Migalhas de Peso

Aspectos polêmicos da nova lei de lavagem

O quadro atual traduz uma insegurança jurídica evidente.

22/3/2013

É extreme de dúvida que a luta contra a lavagem de dinheiro é uma importante ferramenta no combate ao crime organizado e às novas formas de criminalidade. Isto porque, assim como os negócios excedem progressivamente as fronteiras do Estado Nacional, globalizando-se, a criminalidade organizada também transgride as fronteiras destes, financiada pelo capital que movimenta a engrenagem de suas grandes estruturas delitivas e atuam cada vez mais e de forma mais sofisticada no processo de branqueamento do produto do crime.

Nessa senda, no Brasil, a primeira lei que tratou do tema, data de 1998, a qual dispôs sobre as medidas legais necessárias; definiu o crime de lavagem de dinheiro; tratou das medidas assecuratórias; criou a Unidade de Inteligência Financeira (UIF) e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF, órgão responsável pelo sistema de comunicação de operação suspeita, bem como a criação mecanismos de cooperação internacional; instituíram-se varas judiciais especializadas no processo e julgamento dos crimes previstos na lei 9.613. Ainda, optou o legislador pátrio por castigar, com pena de 3 a 10 anos, o ato de ocultar valores por meio de uma enumeração exaustiva, composta por crimes graves, incluindo aqueles praticados por organizações criminosas.

Em convergência com as legislações contemporâneas que tratam do combate à lavagem de dinheiro, como fruto das recomendações ventiladas no âmbito internacional1 e incorporadas ao ordenamento jurídico pátrio, a entrada em vigor da lei 12.683, de 9/7/12, trouxe novidades impactantes tanto na seara penal, quanto no campo processual penal.

Consequentemente, a recente reforma legislativa traduz-se em uma evidente manifestação expansiva do Direito Penal, na medida em que se ampliou o âmbito de intervenção incorporando-se novas condutas carentes de finalidade, pois se estendeu a todo e qualquer delito ou contravenção penal a possibilidade de ser crime antecedente da lavagem de dinheiro, ficando a cargo de o julgador aplicar a pena mínima aos destinatários da norma, para qualquer infração penal, seja ela mais gravosa ou não, com um jogo de sorte ou azar.2

Diante disso, sobre a ideia da proibição do excesso, o mencionado alargamento do conjunto de comportamentos puníveis, na esfera da lavagem de capitais, afronta o princípio da proporcionalidade, o qual, em apertada síntese, limita a intervenção restritiva dos poderes públicos sobre os direitos dos cidadãos e preconiza que esta só se justifica quando for necessária, adequada e proporcional.3

Não apenas isso. No que tange à obediência ao subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, a previsão legislativa da pena corresponde ao delito e requer uma relação de adequação entre a gravidade da sanção e a relevância do bem jurídico protegido pela figura delitiva e, por sua vez, entre esta e as distintas formas de ataque ao valor juridicamente tutelado.4

Em assim sendo, todo o juízo de proporcionalidade necessita orientar-se pela ponderação, de modo que as penas mais graves, caso sejam indispensáveis, devem ser reservadas aos delitos que atacam bens jurídicos fundamentais, próprios de um Estado Democrático de Direito e, jamais aplicada, indistintamente, às condutas de menor gravidade.

Ademais, a deferência ao princípio da intervenção mínima exige que o Direito Penal interfira, apenas e, tão somente, na proteção de bens jurídicos fundamentais e liga-se, como consequência, ao fundamento da proporcionalidade, no sentido de que a intervenção punitiva restritiva às esferas de liberdade, seja o último recurso (Direito Penal como última ratio). Ainda, para alcançar os fins de proteção que são perseguidos deve ser utilizado o meio menos gravoso possível aos direitos individuais.5

Em decorrência disso, as contravenções penais analisadas à luz da gravidade ao bem juridicamente tutelado, sequer deveriam ser objeto de tutela penal, quiçá, constituir o crime de lavagem de capitais.

