Migalhas de Peso

O medo do desconhecido e os desafios para o futuro

Os problemas no mercado automobilísticos não devem ser atribuídos à lei Ferrari e sim ao seu desconhecimento.

30/4/2013

Repetidamente tenho me deparado com questões que envolvem a aplicação da lei 6.729/79 ("lei Ferrari") e, apesar da complexidade das mesmas, as respostas são elaboradas com muita simplicidade: "O problema é a própria lei Ferrari".

Incontáveis outros problemas possuem uma solução simples e indolor: de extinguir ou modificar a lei Ferrari.

Os preços dos veículos estão altos? O mercado de veículos enfrenta problemas de ordem concorrencial? Alguns Estados estão deixando de recolher ICMS sobre vendas diretas? O consumidor de veículos está sendo prejudicado? Culpa da Lei!

Na realidade, porém, o grande problema não é a lei Ferrari, mas sim o medo que o ser humano tem do desconhecido. Sou sempre enfático ao defender que a Lei Renato Ferrari já nasceu muito (mas muito mesmo) à frente de seu tempo. Em edição que considero histórica da revista Dealer (publicação de responsabilidade da FENABRAVE) o Ilmo. Dr. Renato Ferrari é entrevistado e aponta, com a autoridade intelectual que é peculiar, que até mesmo a alteração feita na lei em 1990 (lei 8.132/90) foi desnecessária e realizada tão somente para “acalmar os ânimos” de alguns que, de fato, desconheciam o seu alcance e correta aplicação.

O aprofundamento sobre o tema ainda é escasso, parecemos ter, de fato, medo desse "desconhecido".

O Poder Judiciário vem fazendo competente trabalho no sentido de sedimentar entendimentos importantes, porém em quantos livros, trabalhos acadêmicos ou congressos foi possível consultar uma sedimentação desses entendimentos, bem como discutir ou trabalhar seus efeitos práticos?

Quantos congressos e debates sobre a lei Ferrari foram promovidos em âmbito nacional a partir da segunda metade da década de 1980? E doutrina especializada no tema? Raríssimas! O que os doutrinadores consagrados de Direito Civil e Contratual dizem a respeito em seus Manuais? O básico e conceitual do contrato de concessão, praticamente transcrição do que diz a própria lei Ferrari, em pouco se aprofundam. Qual outro parecer paradigmático foi emitido após o clássico escrito por Miguel Reale em 1986? Desculpe a franqueza, mas nenhum.

É possível contar nos dedos a evolução e discussões sobre a lei em âmbito público desde a segunda metade da década de 1980. Contar nos dedos só não, como neste modesto artigo, demonstro a seguir:

1986 – Parecer Dr. Miguel Reale sedimentou o entendimento de que a necessidade de reparação de danos vai além do previsto na lei Ferrari (aplicação do CC/02), entendimento este adotado pelo STF em 1989 e seguido até os dias de hoje pelo Judiciário.

1993 – STF consolida entendimento sobre processos de "invasão de área operacional" – postura passiva do concessionário em simplesmente atender cliente residente fora de sua área operacional não é passível de aplicação de ressarcimento automático em virtude do art. 5º, §§ 2° e 4º, salvo previsão de ordem contratual ou convenção da marca, a ser resolvida pelas partes e/ou respectiva associação de marca.

1994 – STF consolida entendimento de que as montadoras e respectivas associações, apesar de terem assinado uma convenção da marca com força de lei, não tem competência legislativa, logo não podem inovar na ordem legislativa e nem criar títulos executivos judiciais.

2002 – Os Tribunais de Justiça começam a conceder liminares para manutenção de contratos de concessão rescindidos sem justo motivo. Argumentos: Efeitos sociais e boa-fé objetiva. Porém em 2008 o STJ consolida entendimento de que Contrato de Concessão é sempre rescindível – incabível manter liminar que obrigue as partes a perpetuarem vínculo contratual não mais desejado por uma delas, entendimento sedimentado em novo julgamento idêntico, em 2011.

2009 – STJ consolida entendimento sobre a inaplicabilidade da teoria da aparência (aplicação do art. 16, inciso I, da lei Ferrari). A concessão não implica na outorga de representação, mandato, comissão ou agenciamento, agindo a concessionária em nome próprio, por sua própria conta e sob sua exclusiva e direta responsabilidade.

2009 - STJ reitera e consolida posição de que é válida cláusula de eleição de foro nos contratos de concessão comercial para revenda de veículos. Essa cláusula é a que define qual corte deve julgar as eventuais divergências decorrentes do acordo. Isso porque, segundo os magistrados, o concessionário não é hipossuficiente, possuindo também capacidade de sustentar a causa em qualquer foro.

