Diante de tantas notícias sobre controvérsias em curso nos Tribunais para questionar os limites de uso das redes sociais e provedores de Internet, é chegada a hora de a sociedade brasileira fixar, para si, alguns parâmetros, a fim de que, nem as liberdades de expressão e pensamento sejam tolhidas, nem os direitos de proteção à imagem sejam, inadvertidamente, ofendidos, tendo em vista que tais bens jurídicos se encontram contemplados como direitos e garantias fundamentais na Carta Constitucional brasileira1.
Naturalmente, refletir sobre o tema, e com olhar aberto a permitir-se estabelecer alguns limites de uso dessas ferramentas, pode, à primeira vista, gerar um sentimento de retrocesso social e provocar arrepios aos cidadãos brasileiros, tendo em vista que ainda somos gerações filhas da ditadura, na qual, por longos e tristes anos, sob o manto da censura autorizada, liberdades de expressão, de ir e vir, e - pior(!) - de ser e de existir, foram injustamente tolhidas, de modo que a simples perspectiva de promover controles sobre vozes, imagens e pensamentos, parece, numa primeira análise, uma ideia absolutamente repulsiva.
No entanto, salvo melhor juízo, nos modelos que imperam até hoje, viver em sociedade requer adequação de condutas, fixação de limites, controles e sanções, até porque o direito individual se faz imperar até que venha a ofender o de outrem, seja em condutas carregadas de intenção, ou não.
Assim, no exercício do convívio, já estamos habituados a submeter as nossas vontades e ações ao que determina o conjunto de regramentos que norteia a vida pública e privada, respeitando, desde as “regras de etiqueta” mais básicas, como também, e principalmente, nos submetendo aos ditames do ordenamento jurídico vigente em nosso país.
Nesse sentido, entre aquilo que nos é permitido e o que nos é proibido, paira o conflito ora abordado entre a liberdade de expressão e pensamento em contrapartida à proteção ao direito de imagem e, acredita-se, que o confronto gerado entre esses interesses fundamentais - antagônicos entre si, mas protegidos no mesmo grau constitucional - só poderá ser superado com a análise criteriosa do caso concreto, a partir da distinção entre os princípios que norteiam tais direitos, para que possam ser avaliadas, adequadamente, as restrições e colisões entre eles, determinando-se, na situação fática posta, qual deles deverá prevalecer, sem prejuízo da existência do outro.
Muitos autores contemporâneos têm contribuído com sua cultura para que, diante de uma situação de conflito aparente de normas fundamentais, a antinomia seja superada adequadamente. Nesse contexto, Robert Alexy aponta que a solução para o impasse entre normas fundamentais deve ser dada por meio da ponderação dos interesses conflitantes ou “sopesamento”, com a aplicação do princípio da proporcionalidade.
Alexy2 afirma que as normas de direitos fundamentais ora podem se apresentar como regras de direito, ora como princípios, e, em outras circunstâncias, possuem tais normas um “duplo caráter”, qual seja, o de regra e de princípio ao mesmo tempo.
Sob essa ótica, tenho que o conflito em questão – entre a liberdade de expressão e o direito de proteção à imagem - se estabelece entre normas que possuem o mencionado “duplo caráter”, o que leva a crer que a melhor solução para o embate entre elas esteja na análise acurada do caso concreto, que demonstrará qual delas - no que toca ao seu caráter principiológico em comum - tem maior “peso” nas circunstâncias, para definir o bem jurídico que deverá prevalecer (se a liberdade de expressão ou a proteção do direito de imagem).
Por essa razão, há que se entender como os doutrinadores indicam a melhor saída para tal impasse, de modo que o conflito entre as normas fundamentais, no caso concreto, não venha a gerar dilema semelhante a uma verdadeira “Escolha de Sofia”3.
Em breves linhas, partindo-se da visão de Alexy, com acréscimos do saber de Ronald Dworkin, tem-se que os príncípios são “mandamentos de otimização”4, no sentido de que devem, sempre que possível, se fazer realizar à vista dos demais elementos jurídicos e fáticos da hipótese, como direitos prima facie5. Por outro lado, as regras “são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos.”6
Assim, considerando que os princípios “indicam uma direção, um valor, um fim" (enquanto normas predominantemente “finalísticas”7) e não são aplicados na modalidade do “tudo-ou-nada”8, como o são as regras (as quais se caracterizam como normas “descritivas”9), eles – princípios – assumem uma dimensão de “peso” no caso concreto, de modo que caberá ao intérprete da lei, fazer o exercício da ponderação entre os interesses colidentes no contexto da situação fática específica, a fim de definir qual deles apresenta maior peso no caso, e deverá, portanto, prevalecer em face do outro, sem que este perca a sua validade10.
