Decisão recente da 7ª câmara Criminal do TJ/RJ afastou a aplicação da lei 11.340/06 – lei Maria da Penha – de violência praticada por namorado contra namorada, que, no caso, são conhecidos atores da televisão brasileira.
No seu voto, o relator baseou-se, tão somente, em trecho da exposição de motivos da lei em causa, a qual, na sua opinião, "deve ser aplicada contra violência intra-familiar". O relator afirmou, ainda, que o local do fato era "não doméstico", que a vítima não convivia em "relação de afetividade estável" com o réu, e não poderia ser considerada "uma mulher hipossuficiente ou em situação de vulnerabilidade", por isso, votava provendo o recurso do réu, para anular a condenação proferida pelo Juizado da Violência Doméstica e Familiar, remetendo o caso para vara Criminal.
O acórdão padece da absoluta falta de fundamentos de Direito e apresenta erronia de premissas.
A primeira erronia é lançar mão da exposição de motivos para afastar a aplicação do texto normativo da lei.
Os termos da lei 11.340/06 são bem claros: sua aplicação independe das características individuais da mulher, bem como de coabitação do agressor com a agredida. Com essa decisão, a 7ª câmara Criminal do TJ/RJ negou vigência, de saída, aos arts. 2º e 5º, da lei 11.340/06, abaixo reproduzidos e comentados:
"Art. 2° Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social."
Logo, é falsa e errada a ideia de que o âmbito de proteção da lei 11.340/06 restrinja-se à mulher dita "hipossuficiente", segundo a opinião pessoal do julgador.
"Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação."
Portanto, é falsa, errada e ilegal a recusa, por qualquer juízo ou tribunal, à aplicação da lei 11.340/06 sob o pretexto de que só se aplica à violência dita "intrafamiliar".
Cada inciso do art. 5º descreve as diferentes hipóteses do âmbito de proteção da lei, explicando-as passo a passo:
I – violência praticada no âmbito da unidade doméstica, esta correspondente ao espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar: logo, o ato de qualquer pessoa que ingresse nos domínios da unidade doméstica e nesse espaço pratique violência contra a mulher enquadra-se no regime da lei 11.340/06;
II- no âmbito da família, qualquer que seja o local o fato;
III – em qualquer relação íntima de afeto, presente ou passada, qualquer que seja o local do fato.
O voto parte da premissa de que o regime da lei só se aplicaria se combinados os incisos I a II do art. 5º da lei, ao afirmar que "deve ser aplicada contra violência intra-familiar" e que o local do fato era "não doméstico". Trata-se, como visto, de premissa errada, pois cada um dos incisos do art.
5º corresponde a uma hipótese distinta e suficiente à incidência do regime da lei.
O caso referido no acórdão enquadra-se, inteiramente, no inciso III do art. 5º da lei nº 11.340/06.
O voto, ao afirmar que a vítima não convivia em "relação de afetividade estável" com o réu para afastar a aplicação da lei ao caso concreto, negou vigência ao inciso III do seu art. 5º, que determina a incidência da lei à violência praticada em qualquer relação íntima de afeto, presente ou passada, qualquer que seja o local do fato.
Os erros do acórdão são todos inescusáveis, sobretudo se considerarmos que é da lavra de desembargadores. Nele está expressa a preocupação com o número dos processos que virão.
O que importa, ao aplicar uma lei, é o seu texto normativo (do primeiro ao último artigo), jamais a exposição de motivos. Esta carece de força normativa. O amontoado de sofismas de que lança mão o acórdão só serve para confundir e impressionar o vulgo, porque nenhum operador sério do Direito se deixa por eles enganar.
É o que basta para provar que a decisão sob comento é indefensável e errada, fruto de sentimentos pessoais, mais nada. Quanto aos que defendem esse monturo misógino (a "decisão"), nenhum respeito merecem, pois odeiam as mulheres; e, por odiarem as mulheres, são inimigos da Humanidade, tanto quanto o são os racistas. Aliás, todos os que aplaudem, batendo no peito, o nada venerando acórdão, não leram a lei 11.340/06, pois suas manifestações provam total desconhecimento de seus termos. O machismo não é demonstração de força, de virilidade; antes, é coisa de homúnculos despreparados, que odeiam as mulheres e não perdem uma oportunidade de, contra a pessoa de uma ou de várias, despejarem todas as suas frustrações e o seu ódio contra o gênero feminino.
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* Simone Andréa Barcelos Coutinho é advogada.