A 3ª vara da Fazenda Pública do Distrito Federal concedeu 180 dias em licença-maternidade, sem prejuízo da remuneração convencionada, a uma servidora pública para amamentar o filho gerado por sua companheira. A pretensão foi concedida porque a mãe biológica trabalha como autônoma e não tem como amamentar a criança. Na antecipação de tutela, o juiz de Direito Marco Antonio da Silva Lemos, com privilegiada visão jurídica, declarou que "no caso, existe inquestionável periculum in mora, relativamente às necessidades do recém-nascido, com vistas à preservação de sua saúde e mesmo de sua própria vida. Esses valores devem ser preservados, por imperativo de justiça e de efetividade da ordem jurídica, em sendo o caso até mesmo de ofício".
Nesta mesma linha de concessão judicial, o Juizado Especial Federal de Campinas, deferiu a um pai detentor da guarda do filho o direito de manter-se afastado de seu trabalho pelo prazo de 120 dias, com a faculdade de ampliá-lo para 180 dias, conforme acordo ou convenção coletiva, nos mesmos moldes conferidos à gestante do sexo feminino.
O Direito, pela sua própria estruturação interpretativa, revela-se cada vez mais como um instrumento voltado para atender as necessidades do homem. Vale-se da lei, que estabelece os parâmetros permissivos e proibitivos, porém, não se prende a ela de forma servil e sim, com a autonomia que lhe é peculiar, alça voo em busca de uma verdadeira integração entre a norma e o fato perquirido, avizinhando-se da realidade pretendida. Pode-se até dizer que a lei é uma ficção, enquanto sua aplicação na medida certa depende unicamente da forma pela qual será interpretada.
Diz-se, e com muita razão, que o Direito vem da mesma linha genética da Filosofia. Nesta o homem, pela sua sabedoria e experiência, aponta os princípios éticos e sociais que devem reger a vida em comunidade. Naquele é a articulação de todas as condutas humanas catalogadas em um regramento tendo como base as recomendações filosóficas.
A lei é um instrumento social de enorme valia. Justifica-se por si só, vez que dita as regras que devem ser observadas no relacionamento entre as pessoas, tudo visando um convívio social harmônico. Pode até ser considerada hostil, mas é necessária para que o homem possa viver numa sociedade adequadamente ordenada. Porém, apesar de trazer uma regra mandamental, vem despojada de sentimento. A lei é ordem e uma boa lei é uma boa ordem, já sentenciava Aristóteles. É um corpo sem alma e cabe ao intérprete fazer o ajustamento adequado, cum grano salis e a necessária dose de bom senso. É um bólido que deve ser teleguiado por técnicos que tenham conhecimento de sua potencialidade: se não for feito o ajustamento do alvo, o impacto em local não apropriado pode ser desastroso.
Daí surge a necessidade de se fazer a interpretação hermenêutica. Se o operador do direito terminar a leitura do texto legal e aplicá-lo ao caso concreto, estará simplesmente realizando uma operação sistemática, praticamente matemática, sem levar em consideração a elasticidade escondida nas palavras da lei, com o consequente fiat justitia, pereat mundus. Aplica o texto frio e gélido, sem qualquer riqueza de conteúdo, como pretendia Justiniano com seu Corpus Juris. Se, porém, contornar o biombo que o esconde e ingressar no cerne da norma, descobrirá a riqueza nela contida, possibilitando alcançar situações que até mesmo originariamente não estavam contidas na mens legis. E a ciência hermenêutica propõe não só a compreensão de um texto, mas vai muito além, até ultrapassar as barreiras para atingir seu último alcance. "Quando, argumenta com toda autoridade Ferraz Júnior, dizemos que interpretar é compreender outra interpretação, (a fixada na norma), afirmamos a existência de dois atos: um que dá a norma o seu sentido e outro que tenta captá-lo".
A lei vem expressa por palavras, nem sempre correspondendo à real intenção do legislador. "A palavra, já advertia Maximiliano, é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude; sob um só invólucro verbal se conchegam e escondem várias idéias, valores mais amplos e profundos dos que os resultantes da simples apreciação literal do texto".
No caso ora comentado, nenhuma voz será discordante no sentido de que a providência judicial atendeu o propósito da lei, que é o de "assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito à liberdade e convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".
Pode parecer até uma situação que foge da regra comum, pois se trata de um relacionamento homossexual, em que a mãe biológica deixou de amamentar a criança em razão de seu trabalho e a requerente, como companheira, adquiriu a legitimidade e o credenciamento para postular em juízo o direito de amamentar por substituição. Ora, se a Lei Maior confere à gestante o direito à licença com duração de cento e vinte dias, sem prejuízo do emprego e do salário, tal direito é transferido à companheira que reúne condições para tanto, em razão também do que preconiza o princípio da isonomia.
Na realidade, a lei lança seu olhar para a tutela e proteção da criança, principalmente quando se tratar de recém nascido, que exige cuidados especiais e a constante presença dos pais. Não é uma atividade que pode ser exercida por qualquer pessoa porque compreende, antes de qualquer relação, a consanguinidade ou o afeto. Melhor, portanto, outorgar a responsabilidade para quem mantém um relacionamento com a criança.
Assim, na realidade, a lei mira o infante e estabelece condições para sua proteção, enquanto que o cuidador exerce uma função delegada de tutela. Mas, para se chegar a tal conclusão, faz-se necessário o exercício hermenêutico para buscar a finalidade social da lei. Penetra-se no conteúdo da norma e a direciona para os objetivos pretendidos. Com muita razão, Reale ressaltou que "interpretar uma lei importa, previamente, em compreendê-la na plenitude de seus fins sociais, a fim de poder-se, desse modo, determinar o sentido de cada um de seus dispositivos. Somente assim ela é aplicável a todos os casos que correspondam àqueles objetivos".
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1Processo 2013011006953-4.
2Homem consegue direito a licença paternidade de 120 dias.
3Ferraz Júnior, Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo : Atlas, 2006, p. 72.
4Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 29.
5Artigo 227 da Constituição Federal.
6Constituição Federal, artigo 7º, XVIII.
7Reale, Miguel. Lições preliminares de direito. São Paulo : Saraiva, 2002, p. 289.
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