A questão, assim, não é o embate entre o conteúdo descritivo da conduta normativa, até porque, considerando o fato de que ambos os direitos nelas contemplados são garantidos enquanto normas fundamentais em nossa Carta Constitucional, não haveria como abrir mão de uma em favor da outra, e o impasse ficaria sem solução11. E, também não é o caso de se negar os dois direitos, ou ainda, invalidar um, em favor do outro, à semelhança da mencionada “escolha de Sofia”.
De fato, como ambas as normas também possuem o caráter principiológico, as circunstâncias do caso demostrarão qual princípio fundamental deverá prevalecer na hipótese: se a liberdade de expressão sobre o direito à proteção à imagem; ou se essa sobre aquela; - tudo isso a partir do sopesamento, a ser feito pelo intérprete da lei, entre os bens jurídicos e princípios constitucionais envolvidos e, após sua conclusão acerca de qual deles deverá preponderar diante dos fatos, à luz do princípio da proporcionalidade.
Portanto, muito embora a necessidade de se resolver colisões de direitos não seja recente, e tampouco a ideia de que a solução adequada a esses conflitos deva ser proporcional12, o que há de novo é a tentativa de estabelecer critérios de avaliação que orientem o magistrado na árdua tarefa de identificar, no caso concreto, qual dos interesses em combate deve prevalecer, servindo, assim, a Teoria do Sopesamento de Alexy, e a sua aplicação segundo o princípio da proporcionalidade, como método hábil para resolver colisões de direitos subjetivos fundamentais e interesses públicos constitucionalmente previstos13.
Como todos nós temos acompanhado, a comunicação globalizada pela Internet permite que, num rápido clicar, a exposição de fatos, imagens, carinhos e ofensas sejam veiculadas para uma gama infinita de pessoas numa velocidade jamais conhecida anteriormente, e com o fenômeno das redes sociais, o efeito propagador atinge, atualmente, o seu grau máximo, aliando-se ao próprio conteúdo disseminado, a propagação de opiniões, críticas, repúdios, ofensas, etc.
Diante disso, da mesma maneira que evoluímos em favor da comunicação mais célere e global, por outro lado, estamos cada vez mais expostos a sermos vítimas de mal-entendidos, injustiças, ofensas, e, por outro lado, ao cometimento de inúmeros deslizes e equívocos em nossas ponderações, opiniões e no próprio exercício da liberdade de expressão e pensamento.
Desse modo, o progresso da comunicação em rede, ao mesmo tempo em que veio a ampliar a nossa liberdade de expressão (individual), também veio, em certa medida, a “tolhê-la”, haja vista o fato de a sociedade estar caminhando para um modelo cada vez mais intolerante ao que rapidamente se aponta como “inaceitável”, “preconceituoso”, “abusado”, “ofensivo”, passando a julgar - muitas vezes, injustamente! - situações, atitudes e posicionamentos, sem dar ao seu autor, qualquer chance de exercer o contraditório, ou, ainda, o direito de retratação ou de arrependimento.
Ou seja, as pessoas estão cada vez mais expostas a serem, com um rápido enter, sujeitas a ter a sua reputação comprometida, a sua privacidade exposta, ou ainda, a serem mal compreendidas em seus pensamentos, posicionamentos, pontos de vista e críticas, ora em virtude de uma análise absolutamente superficial sobre eles, ora com extremo rigor, discriminação e intolerância - tudo isso em prol da liberdade de expressão “universal”.
E mais! Tal realidade não tem se restringido apenas à pessoa física. Pessoas jurídicas diversas - inclusive seus produtos e serviços - também têm ficado à mercê da máxima e globalizada exposição, sendo, muitas vezes, ofendidas, injustamente, sem direito à defesa, ficando impedidas de promover ajustes em seus produtos e serviços em tempo hábil a não macular, em definitivo, a sua imagem – isso, sem falar nas ofensas que, muitas das vezes, são cometidas, sem nenhuma razão de ser (por simples escárnio, por exemplo).
Por essa razão, salvo melhor juízo, na prática, tem-se visto que a norma fundamental que garante o direito de proteção à imagem tem sido “atropelada” pela velocidade da “desmedida” liberdade de expressão na Internet – com destaque para as redes sociais - que, por diversas vezes, têm sido utilizadas como meio propagador da vingança, ou ferramenta para se “fazer a justiça com as próprias mãos”, paradigma esse não acolhido pelo Estado Democrático e Social de Direito.