Outro aspecto polêmico e preocupante da recente alteração legislativa, reflexo do expansionismo penal, versa sobre a obrigatoriedade de pessoas físicas (neste rol incluem-se advogados, contadores, corretores de imóveis, entre outros) enviarem às autoridades informações sobre operações de seus clientes, bem como cadastrá-los, mesmo que tenham, eventualmente, prestado “serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria e assistência”. Além da possibilidade de incorrer no crime, àquele que utilizar “bens, direitos ou valores provenientes de infração penal.”

Nessa perspectiva, no cotidiano profissional da advocacia, dois aspectos merecem destaque: a) no caso da não comunicação das atividades suspeitas de seus clientes às autoridades, o advogado pode responder como partícipe do crime de lavagem praticada por terceiro, caracterizada pela omissão, além de caracterizar responsabilidade administrativa; e b) dependendo da procedência dos honorários advocatícios, é possível que o advogado incorra em lavagem de dinheiro devido ao recebimento de recursos provenientes de crime.

Aqui é preciso ressalvar que o advogado, afastado de dolo, que agir conforme os preceitos concernentes à sua atividade profissional, zelando pela defesa técnica do seu cliente está protegido pelo dever de sigilo atrelado ao exercício da atividade profissional, de modo que não pode ser sujeito obrigado a comunicar atividades suspeitas de seus assistidos às autoridades.

Em que pese opiniões divergentes6, no que tange à possibilidade do recebimento de honorários provenientes do produto de crime, entende-se que o advogado não pode ser responsabilizado criminalmente pelo delito de lavagem de dinheiro, desde que os receba formalmente e livre de qualquer ato de ocultação ou dissimulação, sendo vedada sua inculpação. Ademais, sobrepõe-se ao aspecto criminal, os direitos fundamentais de defesa e da livre escolha do defensor7, os quais refletem, acima de tudo, a relação de confiança entre cliente e advogado, em tempo algum pode ser posta em xeque.

Dentro do tema, é importante ressaltar que não se pode admitir que profissionais abarcados pelo sigilo de suas ocupações “trabalhem como delatores", imbuídos pelo emprego legítimo da coação Estatal, cabendo às autoridades competentes apurar à prática do crime de lavagem, distinguindo as condutas de encobrimento ou favorecimento real das de adimplemento dos serviços contratados e o pagamento.

Por tudo isso, o quadro atual traduz uma insegurança jurídica evidente, em descompasso com os ideais de um Direito Penal minimalista, reflexo da inobservância da Constituição Federal e os princípios nela delineados, os quais delimitam o marco político criminal em que necessariamente deveriam situar-se o legislador e os operadores do direito.

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1 No final dos anos 80 do século XX, surgiram importantes instrumentos internacionais voltados ao combate à lavagem de dinheiro. Nesse contexto, destacam-se: Recomendação nº R(80) 10, adotada pelo Comitê de Ministros do Conselho da Europa, de 27/06/1980; Programa Interamericano de Ação do Rio de Janeiro, contra uso, produção e tráfico ilícito de drogas narcóticas e substâncias psicotrópicas (1986); Money Laundering Act Control (1986); Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas (1988); Criação do GAFI – Financial Action Task Force (1989) e suas recomendações; Convenção sobre lavagem, identificação, apreensão e confisco de produtos do crime do Conselho da Europa (1990); Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (2000).

2 Nesse sentido Silva Sánchez esclarece que: “A tipificação do delito de lavagem de dinheiro é, enfim, uma manifestação de expansão razoável do Direito Penal (em seu núcleo, de alcance muito limitado) e de expansão irrazoável do mesmo (no resto das condutas, em relação as quais não se possa afirmar em absoluto que, de modo específico, lesionem a ordem econômica de modo penalmente relevante).” In: Silva Sánchez, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 2ªed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 34-35.

3 Importante mencionar, desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, consagrou-se que a lei não deve estabelecer outras penas que as estritamente e manifestamente necessárias.

Em relação ao exercício do poder punitivo estatal, primeiramente o princípio da necessidade reclama que a incriminação de uma conduta seja meio imprescindível para a proteção de bens jurídicos e comporte a intervenção mínima possível sobre os direitos da pessoa para alcançar tal finalidade.

