Migalhas de Peso

Emenda 72 e Trabalho Doméstico

Debate sobre a EC 72/13 e suas implicações.

9/4/2013

As alterações do parágrafo único do art. 7º da Constituição provocam, entre donas de casa e empregadas, dúvidas sobre o futuro. Na relação de trabalho doméstico, desenvolvida, até então, sem graves e constantes conflitos, o Congresso Nacional realiza a façanha de criar problemas insolúveis de interpretação, como revelam artigos publicados e entrevistas com especialistas na matéria.

Na Justificação da polêmica Proposta de Emenda, o autor, deputado Carlos Bezerra, afirma que "nódoa existente na Constituição democrática de 1988 deve ser extinta", e que o "parágrafo único do art. 7º é uma excrescência e deve ser extirpada".

Esqueceu-se de que a nódoa e a excrescência resultaram dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, integrada, entre outros nomes de valor, por Luiz Inácio Lula da Silva, Benedita Silva, Paulo Paim, Florestan Fernandes, Plínio de Arruda Sampaio, Sigmaringa Seixas, representantes do PT.

Ao contrário do que se propala, as empregadas domésticas não estavam desamparadas. A lei 5.859/72 lhes deferiu o registro em carteira, inscrição na Previdência Social, férias anuais remuneradas. A lei 10.208/01 concedeu a participação no Fundo de Garantia, mediante negociação com o empregador, e garantiu o seguro-desemprego.

Injusta a acusação ao parágrafo único do art. 7. Foi por meio dele que a Constituição lhes assegurou salário mínimo, irredutibilidade salarial, décimo terceiro, repouso semanal remunerado preferencialmente aos domingos, férias anuais remuneradas, com 1/3 acima do salário normal, licenças gestante e paternidade, aposentadoria. Deixou de lado, por motivos óbvios, a participação nos lucros e resultados da empresa, adicionais insalubridade e periculosidade, controle rigoroso da jornada, proteção contra a automação, reconhecimento das convenções e acordos coletivos.

Situações específicas cobram tratamento específico. É o que ocorre com o funcionário da Petrobrás que permanece quinze dias ininterruptos na plataforma ancorada em alto mar, para trabalhar na exploração e extração de petróleo (lei 5.811/72). Para ele inexiste garantia do repouso semanal. Não bastasse, há permanente risco de grave acidente. O profissional de futebol, além de exercícios diários obrigatórios, e treinamento constante, trabalha à noite, aos domingos e feriados, sob sol escaldante ou debaixo de chuva torrencial. Sem horários regulares temos, também, jornalistas, radialistas e repórteres, que devem acudir aos chamados quando solicitados.

Alonso Caldas Brandão, componente da Comissão Técnica de Orientação Sindical do Ministério do Trabalho, ao interpretar a CLT, em livro editado pelo próprio Ministério em 1962, lembrou o decreto-lei 3.078, de 27 de fevereiro de 1941, destinado a regular o trabalho de domésticos e empregados em condomínios. Assinalou, porém, que "Não sendo auto-aplicável, sua execução ficou na dependência do respectivo regulamento que não foi expedido". Registra, em seguida, o jurista, que "A vida familiar apresenta aspectos de nenhuma similaridade com as atividades econômicas em geral, nem mesmo com as de beneficência. Estender-lhe o plano de uma legislação feita e adequada a outras condições pessoais e ambientes seria forçar a realidade das coisas".

Pecam pelo exagero as generosas análises da Emenda que, em diversos aspectos, é redundante. Em outros, gera problemas de impossível resolução, como o controle das horas diárias de trabalho. As domésticas, de maneira geral, cumprem jornada de oito horas em regime de semana inglesa, ou seja, liberadas de comparecimento aos sábados e domingos. Como fará a patroa para anotar entrada, saída, e intervalo mínimo de uma hora, e máximo de duas, para repouso alimentação, se está desobrigada de manter livro de ponto, registro mecânico ou eletrônico, como exige a CLT nos estabelecimentos com mais de dez empregados? O ancião doente que vive só, dependente de duas ou três acompanhantes, que o atendam em elementares necessidades, como fará para suportar despesas geradas pela Emenda, com o dinheiro de magra aposentadoria?

Relações domésticas de trabalho dependem de ambiente no qual prevaleçam boa-fé e tratamento amistoso, entre pessoas que vivem sob o mesmo telhado (já se cogita da inspeção domiciliar por fiscais do Ministério do Trabalho...). A mulher moderna, solteira, casada, viúva, divorciada, prima pela independência. Para isso procura obter emprego público ou privado, como secretária, advogada, médica, bancária, comerciaria, operária, policial civil ou militar, jornalista. Manter quem a auxilie não é luxo de socialite, mas imperativo para quem deseja prover o próprio sustento.

O legislador ignorou que o orçamento da classe média está exaurido, e atacado pelo custo de vida. Algumas donas de casa tentarão o impossível para dar conta das novas obrigações. Outras, porém, não terão alternativa senão o desligamento imediato da empregada. Milhares pagarão pelos excessos cometidos por Emenda que, como quase sempre acontece, é pior do que o soneto.

Estamos diante mais uma, entre muitas espécies de trabalho, em processo de extinção.

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* Almir Pazzianotto Pinto é advogado; foi Ministro do Trabalho e presidente do TST.

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