Nesse sentido, o tempo age em desfavor da proteção do direito de imagem, tendo em vista que a velocidade dos acontecimentos veiculados em Internet e nas redes sociais não acompanha, com a mesma rapidez, o estabelecimento de alguns freios necessários para o exercício da liberdade de expressão tal como tem sido exercida, o que, muito provavelmente, somente irá ocorrer, ao longo dos próximos anos, pela atuação pontual e contundente do Poder Judiciário.
Enquanto isso, viveremos tempos de uma liberdade “paradoxal”, pois, ao mesmo tempo em que poderemos exercê-la com amplitude, seremos, também, reféns dos limites de sua extensão (a serem traçados com maior clareza pela jurisprudência), e mais, porque, por outro lado, também poderemos ser vítimas de críticas e apontamentos injustos, em virtude da própria liberdade de expressão, a qual sempre defendemos.
Assim, a título de exemplo, ofensas ou críticas a raças diferentes, orientação sexual e religiosa, regionalismos, bullying (inclusive entre crianças), desmoralização e linchamento moral e público de pessoas, profissionais, artistas, e, ainda, críticas ou escárnio público de produtos e serviços, devem ser evitados, ou, no mínimo, antes de propagados, ser avaliados com uma boa dose de cuidado e bom senso pelo seu autor.
Portanto, a despeito de defender a ampla liberdade de expressão e pensamento, como conquista inquestionável dos tempos democráticos, é recomendável que sempre haja cautela no uso das palavras, na veiculação de notícias, imagens e críticas, nesses meios de comunicação instantânea e nas redes sociais, seja quanto a pessoas físicas, conhecidas ou não, seja quanto a empresas, produtos e serviços, uma vez que o Direito também os socorre, no zelo pelo justo direito e garantia constitucional de proteção e preservação da imagem, hipóteses em que, diante das ofensas e abusos, poderão ser fixadas grandes indenizações.
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1 Artigo 5º, incisos IV, V e X, da Constituição da República.
2 Segundo Robert Alexy in sua obra “Teoria dos Direitos Fundamentais”. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo, Malheiros, 2008.
3 Sophie's Choice (br / pt: A Escolha de Sofia) é um filme norte-americano de 1982, do gênero drama, dirigido e roteirizado por Alan J. Pakula e baseado no romance de 1979 de William Styron. Trata do dilema de "Sofia", uma mãe polonesa, filha de pai anti-semita, presa num campo de concentração durante a Segunda Guerra e que é forçada por um soldado nazista a escolher um de seus dois filhos para ser morto. Se ela se recusasse a escolher um, ambos seriam mortos. Essa história dramática é contada em 1947 ao jovem "Stingo", um aspirante a escritor e que vai morar no Brooklyn, na casa de "Yetta Zimmerman", onde ele acaba tendo Sofia como sua vizinha. (https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Escolha_de_Sofia_(filme)).
4 Canotilho, in Direito Constitucional., p. 1141, também assim define: “ as normas dos direitos fundamentais são entendidas como exigências ou imperativos de optimização que devem ser realizadas, na melhor medida possível, de acordo com o contexto jurídico e respectiva situação fáctica”.
5 O dever prima facie é uma obrigação que se deve cumprir, a menos que ela entre em conflito, numa situação particular, com um outro dever de igual ou maior porte. (Sir David Ross, 1930). Os direitos são prima facie, e não definitivos, na medida em que a sua definição depende da ponderação subjetiva em face de determinadas circunstâncias. (Canotilho, Direito Constitucional, p. 1139).
6 Idem nota 2.
7 Segundo Luis Roberto Barroso, in seu “A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas”, 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
8 Ronald Dworkin em “Levando os Direitos a Sério”. Tradução e notas por Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
9 Idem nota 5.
10 Dworkin afirma que os princípios possuem uma dimensão de peso ou importância que as regras não têm, de modo que, em caso de colisão, o que tiver maior peso se sobreporá ao outro, sem que este perca a sua validade.
11 Reafirma Alexy que duas normas quando consideradas isoladamente podem levar a conclusões contraditórias, no entanto não se pode imaginar, por isso, que uma invalidará a outra, visto que não há precedência absoluta de nenhuma delas. Essa precedência só pode ser avaliada à luz do caso concreto.
12 Vide Aristóteles in “Ética a Nicômaco”, quando afirma sobre a justiça em sentido estrito: "o justo, nesta acepção, é portanto o proporcional, e o injusto é o que viola a proporcionalidade”.
13 Canas, in “O princípio da proibição do excesso na Constituição”, p. 335.
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* Sylvie Boëchat é advogada do escritório Rayes & Fagundes Advogados Associados.