Com efeito, muitas foram as teorias desenvolvidas a partir da cláusula "rebus sic stantibus", sendo as de maior destaque a "Teoria da Imprevisão", da "Onerosidade Excessiva" e a da "Base Objetiva do Negócio Jurídico".


No que tange às relações de consumo, inexistem dúvidas acerca do acolhimento, pela Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor - CDC), da "Teoria da Base Objetiva do Negócio Jurídico". Tal teoria preceitua que, uma vez alterada a base negocial existente ao tempo da celebração do contrato, deve o mesmo ser revisto. Para sua aplicação, mister a concomitância de dois pressupostos de ordem objetiva, quais sejam, o fato superveniente não imputável à parte e a onerosidade excessiva das prestações. Tais requisitos estão expressos no artigo 6º, inciso V, do CDC. Assim sendo, a revisão dos contratos que se tornaram excessivamente onerosos, em razão de fatos supervenientes, é direito básico do consumidor. Havendo relação de consumo, a questão envolvendo a possibilidade de revisão contratual é relativamente tranqüila, seja em razão dos pressupostos (objetivos) exigidos pela lei para a revisão do contrato, seja em razão da função teleológica do CDC.


A problemática envolvendo a revisão dos contratos de consumo está muito mais ligada ao efetivo reconhecimento, pelos pretórios, da existência de relação consumerista (em razão da controvérsia existente em torno do conceito de consumidor), do que na própria revisão em si. Em suma, havendo relação de consumo, a revisão é consectário legal, supedâneo no mencionado artigo 6º, inciso V, do "Codex".


A grande problemática envolvendo a matéria em análise jaz nas situações nas quais, indiscutivelmente, inexiste relação de consumo. Tanto a doutrina, quanto a jurisprudência divergem quando o assunto é revisão de contratos regidos pela legislação residual. Grande parte da doutrina tratou desse tema, sendo que a maioria defende o acolhimento da "Teoria da Imprevisão"; outros, por sua vez, afirmam ter o Código Civil acolhido a "Teoria da Onerosidade Excessiva"1 , de origem italiana. Cada uma destas teorias possui suas particularidades, tendo todas sido brilhantemente analisadas em sede doutrinária.


Como explanou o mestre Ruy Rosado de Aguiar Júnior2 , as teorias revisionistas buscam todas uma coisa só, cada qual com seus pressupostos próprios. A princípio, pode tal constatação parecer simples, até mesmo lógica. No entanto, é preciso atentar para a amplitude da idéia nela contida, qual seja a de que o legislador, independente da teoria adotada, pretendeu positivar no ordenamento jurídico pátrio um mecanismo capaz de garantir no caso concreto a legítima revisão contratual, via intercessão estatal.


Como depreende dos artigos 317 e 478, ambos do Código Civil, ao contrário do que ocorre no Código de Defesa do Consumidor, para que seja possível a realização da revisão contratual, vários pressupostos devem ser satisfeitos, não bastando apenas os previstos na legislação consumerista. Chega o Código Civil ao absurdo de, no artigo 478, atrelar a excessiva onerosidade do devedor à vantagem extrema do credor, o que, na grande maioria das vezes não acontece.


Em que pese ter a jurisprudência amenizado alguns desses pressupostos, fato é que não mais coaduna com a orientação adotada pelo Código Civil a possibilidade de a revisão judicial dos contratos ser "travada" em razão da ausência dos pressupostos previstos pela legislação residual. Em artigo publicado neste rotativo, ainda que discorrendo acerca do artigo 406, a professora Judith Martins-Costa3 deixou claro que o novo Código Civil não suporta interpretações isoladas, devendo este ser interpretado de maneira que "o harmonize com o sistema jurídico integralmente considerado (o que dará efetividade ao Código como uma estrutura de conexões intersistemáticas)."


O Código Civil, ao incorporar em seu bojo o "Princípio da Socialidade", destacou a enorme relevância da responsabilidade social das cinco principais figuras do Direito Privado, quais sejam o pai de família, o empresário, o testador, o proprietário e o contratante.