Em segundo lugar, o princípio da adequação requer que a incriminação da conduta e consequência jurídica desta, pena, seja apta a alcançar o fim que as fundamentem.

Em último lugar, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito requer um juízo de ponderação entre a carga de privação ou restrição de direito que comporta a pena e o fim perseguido com a incriminação e com as penas previstas. Nesse sentido: DEMETRIO CRESPO, Eduardo. RODRÍGUEZ YAÜE, Cristina (Coordinación). Curso de Derecho Penal Parte General. 2ª ed. Barcelona: Ediciones Experiencia, SL, 2010, p. 69-70.

4 Nesse sentido: DEMETRIO CRESPO, Eduardo. RODRÍGUEZ YAÜE, Cristina (Coordinación). Curso de Derecho Penal Parte General. 2ª ed. Barcelona: Ediciones Experiencia, SL, 2010, p. 74.

5 Nesse sentido: DEMETRIO CRESPO, Eduardo. RODRÍGUEZ YAÜE, Cristina (Coordinación). Curso de Derecho Penal Parte General. 2ª ed. Barcelona: Ediciones Experiencia, SL, 2010, p. 72-73.

6 Para Pierpaolo Cruz Bottini e Gustavo Henrique Badaró: “o advogado almeja apenas a remuneração por seus serviços e o fato de receber formalmente os valores aponta para a inexistência de qualquer vontade de contribuir para o seu encobrimento”, pois “o mero beneficiário dos valores lavados não participa do crime, mesmo que saiba de sua prática. O ato de gastar o dinheiro é mero exaurimento do tipo de lavagem, não integra o delito. E isso parece valer para o advogado contencioso e para o operacional, pois o recebimento de honorários é relacionado com a prestação do serviço em si e não com o conteúdo prestado.” In: Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/1998, com alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 141.

7 Idem, Ibidem, p. 141. CHOCLÁN MONTALVO, José Antonio. Blanqueo de capitales y retribución del abogado. El pago de honorarios con cargo al patrimonio presuntamente criminal. La Ley Penal, nº 53, octubre, 2008, p. 2-3.

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Referências Bibliográficas

ABEL SOUTO, Miguel. La expansión penal del blanqueo de dinero operada por la Ley Orgánica 5/2010, de 22 de junio. La Ley Penal, n.º 79, febrero. 2011.

ALIAGA MÉNDEZ, Juan Antonio. Los abogados como sujetos obligados a la prevención del blanqueo, Diario La Ley, nº. 7020, 2008.

BADARÓ, Gustavo Henrique. BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais: comentários à Lei 9.613/1998, com alterações da Lei 12.683/2012. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.

BOTTKE, Wilfried. Mercado, criminalidad organizada y blanqueo de dinero en Alemania. Disponível em: www. uhu.es/revistapenal/índex.php/penal/article/view/26/24. Acesso em: 22/02/13.

CHOCLÁN MONTALVO, José Antonio. Blanqueo de capitales y retribución del abogado. El pago de honorarios con cargo al patrimonio presuntamente criminal. La Ley Penal, nº 53, octubre, 2008.

DEMETRIO CRESPO, Eduardo. RODRÍGUEZ YAÜE, Cristina (Coordinación). Curso de Derecho Penal Parte General. 2ª ed. Barcelona: Ediciones Experiencia, SL, 2010.

GRECO FILHO, Vicente. RASSI, João Daniel. Lavagem de dinheiro e advocacia: uma problemática das ações neutras. Boletim IBCCRIM. v. 20, n. 237, ago., 2012. 13-14.

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 2ªed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

_______________. Aproximación al Derecho Penal Contemporáneo. 2ª ed. Buenos Aires: Editorial Bdef, 2010.

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* Jéssica Ferracioli é coordenadora de Direito Penal do escritório Décio Freire e Associados em São Paulo. Mestre em Direito Penal pela PUC-SP. Especialista em Direito Penal pela Universidade de Salamanca/Espanha.

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