Obviamente, justiça seja feita, ilustres advogados e pareceristas foram instados a opinar sobre as mais diversas questões sobre o tema e o fizeram com distinta competência a pedido de clientes produtores, associações e/ou concessionários. Elencados acima estão, obviamente, os temas que se tornaram de destaque público.

Pois bem, quisera todos os diplomas legais no Brasil terem a formação histórica que acompanhou a lei Ferrari. As mentes mais brilhantes do Direito se envolveram pessoalmente no tema, o que resultou na produção de uma lei que, com competência ímpar, atendeu a necessária demanda de positivar um dos contratos mais importantes para a economia do país. A lei Ferrari já tratava de boa-fé contratual e função social do contrato antes mesmo do atual CC/02 tornar isso um princípio fundamental do Direito privado brasileiro.

Ressalte-se que, desde 1893 quando da chegada do primeiro veículo automotor no Brasil pelas mãos de Henrique Santos Dumont até 2012 onde só o mercado de concessionários empregava mais de 370.000 pessoas diretamente – um contrato típico de concessão comercial resume-se em necessidade básica em uma economia moderna cuja distribuição de veículos é promovida por esta modalidade.

A lei é culpada sim, mas de um único "crime", o de ser tão revolucionária que se tornou um grande "buraco negro" para alguns setores da sociedade. E como reagimos ao que desconhecemos? Com reprovação, receio e, principalmente, medo.

Esta conclusão, data máxima vênia, é refletida em todos os projetos de Lei que propõem alterações ou a revogação total ou parcial da lei Ferrari que, fossem acompanhados da participação de quem conhece e aplica o tema no dia-a-dia, sequer seriam desengavetados dos móveis do Congresso Nacional ou entrariam em discussão pública, dada sua premente e temerária atecnia específica.

Deparamo-nos com desconhecedores da lei Ferrari criticando sua existência ou até mesmo deturpando seus dispositivos para utilizar como escudo em diversas modalidades de ações, defesa da concorrência, processos diversos - desconhecedores autoridades, advogados e juízes que, não por mal, mas por falta de especialidade, cometem equívocos monstruosos.

A lei Ferrari é tão evoluída que, mesmo concebida na década de 1970, ainda é utilizada como fiel modelo para países como Argentina, Chile, Equador, México, Peru e Uruguai cujas associações de distribuidores ainda clamam por um diploma legal específico, ressalte-se "nos moldes feitos no Brasil". Nós estamos na vanguarda com relação ao tema, não podemos retroceder ano a fio por desconhecimento.

Não percamos de vista que os Estados Unidos da América, mediante leis estaduais, com destaque para o Texas e a Carolina do Norte, também basearam-se na lei Ferrari para criar diplomas legais Estaduais sobre a distribuição de veículos automotores. Estaríam todos estes países andando em retrocesso e todos os críticos da lei Ferrari estão certos? Ou o diploma legal que deveria ser um orgulho da evolução econômica nacional é que está sendo relegado a mera condição de "culpado" de todos os tormentos atuais do setor?

Sobram críticos clamando a mudança, revogação e crucificando a lei Ferrari e faltam respostas para discussões de temas de suma relevância para perenidade do próprio negócio Concessão Comercial, como, por exemplo:

1 – Em virtude da liberdade das partes em estabelecer normas cogentes complementares à lei Ferrari, a arbitragem não seria uma solução viável para soluções especializadas para conflitos advindos do Contrato de Concessão?

2 – A concentração de pontos de vendas sob a titularidade de Grupos Econômicos cada vez mais fortes e com concessões de diversas marcas, alterará a estratégia de Rede de Concessionários e, consequentemente, a maneira como o Poder Judiciário encara a paridade de armas das Partes em um processo judicial?

3 – Com cada vez mais adesão de empresas multinacionais à Políticas e Legislações Globais de Compliance e Anticorrupção, seria a comprovação de condutas impróprias por parte de concessionários ou produtores uma causa justa para rescisão unilateral do Contrato de Concessão? Trata-se de matéria contratual ou delegada para Convenções da Marca?

Algumas regras dispostas na própria lei ou na Convenção de Categorias Econômicas, esta intacta desde 1983, podem, sim, estar defasadas ou necessitando de adaptações ao cenário moderno, porém a atualização mais premente ainda é cultural, tornar o desconhecido temido em velho aliado.

__________

* Daniel Ruy é advogado do setor automobilístico

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