Com relação à matriz da socialidade, importante frisar que a revisão contratual não pode mais ser concebida sem a análise dos princípios sociais do contrato. Nesse sentido, apresentando os princípios ora mencionados, importantes lições de Paulo Luiz Netto Lôbo4 :

"O firme propósito de trazer o novo Código Civil ao contexto e à ideologia da terceira fase histórica do Estado Moderno (as três fase corresponderiam às do Estado absolutista, do Estado liberal e do Estado social) foi sempre destacado pelos autores do projeto, nomeadamente por Miguel Reale, quando se refere à diretriz da 'socialidade', que o teria informado.


Esse breve pano de fundo contribui para esclarecer a força crescente dos princípios contratuais típicos do Estado social, que, de um modo ou de outro, comparecem nos códigos brasileiros referidos. São eles:


a) princípio da função social do contrato;


b) princípio da boa-fé objetiva;


c) princípio da equivalência material do contrato."

No que tange ao contratante, o Código Civil foi incisivo no sentido de que o contrato deve possuir uma função social, devendo a liberdade de contratar ser exercida sempre com observância deste princípio (artigo 421). Dúvidas não existem no sentido de que os preceitos contidos nos artigos 317 e 478 devem, necessariamente, ser analisados em conjunto com a norma estampada no artigo 421, sendo importante destacar que, mesmo na hipótese de inocorrência dos pressupostos previstos nos dispositivos acima (317 e 478), o contrato poderá ser revisto, porquanto não há função social sem equidade de prestações.


Com efeito, não mais coaduna com a direção adotada pelo Código Civil a possibilidade de a revisão contratual deixar de ser realizada sem a devida observância desses princípios. Os rígidos pressupostos elencados nos artigos 317 e 478 não podem ser óbices à revisão contratual, devendo o julgador, sempre, observar no caso concreto qual o grau de funcionalização da revisão contratual pretendida.


No que tange ao princípio da função social, importante frisar que a gênese do mesmo está na Constituição da República de 1988 – CR/1988, em seus artigos 1º, inciso III e 3º, inciso I, porquanto constitui fundamento da República Federativa do Brasil a "dignidade da pessoa humana", sendo seu objetivo a construção de uma "sociedade livre, justa e solidária". E mais, o artigo 1º, inciso IV, da CR/1988 também elenca como fundamento da República os valores sociais da livre iniciativa, o que, indubitavelmente, possui inarredáveis reflexos na questão relativa à revisão contratual. A demonstração do nascedouro do princípio em análise é de extrema importância, porquanto deixa ainda mais clara a afirmação acima tecida no sentido de que as disposições do Código Civil não podem ser analisadas isoladamente, hermeticamente, devendo todo o sistema jurídico ser considerado, principalmente a Constituição da República de 1988.


Essas breves digressões realizadas em relação à revisão contratual, vista sob a égide do Código Civil, são bastante para se concluir que, ao contrário do Código de 1916, o novo "Codex" não foi construído para ser interpretado isoladamente, devendo este ser apreciado, principalmente, em conjunto com as regras emanadas da CR/1988, razão pela qual os rígidos pressupostos insculpidos nos artigos 317 e 478 não podem obstar a função social da revisão contratual.
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1MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. 1 ed. Rio de Janeiro: Forense, vol. V, tomo I, 2004, pág. 245/246.

2JÚNIOR, Ruy Rosado de Aguiar. Revista de Direito do Consumidor, nº 48, São Paulo: Revista dos Tribunais, out/dez 2003, pág. 62.
3MARTINS-COSTA, Judith. Migalhas de 2.4.03.
4LÔBO, Paulo Luiz Netto. Revista de Direito do Consumidor, nº 42, São Paulo: Revista dos Tribunais, abril/junho 2002, pág. 18
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*Estagiário do escritório Pimenta da Rocha, Andrade & Advogados Associados.






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