Certa vez, muito tempo atrás, vi no Supremo Tribunal Federal uma sustentação de Luís Roberto Barroso. Há advogados ganhando a vida escrevendo. Outros se dão melhor na oratória. Pequeno grupo trabalha muito bem nos dois aspectos, exibindo ou não, segundo as contingências, capacidade de aproximação maior com seres humanos, circunstância não fundamental mas de grande ajutório. Não sou de cheganças a advogados distantes. Vi e ouvi a manifestação oral do colega Barroso e pensei com os meus botões: enxerguei pouco profissional, nestes meus cinquenta e três anos de advocacia criminal, com tal polimorfa cultura, precisão expositiva e frieza na argumentação.
Evidentemente, após mais de meio século de experiência nas lides dos Tribunais, tenho na memória cada um e todos que me antecederam nas sustentações orais ou vieram depois, naquelas decantadas e cansativas sessões de julgamento. Dentro de tal vocação, Luís Roberto Barroso foi exemplo expoente. Corria em Brasília, há muito, nos gabinetes dos tribunais, a suspeita de que mais cedo ou mais tarde Barroso chegaria à Suprema Corte. Não se sabia bem se ele queria ou não aquilo, mas até hoje eu só vi um advogado, Manuel Alceu Affonso Ferreira, desconsiderando o chamamento para integrar um Tribunal Superior. De uma forma ou de outra, a quase unanimidade quer ou se deixa levar a tanto, uns batalhando assiduamente no chamado “beija-mão”, outros agindo com plena discrição, mas ainda assim não antagonizando eventual convocação.
Sempre tive enorme respeito por bons oradores, fiado inclusive no complicado mecanismo biopsíquico a transformar alguns em preciosíssimas máquinas de comunicação, sabendo-se hoje que o cérebro é intricadíssimo sistema de transmigração de impulsos fisioquímicos, oitenta e cinco milhões de neurônios a se comunicarem através das denominadas sinapses. Barroso é, então, ser humano privilegiado, valendo também, é evidente, metódica aquisição de conhecimento durante os muitos anos de exercício da advocacia e do magistério superior. A indicação ao Supremo Tribunal Federal veio sem surpresas grandes. Intuíam todos que o sistema apenas esperava a hora e vez. O dia chegou.
A psique, embora ainda pouco conhecida, nunca me assustou em demasia. Funciona em multifária e livre associação de ideias, em combinação e comparação praticamente automáticas. Assim, surgindo influxo externo gerado por fato humano ou mesmo naturalístico, a primeira consequência é, no imenso armazém escalonado na memória, a comparação com circunstâncias iguais ou semelhantes, ou mesmo dissonantes. Funciona assim. Daí, ao ver a fotografia do diferenciadíssimo Luís Roberto Barroso, veio-me do inconsciente imediata iniciativa no sentido de anteposição a outros profissionais da mesma área de conhecimento, ou, quiçá, de setor diferente, fosse na linguagem verbal, fosse na palavra escrita. A primeira criatura a aparecer foi Evandro Lins e Silva, muito longe, aliás, quando pude vê-lo enquanto ele advogava nos grandes processos de júri decantados por Carlos Araújo Lima.
Apareceu também a figura de Waldir Troncoso Peres, este paulista, magro e não muito elegante nem bonito mas, sem dúvida, grande orador forense. Deixe-se de lado o chamamento de outros fantasmas, porque seriam muitos. Almas idas não podem ser olvidadas. Entretanto, na dialética gerada pela assimilação instintiva, tal convicção não conseguiu eliminar totalmente o desfile de personagens competindo contra Luís Roberto Barroso, sempre no tema correspondente à arte de transmissão verbal do pensamento.
Apareceu-me subitamente criatura chamada José Ulisses, um moço com seus quarenta e quatro anos, quem sabe, professor em colégio religioso e padre por profissão. Ele reza a missa de domingo, na Igreja Nossa Senhora do Sion, em São Paulo, anexa ao colégio que leva o mesmo nome, escola geratriz de Ângela Ro Ro e Maysa Monjardim, ex-Matarazzo. Um traço comum a ambas: cantam com igual beleza, cada qual no seu estilo, a música rainha da dor de cotovelo “Ne me quitte pas”. A canção, para mim, rivaliza com “Ronda”, de Paulo Vanzolini, meu herói supremo, cantando hodiernamente nas nuvens de São Paulo, perto da avenida São João.
Voltando ao padre Ulisses, seus sermões têm exatamente quinze minutos, nenhum segundo a mais ou a menos. É econômico até para falar das coisas de Deus, mas nesse terceiro terço de vida, em que o ser humano fica mais e mais medroso, a aproximação com o Criador é uma garantia que as pessoas inteligentes não devem desprezar. Assim, vou à missa do padre Ulisses. Faz meses aposto comigo mesmo, na homilia, que aquele sacerdote privilegiado vai engasgar, tartamudear, gaguejar ou mesmo ter dificuldade na união entre as premissas e as conclusões postas nas parábolas bíblicas. Aposto comigo mesmo: ele vai errar. Pelo amor de Deus, cometa um erro sequer, para dar a este penitente a sensação de que todos são mais ou menos iguais.
Entretanto, aquele sacerdote humilde é, seguramente, uma das mais precisas, racionais e eficientes máquinas de pensar já postas aos olhos dos semelhantes. Além de tudo, José Ulisses, o pároco referido, fala em nome do Maioral. Para quem não sabe, o Maioral é o Maior, aquele onipresente, onipotente e onisciente, aquele que sabe tudo, tudo enxerga e, no fim das contas, direciona o todo para onde quiser. Já se vê, no contexto, a vantagem que o sacerdote José Ulisses tem sobre Luís Roberto Barroso. Ambos, com as ressalvas da finitude da capacidade humana, são perfeitos, mas José Ulisses, com certeza, reza antes de falar. Valha isso para Luís Roberto Barroso: vai precisar, mesmo sendo agnóstico, tecer muita oração para ajudar a Suprema Corte a fazer, no “mensalão” e em julgamentos humildes, a melhor justiça possível nesse malferido Brasil hodierno. Oremos.
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* Paulo Sérgio Leite Fernandes é advogado.